terça-feira, 14 de julho de 2009

A morte estúpida do Sr. Jarvas


O Sr. Jarvas teve uma morte estúpida.
O enterro, em vez de ter sido uma manifestação de pesar, tinha-se tornado num boca a boca de comentários sorrateiros e irónicos a respeito de quão estúpida tinha sido a morte do homem.
O Sr. Jarvas tinha morrido no Domingo de manhã ao tentar queimar um vespeiro que tinha encontrado ao pé da estufa do jardim. A morte tinha ocorrido, por volta do meio dia, quando, ignorando os conselhos de Dona Antonieta, para que estivesse quieto e que esperasse que os empregados voltassem do casamento da filha da cozinheira, tinha resolvido, ele mesmo tratar do assunto. “Pára Jarvas! Os empregados depois tratam disso! Está muito alto... não chegas lá!”. Dona Antonieta exasperava-se e implorava que ele descesse do escadote. “Sou homem muito homem, mulher! Não me achas capaz de tão simples tarefa?”, perguntou-lhe ele quase com o orgulho ferido. “Não sejas tolo, sai daí! Ainda te picam!”, gritava a mulher de mãos unidas em punho, apertando o estômago, com o corpo rígido, antecipando a angústia de ver o vespeiro ganhar vida. “Homem que é homem não tem medo de umas picadazinhas, e eu sou muito homem!”. “Eu adoro-te Jarvas... sabes que te adoro, mas tu dás comigo em doida! Em doida!”
Ordena então à mulher que se despache a ir buscar álcool e fósforos e que pare com a rezinguice, porque eram quase horas de almoço e ele estava a começar a ter fome... e homem que é homem não pode estar de barriga vazia.
E é então que se dá a cadeia de acontecimentos estúpidos e fatídicos, que transformam o Sr. Jarvas num defunto.
No topo das escadas, de frente a frente com o vespeiro adormecido, uma libelinha passa-lhe rente ao nariz o que o faz dar um sonoro e potente espirro. Um espirro tão forte que quase o faz perder o equilíbrio. Depois de alguns malabarismos, lá consegue manter-se no topo da escada, mas as vespas estavam agora acordadas. Começam a sair, atarantadas, procurando intrusos. O Sr. Jarvas leva com cinco picadas na testa, enquanto esbraceja apenas com um braço, como um pássaro com uma asa partida, mas que mesmo assim tenta voar. Com o choque do inesperado e a testa em fogo, desequilibra-se e cai de cabeça dentro de um balde meio de água que estava esquecido no chão. Tenta levantar-se, mas uma das vigas de madeira, que estavam apoiadas na parede, destinadas a fazer uma nova vedação para os cavalos, lhe cai em cima e o faz perder os sentidos.
E é assim que D. Antonieta encontra o marido um minuto depois... de buços, com a cabeça enfiada dentro de um balde e afogado num palmo e meio de água.
Findo o serviço fúnebre, (em que D. Antonieta jura ter ouvido rizadinhas contidas), volta para casa, numa carruagem abafada, abanando o leque vigorosamente, contendo a raiva e amaldiçoando o teimoso do marido, cuja azelhice e teimosia a tinham atirado para a condição de viúva.
O calor apertava mais do que nunca, como se o sol tivesse decidido, sem dó nem piedade, incinerar a Terra naquela tarde. Entra em casa, desgostosa, furiosa, chispando raiva, e começa a arremessar bibelots de porcelana e jarrinhas de cristal para tudo quanto era lado. Os empregados fogem espavoridos, abrigando-se da patroa nos lugares mais recondidos da casa.
Sobe para o quarto em passadas largas e iradas, fazendo a casa estremecer com os tacões do sapatos. Quando abre a porta, é atingida por um baque gelado que lhe tira a respiração. O quarto parece coberto de gelo... ela consegue mesmo ver uma névoa gelada a pairar, e vê sair da sua boca um bafo quente.
Fica atónita, parada no meio do quarto, sem perceber o fenómeno. Vai até à janela para ver se as estações se tinham trocado repentinamente, tendo o Verão dado lugar ao Inverno. Mas não... lá fora o calor continua impiedoso.
É então que se volta e dá de caras com o marido, sentado num pequeno sofá, com o cabelo a pingar água e com cinco hematomas inchados de picadas de vespa na testa. Leva a mão à boca e solta um grito rouco, “Jarvas!”. Mas o marido não lhe responde... afinal, havia mortos que falavam, mas este não era o caso. Lança-lhe apenas um olhar pesaroso de mágoa e vergonha e baixa os olhos.
O choque inicial dá lugar à raiva. “Jarvas!! Seu estúpido! Que estás aqui a fazer? Estás morto! Não deverias estar a voar em direcção ao Céu, ou ao Inferno?... Vai-te embora, deixa-me! Não podias ter deixado o vespeiro em paz? Tinhas que te armar em valente, não era? Sempre foste um gabarola patético!”. O Sr. Jarvas mantinha-se em silencio, mas mostrava agora um ar ofendido com as palavras da mulher. E é então que dentro da sua cabeça, a Dona Antonieta ouve a voz do marido, “Não me trates assim... olha em que estado eu estou.”. Dona Antonieta engole em seco... “Em que estado tu estás? Estás morto! É esse o estado em que estás!”, continuava ela, e cada palavra hostil que lhe saia da boca, alimentava mais palavras hostis, numa espiral imparável de insultos e impropérios.
O marido fica cabisbaixo e triste, ouvindo tudo aquilo... até que não aguenta mais e começa a chorar... “Pronto, pronto... desculpa. Não fiques assim. Estou muito aborrecida, sabes...?”. Dona Antonieta quebra perante a visão do marido, de cabelo molhado, coroado por picadas de vespa e de olhar triste. O quarto gélido obriga-a a vestir um vestido de lã e a colocar uma mantinha nos ombros. “Trouxeste contigo os ventos da Sibéria? Credo homem! Mais um pouco e começa a nevar aqui dentro. Vais ficar por cá?”... dentro da sua cabeça, ouve-o dizer que não sabe... que apenas está ali... um morto caminhando no mundo dos vivos. “Isto é aborrecido, sabes? É aborrecido. Vai estar sempre assim tanto frio?”... mas isso ele também não sabe.
Começa a tocar a sineta energicamente, chamando uma empregada. Precisa de um chá quente imediatamente, antes que morra de frio. “Jarvas, fica aí quietinho, nada de gestos bruscos... não quero que a rapariga se assuste.”... ele acena concordante.
A empregada entra ofegante, com o suor a escorrer-lhe da testa e do pescoço, amaldiçoando o calor abrasador. Pára atónita, olhando para a patroa vestida com pesados trajes de Inverno e mantinha nos ombros... “Minha senhora...sente-se bem?” pergunta timidamente, quase muda de espanto .”Pareço-lhe bem? O meu marido morreu e agora aparece-me aqui assim, neste estado! Como posso estar bem?”, cospe Dona Antonieta enquanto aponta para o marido sentado a um canto. A empregada olha para o sofá vazio, sem perceber. O seu olhar transparece incompreensão. “Não o vês? Não o vês ali sentado? O idiota do meu marido... não o vês?” ... mas a rapariga não via nada. “Jarvas, ela não te consegue ver?”, pergunta irritada... Mas ele não sabia. “Não sabes nada, tu! És um inútil! Um inútil e um imbecil!! Oh... desculpa, desculpa! Meu amor... desculpa. Isto é tudo tão aborrecido...”, vai ela dizendo com gestos exasperados.
O médico é chamado com urgência e declara que a senhora está com um esgotamento nervoso provocado pela morte do marido, mas que irá com certeza melhorar. Até lá, não deveria ser contrariada para que não ficasse ainda mais perturbada.
Os empregados vão sobrevivendo como podem aos ataques de raiva da patroa. Dona Antonieta não percebe como é a única a conseguir ver o marido, com a agravante de ser a única a morrer de frio por aqueles lados. Chega a pedir, numa das tórridas noites de Verão, que lhe acendam a lareira da sala... o que fez com que uma empregada desmaiasse de calor enquanto lhe servia a sopa ao jantar.
Os dias passam e a senhora não melhora. O médico é novamente chamado, mas desta vez abandona a casa com um semblante pesado e triste.
No pequeno quartinho, Dona Antonieta, de luvas e gorro de lã, está sentada numa mesinha com o marido. “Queres jogar xadrez, Jarvas?”, ele responde que não... que prefere damas. “Damas é para idiotas Jarvas!! Como me irritas, homem! Eu adoro-te, juro que te adoro, mas tu dás comigo em doida. Em doida!”.
Entra uma mulher e pousa um tabuleiro de chá a ferver na mesa, “O seu chá, senhora...”, diz ela gentilmente. “Ah! Obrigada! Muito obrigada! Sempre aqueço um pouco... está a ver o idiota do meu marido? Queria jogar damas... é porque sabe que jogo muito melhor xadrez que ele... homens! Toda a gente sabe que damas é para burros!”, resmunga Dona Antonieta com um ar de desprezo. O Sr. Jarvas, baixa a cabeça, envergonhado, exibindo a testa forrada de picadas de vespa. A mulher sorri e assente, divertida. Sai, a porta fecha-se e uma chave gira.
Passados vinte minutos, ressoa o riso de D. Antonieta por todo o manicómio. “Ah Jarvas! Nunca me consegues ganhar! És um péssimo estratega Jarvas! Péssimo! Meu adorável tolo...”.

pic by Meltys

32 comentários:

Random Thoughts disse...

Ai Jarvas Jarvas!

Denise disse...

Acho, muito sinceramente, que devias editar isto. Isto de ler as coisas no computador é complicado. Atrofia-me a vista. Bah.

Mas é um belo conto.
E a morte dele... confesso que me ri... ahaha

:)
Very nice, very nice...

Mag disse...

Muito Bom! :)
(by the way, não consigo inscrever-me na tertúlia :( )

Brown Eyes disse...

Ginger como sempre: Muito bom. Concordo plenamente com a Denise, publica estas histórias. Todas nós gostaríamos de ter, em papel, para podermos não só lê-las como guardar uma recordação da nossa amiga.
Sabes que leio com muita atenção e encontrei duas coisitas, que me parece que te passaram:
- O enterro, em vez de se ter sido uma manifestação de pesar..
Penso que o se está aqui por lapso - O enterro, em vez de ter sido uma manifestação de pesar..
- lhe cai em cima e o faz perder os sentidos.
Aqui eu poria – cai-lhe em cima e fá-lo perder os sentidos.
Vê-la porque às vezes parece-nos e pode não ser.
Um beijinho e cá fico à espera da história seguinte. Beijinhos.

Ginger disse...

Random, ai ai... =|

Denise, andas a surpreender-me sim senhora... =p
A ler coisas tão grandes e assim...
E claro que te riste. Tu és a malvadez personificada. -.-
Mas por acaso, também me ri a escreve-la. =p
eh eh eh

Mag, que chatice! :s Logo na última!!

Mary Brown, tal como um falcão (e como sempre, topas as coisas a léguas. =p
Já emendei o "se"... puro lapso.
Quanto à segunda chamada de atenção... eu prefiro assim, talvez por da outra forma ficarem muitos "lhes" juntos. =|

Beijinho e muito obrigada ;)

FaBiaNa GuaRaNHo disse...

Pobre Jarvas, porém ótimas palavras, publique-as, pois darão belo livro.
Parabéns, até fizestes me esquecer por um minuto minha tristeza traumática do funeral da Tertúlia.
O do Jarbas foi melhor...

Miss Me, Myself and I disse...

Muito agradáveis os seus contos :) belissima escrita

Unknown disse...

Só posso dizer isto: É o tipo de história que adoro... as frases em constante desenrolar noutras frases que se vão desenrolando numa cadência que nos faz ansiar pelo fim do parágrafo. Uma história que se adivinha ter contornos que não vamos adivinhar. A ironia constante e o final desconcertante. Adorei! E quem comentou tem razão! As tuas histórias mercem passar a livro. Precisam passar a livro. Palavrinhas demasiado bonitas e cheias de humor que não merecem estar escondidas de outros públicos...

Laetitia disse...

Eu adoro os teus contos! Escreves maravilhosamente bem.

Adorei este... Colocaste a minha cabecinha pensadora a imaginar as cenas todas.

Devias escrever um livro rapariga.

Beijinhos enormes

LH disse...

A forma como descreves o que imaginas é simplesmente arrebatadora, deliciosa e envolvente!
Em relação ao conto...a loucura é mais uma forma de fugirmos ao que nos causa dor!
Continua a escrever desta forma tão tua. :)*

Johnny disse...

Mais um excelente conto com a chancela de qualidade deste blogue e da sua autora. Muito bem.

Compondo o olhar ... disse...

que texto lindo!!! como sempre vc desafia nossas mentes com estes textos maravilhosos, parabéns!!
pena q esta terminando... última postagem das tertulias...
vamos torcer p que eles estejam com m novo projeto em mente, pois os nossos dias 15 agora serão totalmente sem graça....

bjocas mil

tbm participo

Nely disse...

Uma historia curiosa, algo hilariante, algo dramática, gostei muito.
-Os homens nunca dão ouvidos aos conselhos (sábios) das mulheres!
Pobre Jarvas!
Infeliz D.Antonieta!

Beijo com perfume de Rosa (mesmo) caída e...Arrepio na pele.

Jorge Pinheiro disse...

A morte também brinca... às vezes!

Serena Flor disse...

Coitado do Járvas...rsrs
Adorei teu conto, muito bom mesmo!
Tertúlia tem dessas boas surpresas não é? Pena que acabou.
Mas pra não te perder por aí, irei ser sua seguidora...bjs.

Anónimo disse...

Grande texto! Tem razão quem diz para editares! Muito obrigado por ter participado desta derradeira Tertúlia, que não por acaso, teve muitas postagens falando de morte!

Parabéns!

Anónimo disse...

Esqueci de dizer que o outro tema recorrente foi LIBERDADE, que na verdade pode-se encontrar com a morte!Ou não, dependendo do credo!

Mírian Mondon disse...

Ginger Girl!!! Quanto talento!!!
Voce é o ultimo presente que a Tertulia me deu!
Estranho seria se eu não gostasse do seu conto, morta estaria :)
parabens excelente!

Espero voce para um café no meu blog!

Abraço,

Eduardo Santos disse...

Olá amiga. Interessante a D. Antonieta, porque pelos vistos, o Jarvas éra um parvalhão! Gostei da história, é daqueles textos que prende o leitor, parabéns pelo trabalho. Tudo de bom para si.

LUA DE LOBOS disse...

texto fabuloso... é de uma ironoa fina e cortante que eu adorei!
xi
maria
p.s.
pq n pensas em editar?
manda-me um email e podemos trocar impressões sobe isso

Anónimo disse...

Olá!
Aqui quem fala é o Murilo, dos blogs Palavras de Osho e Os nascimentos das palavras.
Assim como você e dezenas e dezenas de outros amigos blogueiros, eu participava das blogagens coletivas do Tertúlia Virtual, belíssimo projeto de promoção de blogagens coletivas que infelizmente chegou ao fim em julho de 2009.
Para mim, a inicitativa do Tertúlia foi responsável pela realização de muitas das melhores blogagens coletivas da blogosfera em língua portuguesa.
A idéia de a cada mês reunir blogueiros em torno de um tema foi tão bem-sucedida que não podemos deixá-la morrer.
Para colaborar, lancei o Vou de coletivo!
Todo dia primeiro do mês será proposto um tema para ser abordado por blogueiros por meio de textos, imagens, vídeos e o que mais a criatividade permitir.
Assim que o tema do mês é apresentado, é aberta uma lista de inscrições. Basta você inscrever sua postagem que automaticamente será inserido um link para ela na relação de participantes. As inscrições ficam abertas o mês todo.
E você, gostou da idéia? Espero que sim!
Então não vamos perder o embalo. Logo sai o primeiro coletivo de 2009! Clique aqui e acesse o Vou de coletivo!
Abração!

Daniel C.da Silva disse...

Sem dúvida um desfecho imprevisível num conto mirabolástico que vai ganhando forma e humor à medida que o lemos e entra pelo non-sense que aqui fica francamente criativo.

Gostei muito. Como sempre, uma exímia em contos.

Beijinhos

Random Thoughts disse...

Sempre que venho aqui bato mal porque o CARAY da moldura tá inclinada :x That drives me crazy! IT'S CROOKED!

meldevespas disse...

Adoro!!!! Amei o tom jocoso que deste à "coisa" desde o ínicio até ao final, just perfect!
Parece tão simples escrever assim....mas não é, não pode ser, por isso, cá o je, não alteraria uma virgula sequer a tudo o que aqui escreveste, até porque "quem sabe da tenda é o tendeiro", e tu minha amiga és um tendeiro de primeira!

ahhh é verdade, concordo com a Denise, esta porra troca-me os olhos todos, pá! mas no meu caso acho que é a minha miopia aguda que não se dá mt bem com este fundo preto...
azar...

KissKissKiss

weee disse...

Ah pobre Jarvas, ganda maluco!
Se o meu marido morresse assim também eu ia parar à porra do manicómio :|

Miguel Ferreira disse...

Adorei...
É das minhas primeiras visitas e fiquei deliciado! :)

Coitada da D. Antonieta tinha de dar em louca com um marido assim! :)

Beijos

Rafeiro Perfumado disse...

Mas que belo conto! Só não gosto da mulher ser tão... tão mulher, ultrajada por ver o marido morto e o quarto naqueles estado. Na volta queria transformá-lo em sala de leitura, não? ;)

António Soares disse...

O Senhor Jarvas foi vitima do efeito borboleta, lol =)

Tenho casa nova Ginger...se me quiseres visitar, estou em...

http://a-place-like-home.blogspot.com/

Beijo*

António Soares disse...

Oh Ginger... a nova casa é:

http://a-place-like-home.blogspot.com/

A Place Like Home mas com os - a separar as palavras =)

E desculpa, pensava que te tinha avisado do selo =(

Beijoca*

António Soares disse...

Vou deixar aqui,porque ainda não li o conto acima =)

55 contos dentro de um livro?
Ginger... eu não sou fã de livros mas assim até eu começava a ler assiduamente =P

Beijo*

Clairvoyant disse...

Mais um sobre morte? Que fixação...
Pequena critica: tenta arejar mais o texto. Está demasiado compacto, ficando um bloco enorme que dá logo a ideia que se terá de desenvolver algum esforço para o ler. É psicológico, mas aprendi que facilita muito a que nos leiam se separarmos os parágrafos com uma linha em branco.

Starrydots disse...

Adorei, adorei, adorei. Fartei-me de rir e senti uma empatia enorme pla viúva quando foi parar ao manicómio.
Eu já não bato bem da cabeça e se uma dessas me acontecesse também dava em louca.