sábado, 9 de abril de 2011

Adónis, o cowboy

Adónis levantou-se assim que o sono retalhado lhe permitiu ver a claridade que começava a tomar conta do quarto. Olhou satisfeito para a moldura em cima da mesinha de cabeceira com uma fotografia de Tom Mix, o cowboy lendário do cinema norte americano.

Há meses que tinha substituído a foto da mãe por uma do homem com um chapéu branco de abas largas, dando nesse dia a dona Filomena mais um entre tantos outros desgostos e fazendo-a chorar baixinho a noite toda.
Vestiu-se como se estivesse a ouvir alguém gritar fogo na rua. Enfiou as duas pernas na mesma perneira das calças e insistiu um pouco até ouvir as linhas estalarem. Depois de dar pelo erro meteu cada perna na respectiva perneira mas tentou andar ainda com as calças pelos joelhos enquanto as puxava para cima, o que o fez estatelar-se ao comprido no chão de terra batida. "Foda-se", pensou apenas, pois esqueceu-se de abrir a boca para verbalizar a palavra.
“Mãe, é hoje mãe. A encomenda, mãe”, gritou ao passar a correr pela cozinha onde dona Filomena lhe preparava um pequeno-almoço de papas de aveia com mel. “Disparates! Olha, mas tu não comes? O correio só chega às dez horas”, gritou, mas ele já tinha saído para a rua.
Tinha a mão estendida para abrir a cancela tosca do jardim quanto uma colher de pau voou de dentro de casa e lhe acertou em cheio na nuca. “Vem comer as papas de aveia, já”, guinchou-lhe a mãe, de mão na cintura e cabelo preso num rabo-de-cavalo quase desfeito. “Com que idade vais ganhar juízo, Adónis” perguntou. O filho voltou a entrar na cozinha a resmungar baixinho, curvando-se ligeiramente ao passar por debaixo da porta. Dona Filomena esticou-se toda para chegar à orelha do filho e puxou-a, levando-o de arrastão até à mesa. “Que disparate isso de quereres ser quebói” resmungava  ao mesmo tempo que lhe deitava as papas a ferver dentro de um prato de barro lascado. “Cowboy”, corrigiu-a ele entre dentes.
A colher de pau ergueu-se no ao ar e caiu em voo picado acertando-lhe desta vez na testa. Engoliu as papas a escaldar, o que o fez queimar a língua e arfar como um cão exausto. “És tão desastrado. Que belo quebói vais tu dar”, disse a mãe no seu tom invarialmente jocoso. “Mãezinha, a próxima vez que passarem um filme no largo do coreto, quero que venha ver comigo. Vai ver que ser cowboy é o melhor dos destinos que um homem pode ter”, disse exaltado e de sorriso aberto. “Disparates”, resmungou ela enquanto varria o chão de terra batida.
Desde há um mês que Adónis aguardava a chegada de um revólver, um chapéu de cowboy, um cinto com coldre e umas esporas, vindos dos Estados Unidos da América. Tinha feito a encomenda ao seu tio Inácio que tinha imigrado há dez anos para Nova Iorque. “Isto aqui é um chiqueiro. Uma salada de gente que não se entende”, tinha ele escrito uma vez numa carta, assustado com agressividade dos irlandeses após a terceira cerveja e enojado com as fossas a céu aberto que enfeitavam os bairros de emigrantes.
A primeira vez que o tio Inácio viu um negro ser enforcado num poste e depois incendiado com as roupas empapadas em gasolina, caiu de cama durante duas semanas, perseguido pelos gritos de fúria da multidão e o cheiro a carne humana queimada, mas depois de mais cinco ou seis execuções públicas, a coisa já não o incomodava e passou a sentir até alguma excitação infantil sempre que o povo, equivocado ou não, fazia justiça pelas próprias mãos.
O carteiro chegou duas horas atrasado e sem revólver, chapéu, esporas ou coldre. “Não há nada para mim”, perguntou Adónis num desalento. “Volta para a semana. A aldeia aguenta sem cowboy mais uns dias”, disse numa gargalhada. Adónis afagou com um ar preocupado as faces esburacadas pelas bexigas, “Espero bem que sim, senhor carteiro. Espero bem que sim.”, disse ele com toda a calma do mundo, contemplando um ponto imaginário no horizonte. “Não é tudo mau. Pelo caminho passei pela Companhia de Cinema. Devem chegar lá para a tardinha.” disse o carteiro fazendo Adónis olhá-lo como se estivesse a ver a Nossa Senhora na aparição do 13 de Maio em Fátima. Só lhe faltou o cheiro a flores. Adónis ia dizer qualquer coisa, mas a emoção silenciou-lhe as palavras e ele sem um adeus sequer, correu em direcção à quinta do senhor Jarvas onde o aguardavam 30 puceiros de milho para esbulhar.
Quanto mais depressa acabasse, mais depressa poderia regressar a casa para tomar um bom banho, vestir o seu melhor fato e passar cera no bigode que parecia desenhado por um pincel com pouca tinta e pregado à martelada por debaixo do nariz para que não caísse.
O dia demorou mil anos a terminar e Adónis chegou a pensar que as maçarocas de milho se multiplicavam dentro dos puceiros, tal como Jesus tinha feito com o peixe e o pão. Assim que acabou de debulhar o milho correu para casa e encontrou a mãe a varrer como sempre o chão de terra batida.
“O Cinema Ambulante está cá. Hoje vem comigo mãe. Eu compro-lhe o bilhete. Vá meter o avental do domingo”, gritou ele, comendo metade das palavras com a histeria. “Disparates”, resmungou ela, disfarçando um sorriso e sentindo por aquele filho meio tonto, que nunca tinha conhecido pai, um amor que mal lhe cabia no peito.
Adónis lavou-se numa pia de água no quintal, esfregando-se minuciosamente com um pedaço de sabão tão rijo e áspero que ficou com a pele em fogo. Tirou o único fato que tinha de dentro do armário e vestiu-se à pressa, batendo com as canelas nos pés da cama e os cotovelos na cómoda que parecia ir desfazer-se em caruncho a qualquer momento. Depois de pronto demorou-se em frente ao espelho, colocando-se ora de frente, ora de lado, “Que magnífico cowboy eu vou dar. Esta vila não me merece”, dizia para o rapaz de corpo desengonçado e pele que parecia um crivo, que o mirava no espelho da casa de banho.
“Vou indo minha mãe. Venha lá ter”, disse à medida que passava a porta. “É um disparate, mas vou. Fecho as galinhas, penteio-me e vou ter contigo”, disse dona Filomena com a voz carregada de amor cansado.
Constatou que o sol ainda não se tinha enterrado no horizonte, e como tal, estava muito adiantado. Resolveu parar na taberna para matar tempo. “Adónis, rapaz! Que bom ver-te.”, berrou o taberneiro, ensopado em vinho, que mal conseguia andar e que servia os clientes aos tropeções nas mesas e cadeiras. “Vens cá pouco Adónis. Que belo rapaz te tornaste”, gozou o taberneiro, exibindo um sorriso esburacado e apodrecido. Os que estavam sentados na mesa riram cúmplices da maldade do taberneiro e cumprimentaram o rapaz com acenos moles.
Sua mãe tinha decidido dar-lhe a graça de Adónis quando, grávida de oito meses tinha visto uma lata de biscoitos trazidos de Paris em casa da sua senhora, com um belo homem em tronco nu na tampa. "É Adónis, o mais belo dos deuses gregos" tinha suspirado a senhora ao mesmo tempo que foi acometida por uma onda de calor inesperada. Dona Filomena deu então ao filho o nome do mais belo deus grego, o que infelizmente se veio mais tarde a verificar, que de propositado não tinha nada.
“Vais ao cinema não é? Ouviu-se a sineta tocar a tarde toda. Vai começar às oito horas.” disse o taberneiro enquanto lhe enchia um copinho de vidro baço com três dedais de bagaço. “Sim, espero que seja um filme do Tom Mix”, respondeu Adónis engolindo as últimas palavras juntamente com o bagaço. Os homens espalhados pelas mesas começaram a rir com a piada que era velha, mas que não perdia a graça. “Pois é Adónis, tens de aprender como fazem os cowboys” disseram, agradecendo intimamente aquele momento de divertida desgraça alheia.
Adónis achou que o melhor era não fazer caso daqueles seres de sonhos limitados, agricultores que na vida só viam arados e campos por amanhar, e pediu mais um bagaço. Deviam ser sete e meia quando começou a sentir o estômago refilar de fome e pediu um punhado de tremoços. Ia a levar o primeiro à boca quando entrou o doutor Afonso, o médico da vila. As conversas e as risadas cessaram e foram substituídas por acenos de cabeça educados e palavras de cordiais cumprimentos.
O doutor Afonso encostou-se ao balcão, e com o seu ar de quem sabia tudo o que há para saber no mundo, pediu um whisky. O taberneiro tirou a chave que tinha pendurada ao pescoço e abriu uma portinha por debaixo do balcão que continua unicamente uma garrafa de whisky, especialmente reservada para o médico. Serviu a preciosa bebida âmbar com gestos nervosos, tentado disfarçar a embriagues.
“Estás bêbado que nem um cacho, homem. Ganha vergonha”, disse o médico levando o copo aos lábios. O taberneiro pareceu ofender-se, e com o amuo de uma criança de escola, começou a limpar os copos com um trapo de cor indefinida pelo uso.
“Adónis, essa saúde”, perguntou o Doutor Afonso concentrando-se no rapaz. “Rijo que nem um pêro, doutor”, respondeu Adónis enchendo o peito, como que para demonstrar a veracidade da afirmação. “Muito bem, muito bem. E aquela maluqueira de quereres ser cowboy. Já te passou” perguntou num tom paternal que tentava em vão esconder dureza, pena e algum desprezo. “Nunca doutor. Não, não. Para a semana chega a encomenda do meu tio Inácio. Vou ter tudo o que preciso para ser cowboy”, disse o rapaz num tom ligeiramente ofendido. “Ah sim? Vais ter um revólver?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter um coldre?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter esporas para as botas?”, o rapaz acenou que sim. “Muito bem meu rapaz. Parece-me que tens tudo bem pensado”, disse o médico engolindo um gole de whisky e disfarçando um sorriso. “E um cuboiate”, quase gritou Adónis, com uma voz cheia de segurança. “Um quê”, perguntou confuso o médico. “Um cuboiate. O doutor esqueceu-se do cuboiate. O meu tio vai-me mandar um branco. Mandei-lhe a medida da minha cabeça e tudo, que é para não ser demasiado grande ou demasiado pequeno”, disse com os olhos a brilhar de excitação. “Ah, um cowboy hat”, riu o doutor Afonso, com a voz amansada pelo whisky e uma boa disposição crescente. “Muito bem meu caro. Que seria de um cowboy sem um cowboy hat”. Adónis sentia-se no centro do mundo por o doutor Afonso concordar com o seu plano, que há tanto tempo o tornava risível aos olhos de toda a vila. “E cavalo, já tens?”, perguntou o médico engolindo a tempo uma gargalhada. “A mula da minha mãe terá de servir, doutor. Pelo menos no inicio. Depois logo se verá”, disse Adónis num tom sério.
“Faltam quinze minutos para as oito”, disse agitado, olhando para o pêndulo do relógio na parede e enfiando os tremoços nos bolsos do casaco. “Está na hora”, afirmou como quem se despede, e saiu seguindo o som da sineta da Companhia de Cinema.
A Companhia de Cinema consistia numa camioneta de caixa fechada que se desfazia em ferrugem pelas estradas e caminhos que ligavam as povoações esquecidas. Parecia ter sido vermelha há muito tempo, mas agora não era nada. Os donos da Companhia de cinema eram dois irmãos, que tal como a camioneta, se desfaziam em pó de gente pelas estradas e caminhos. Tinham a idade indefinida que é característica a alguns velhos. Augustino Fonseca e Duarte Fonseca tinham gasto até ao último tostão a herança do pai naquele negócio visionário, e em menos de dois anos não só tinham recuperado todo o investimento, como tinham lucrado outro tanto.
Havia cerca de trinta cadeiras desdobráveis viradas para uma tela de tecido branco, preso nas extremidades a dois tubos de ferro espetados no chão. Atrás das cadeiras, virado para a tela encontrava-se o projector que seria operado pelo irmão Duarte Fonseca, e no lado direito estava um órgão preto com incrustações vermelhas e douradas de madeira talhada, onde  Augustino Fonseca tocaria a musica que acompanhava o filme sem palavras.
Adónis foi o primeiro a chegar, e mal conseguindo disfarçar o nervosismo, apesar dos três bagaços que trazia no bucho, foi cumprimentar os irmãos Fonseca. “Adónis, já te estranhávamos”, disseram os irmãos ao mesmo tempo, fazendo uma vénia teatral. “Estive a matar tempo na taberna e perdi-me nas horas”, disse Adónis passando satisfeito os olhos pelas cadeiras ainda vazias.
“Tom Mix” perguntou o rapaz esperançado. “Claro, não te queríamos causar um desgosto”, disse Augustino Fonseca com um sorriso de trinta e dois dentes de ouro. “Mas da próxima vez que viermos trazemos um filme com uma actriz nova muito famosa nos Estados Unidos”, avisou o irmão Duarte Fonseca em tom solene. “Sim, uma tal de Greta Garbo. Uma estampa, Adónis, uma estampa. Vi-a num panfleto”. Adónis fez um ar amuado, “Não pode haver nada melhor que os filmes do Tom Mix”.
Sentado na cadeirinha de madeira bamba de tanto uso, Adónis tentava permanecer quieto mordiscando tremoços freneticamente para disfarçar o nervosismo. A Companhia de Cinema ambulante tinha demorado mais de três meses a regressar à vila, deixando Adónis à beira do colapso nervoso e a ponderar seriamente em fazer as malas e mudar-se para a capital, onde, como já lhe tinham dito, o cinema não era ambulante, mas sim num enorme salão onde se passavam filmes todos os dias para uma plateia enterrada em cadeirões de veludo escarlate. Se não houvesse filmes todos os dias, certamente que haveria filmes dia sim, dia não, e se não houvesse dia sim, dia não, com certeza de que haveria filmes todos os sábados. Disto ele tinha a certeza, apesar de nunca ninguém lhe ter dito que efectivamente assim o era. Fazia questão de se sentar sempre na fila da frente, o que provocava protestos constantes de quem se sentava atrás.
“Vai lá para fundo ó gigantone! Para que te metes sempre aí à frente? Tapas metade da tela”, berravam-lhe os de trás. “Calem-se ou levam um calduço nas beiças”, rosnava ele erguendo a mão fechada no ar, complementando a ameaça a mímica ridícula. Os outros riam-se, porque apesar do tamanho que tinha, Adónis era um monte de ossos coberto de uma fina camada de pele e parecia às pessoas, que em dias de ventania ele poderia levantar voo e nunca mais descer à terra.
Dona Filomena chegou com ar ensonado. “Disparates” bocejou, enquanto se sentava na cadeira que o filho lhe tinha reservado. Não havia cadeiras suficientes, e os últimos a chegar tiveram de ficar ao fundo, em pé, ou sentados ao lado das cadeiras no chão.
Um piano começou a tocar e todos se calaram num silêncio expectante. O projector começou a trabalhar e uma bobiba com milhares de imagens coladas numa película plana começou a passar a uma velocidade tal, que as figuras pareciam movimentar-se de forma contínua. A plateia, apesar de já conhecer o sistema, soltava sempre pequenas exclamações de espanto perante aquele milagre do engenho.
O herói Tom Mix passou todo o tempo que durou o filme perseguindo ora um bando de malfeitores, ora um bando de índios Apache. Adónis, sentia tanto o filme que era como se estivesse dentro dele. Gritava pelo herói, roía as unhas e sofria com cada tiro disparado, cada emboscada e cada duelo ao pôr-do-sol. Desviou por uns segundos os olhos da tela e olhou para mãe procurando um sinal de aprovação. “Disparates”, resmungou ela,  que só queria que o filme acabasse para poder ir para casa.
Quando, algum tempo depois, vê Tom Mix cavalgar no seu cavalo branco e desaparecer de encontro ao maior pôr-do-sol que alguma vez tinha visto, Adónis deixa rolar pela face uma lágrima de admiração e precoce saudade.
Regressa para casa com a mãe que notou estar mais calada que de costume. “Que é minha mãe”, perguntou sem a olhar. “É aquilo que queres ser então”, perguntou-lhe. “Sim, é aquilo. Tal e qual”. “Mas cá não há índios”, disse num tom de voz sem expressão, “Nem bandidos”, continuou. “Você não entende”, gritou-lhe Adónis, apanhando-a de surpresa e fizeram o resto do caminho em silêncio.
A próxima vinda do carteiro trouxe a Adónis o que ele há tanto ansiava. Gritou um obrigado ao carteiro e, esquecendo-se que tinha terra para fresar na quinta do senhor Jarvas,  correu para casa aos tropeções, apertando a encomenda contra o peito como uma mãe que protege um filho da chuva.
Numa caixa de cartão amassada e pegajosa vinha um revólver, um cinto com coldre, umas esporas e o maior chapéu de feltro que Adónis já tinha visto. Pensou que se apanhasse uma brisa rasteira e constante, poderia planar com ele sobre os campos. O revólver parecia vivo.
Encandeou-se com o brilho do metal e com um misto de receio e excitação pegou nele para lhe tomar o peso. Depois de inspirar profundamente colocou o cinto, as esporas por cima das botas, o chapéu na cabeça e de revólver na mão foi à procura da mãe aos gritos. Dona Filomena respondeu-lhe de um lugar vago.
Deu com ela a podar uma videira. “Minha mãe, olhe para mim. Já sou um cowboy”, disse-lhe de revólver em riste. A tesoura de podar fez um voo pesado e acertou-lhe num ombro. “Vira isso para outro lado. Queres matar-me” perguntou-lhe, soltando perdigotos furiosos. “Ah, desculpe minha mãe, desculpe. Mas e que tal me acha”, perguntou cheio de orgulho e vaidade. Dona Filomena pousou uma mão na cintura e com a outra mão apontou para uma árvore a pouca distância dali. “Estás a ver aquele pombo”, perguntou num tom severo, “Mata-o para o almoço que eu depois te direi o que acho”.
Adónis protestou que não era isso que faziam os cowboys, mas dona Filomena, calejada pela vida e por sonhos mortos, disse-lhe que ou caçava o pombo ou nem almoço faria para ele de todo.
Adónis, amuado como uma criança a quem obrigam tomar banho, fez pontaria ao pombo e premiu o gatilho. As entranhas do revólver contraíram-se num estalido seco e nada aconteceu. Olhou confuso para a arma e levou-a ao nível dos olhos, como se o facto de a ver mais de perto tornasse possível entendê-la melhor. Abriu o canhão do revólver tal como tinha visto Tom Mix a fazer nos filmes. “Vazio, minha mãe, não tem balas”, ouviu-se dizer à mãe, numa voz à beira do choro. “Disparate! Tudo isto é um autêntico disparate”, gritou-lhe dona Filomena levando as mãos ao céus. Voltou-se novamente para a videira e continuou a podar como se nada tivesse acontecido.
Adónis sentiu uma fúria apoderar-se dele como se tivesse uma bola de fogo a consumir-lhe cada milímetro de pele. Voltou para casa aos pontapés a cada calhau que lhe aparecia pelo caminho. Escreveu ao tio Inácio uma carta de quatro folhas a reclamar a falta de balas, que era coisa que já estava implícita no envio do revólver, e que assim seria apenas um cowboy patético e o palhaço da aldeia. Pediu-lhe então que enviasse o mais rapidamente possível dez caixas de balas, porque dessa sempre duravam algum tempo.
A notícia de que Adónis era um cowboy sem balas correu em menos de duas horas toda a vila. “Desculpa filho, perguntaram-me por ti e descai-me com a desgraça”, disse-lhe depois dona Filomena.  O rapaz, carregado com uma vergonha que lhe transformou as orelhas em tochas constantes, fechou-se em casa durante dois meses a aguardar o envio das balas, esquecendo-se dos trabalhos que esperavam por ele na quinta do senhor Jarvas e de como era a luz do sol.
Passou-se o último mês da Primavera e o primeiro de Verão, até que finalmente as balas chegaram acompanhadas de uma carta ofendida do tio Inácio que tinha nada mais nada menos que dez folhas, mas que Adónis atirou para o lado e nunca chegou a ler. Atestou o canhão do revólver de balas e colocou o cinto, o coldre, as esporas e o chapéu.  Pediu uma moeda à mãe para ir à taberna beber um bagaço, e tendo assim a oportunidade de exibir a sua nova condição de cowboy. Ela atirou-lha à cabeça ao mesmo tempo que soltou um "Disparates".
Adónis entrou pela porta da taberna ao fim da tarde. O brilho do  sol que se punha no horizonte batia-lhe por trás, o que cegou quem se virou para o ver entrar. No início não o reconheceram. Um chapéu que mal cabia na porta devido à sua largura, coroava uma cabeça pousada num corpo que parecia um cabo de vassoura.  "Adónis", gritou o taberneiro com um arroto. Os homens esquecidos nas cadeiras reconheceram-no também no meio de gargalhadas contidas. O doutor Afonso, sentado numa das pontas do balcão, engoliu o whisky de uma assentada e de corpo quente virou-se para o rapaz, fazendo um esforço tal para não rir que teve de dar uso a todos os músculos do corpo. "Então Adónis, essa saúde", perguntou com o ar mais sério que lhe foi possível, dadas as circunstâncias. "Rijo como um pêro, doutor", disse Adónis num sorriso de muitos dentes. "Vejo que já és cowboy", continuou o médico. Os risos que até agora vinham das mesas numa surdina contida, explodiram numa gargalhada geral. O taberneiro, de bochechas escarlates pela bebedeira e pelo esforço do teatro, juntou-se aos risos e descontrolou-se da bexiga. Adónis sentiu uma fúria ressentida a envolve-lo, e quanto deu por si, tinha o revólver apontado ao tecto, "Parem com isso já. Eu agora sou o cowboy da vila. Respeito", berrou ele num estado de nervos tal, que as ultimas palavras lhe saíram da boca num guincho imperceptível. "E a partir de agora quero ser tratado por Adónis Mix". Por uns momentos fez-se um silêncio surpreso, que segundos depois deu lugar a mais uma vaga de gargalhadas. Adónis, impregnado de vergonha e à beira das lágrimas resolveu disparar ao tecto para impor respeito, tal como tinha visto um sherif fazer num dos filmes do Tom Mix. Premiu o gatilho, e o estrondo fez com que todos se atirassem ao chão com expressões de espanto. A bala bateu no candeeiro, fez ricochete  num prato de latão que enfeitava a lareira e um novo ricochete que a direccionou em cheio à testa de Adónis. Caiu devagar, ondulante na sua magreza, como uma fita de sede dançando ao vento. Ficou de olhos abertos a contemplar o tecto. Levantaram-se todos com o som de mesas e cadeiras a cair e debruçaram-se sobre ele. O doutor Afonso, de copo meio de whisky na mão abriu caminho pelo meio dos homens calados. "Está morto", disse com uma fungadela e esvaziando o copo, "Alguém vá chamar a mãe".

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Alma vazia

Os talheres batiam suavemente nos pratos e os guardanapos de linho iam e vinham num som abafado. Ninguém falava, pois era de mau tom falar com uma defunta à mesa. Há muitos anos que mal se ouvia uma palavra naquela casa. As vozes tinham-se calado quando o coração de Dona Eduarda foi ferido de morte pelo marido. Não se notou logo que Dona Eduarda tinha morrido, pois nos primeiros tempos ela parecia apenas triste. Mas o coração ferido apodreceu-lhe no peito, secou e fez-se pó. O seu corpo começou a cheirar a flores murchas e da sua boca emanava um ligeiro cheiro de águas mortas e fétidas.
O marido tinha desde há muito declinado o seu lugar numa das pontas da mesa, e sentava-se sempre ao lado da mulher com os olhos vidrados na sua direcção e o peso da culpa a vergar-lhe a espinha. Ele falava-lhe, mas ela nunca lhe devolvia uma palavra. Nem a ele nem a ninguém. Os filhos, sentados à volta da mesa com as respectivas mulheres, tinham-se habituado desde crianças a ter como mãe uma defunta, e nada daquilo lhes parecia trágico, triste ou mesmo estranho.
Todos os dias, antes da sobremesa, o marido de Dona Eduarda estendia-lhe um bilhetinho dobrado,  onde tinha escrito tristes e breves pedidos de desculpas. Escrevia-os à noite antes de ir para a cama e guardava-os debaixo do travesseiro. "Desculpa", balbuciava ele com voz tremente, enquanto lhe estendia o pedaço de papel branco. Fazia-o em frente de todos, como se assim conseguisse a absolvição pública do seu pecado. À mesa, acostumados já com aquele ritual de tanto anos, já ninguém reparava. A entrega dos bilhetes tinha-se transformado em mais um hábito mundano, e era encarado com tanta naturalidade como escovar o cabelo de manhã ou sacudir um tapete à janela. O pedaço de papel dobrado permanecia intocado ao lado da esposa até ao final da sobremesa. Ele voltava a pegar no bilhete e puxava um enorme embrulho do chão para cima da mesa. Desapertava-lhe o cordel encerado e abri-o como se fosse um presente. Colocava o pequeno pedaço de papel junto a centenas de outros, e voltava a fechar o embrulho. Levantava-se então da mesa e ia dar um longos passeios pela cidade, com o peso da  sua culpa amarrado firme e seguro debaixo do braço.
Naquele dia o homem sentia-se mais cansado e derrotado que nunca. O peso de tantos anos de angústia  tinham-se condensado naquele momento. Tinha passado a hora do almoço a contemplar as amendoeiras em flor que os saudavam batendo com os longos ramos nas janelas. Sentiu o mundo pairar sobre ele, pesado e acusador. Uma tristeza esmagadora apoderou-se do seu ser deixando-o nauseado.
Assim que a empregada começa a colocar os pratinhos com bolo de morango e creme na mesa, ele entrega à esposa o habitual bilhetinho, mas desta vez não era branco. Tinha-o escrito em papel roxo e salpicado com umas gotas da sua água de colónia. A mesma que usava desde que a mulher lha tinha oferecido pela primeira vez há cinquenta e cinco anos atrás.
"Eduarda, desculpa. Por favor...", inclinou-se para ela e olhou-a de frente, num derradeiro esforço de ver vida ali. Mas não encontrou nada. Estavam vazios os olhos e no seu peito apenas existia um montinho de pó que tinha sido outrora um coração. Engoliu em seco enquanto juntava o pedaço de papel roxo aos outros bilhetes. Deixou correr algumas lágrimas livremente enquanto saía de casa e fechava a porta sem ruído.
Ao fim da tarde alguém toca à porta suavemente. A empregada dirigiu-se à saleta onde as mulheres bordavam e os homens liam o jornal e fumavam charutos. Com um ar afectado anuncia um jovem que diz ter uma entrega para fazer naquela morada.
O rapaz entra, com uma expressão que podia ser lida como um misto de tristeza, consternação e desconforto. Debaixo dos braços carrega dois embrulhos. Um era de papel amarelo novo, mas o outro era extremamente familiar. "Há meses que me encontro com um senhor todas as tardes no parque. Oferecia-me sempre tabaco... conversávamos muito, eu e ele...", pára, visivelmente incomodado. "Ele hoje pediu-me para entregar este embrulho à esposa.", disse percorrendo todos com o olhar. Imobilizou-se ao vislumbrar o vulto de Dona Eduarda. Só aquela podia ser a mulher morta de que lhe tinha falado o velho. "Minha senhora", disse pousando-lhe o embrulho gasto ao colo. cobriu com levemente as suas mãos, as mãos geladas da velha. "O seu marido pediu-me que lhe entregasse isto e depois saltou ao rio. Ele queria muito que lesse os bilhetes...". Uma onda de choque abafado percorre todos quantos estavam na sala. As bocas abrem-se num espanto e o rapaz abandona a sala sem mais uma palavra.
Levam Dona Eduarda para o quarto e deixam-na na cama com o pesado embrulho ao lado. Ela olha-o com com os seus olhos vazios e atira-o para dentro do cesto de papeis.  Despeja-lhe para dentro o óleo de uma lamparina e pega-lhe fogo.
Deitou-se na cama, sentindo-se finalmente em paz, e deixou que a ténue chama de vida que durante tantos anos fez o seu corpo funcionar, finalmente se apagasse.



terça-feira, 16 de março de 2010

O banco de jardim


Não se lembrava de alguma vez ter sentido tanto frio. Sentado num banco de jardim prepara-se para inspirar profundamente, mesmo sabendo que isso iria ser doloroso. O ar entra dentro dele como uma avalanche que enche os pulmões de raspas de gelo e bloqueia-lhe a respiração por alguns segundos.
Estica as pernas para frente enquanto une as mãos em concha atrás da nuca.
Era a única pessoa à face da terra. Todos os que se cruzavam com ele não passavam de sombras esbatidas e apressadas que tentavam fintar o frio.
Ao seu lado está pousado um envelope grande e amarelo, amassado pelas inúmeras viagens. Fica a olhar para o rio, perguntando-se quanto tempo demoraria a morrer naquelas aguas geladas que avançavam furiosamente até ao mar.
Sente alguém aproximar-se de passo arrastado. "Boa tarde", ouve dizer. Não olha o desconhecido, mas pela voz percebeu que devia ser muito velho. Demasiado velho para estar ali numa tarde tão fria. "Boa tarde.", responde indiferente. Havia dezenas de brancos livres no jardim, mas o velho sentara-se ali, ao lado dele. Isso aborrece-o um pouco. O velho estende-lhe um pacote de tabaco e uma mortalha. "É servido?". Ele aceita, sem saber porquê.
Olha para o velho de soslaio e para o seu fato bastante usado, mas de corte impecável. Na cabeça trazia um chapéu de feltro cinzento que deixava ver algumas madeixas de cabelo cor de prata.. Ao seu lado tem pousado um grosso embrulho amarelo atado com um cordel. O papel está bastante gasto e manchado, mas o cordel é novo. Ele sorri num esgar , pensando o quão caricato seria para quem passava ver ali sentados, numa tarde gelada, um jovem e um velho, ambos a fumar com gestos sincronizados, ambos com um embrulho amarelo ao lado, ambos a contemplar o rio com um vazio no olhar.
"Estou quase a morrer e nunca cheguei a viver", diz o velho de forma vaga e inexpressiva. "Poucos chegam verdadeiramente a viver", responde-lhe o rapaz, naturalmente, como se na vida já nada o pudesse surpreender. O tempo passa lento e silencioso. "Obrigado pelo cigarro.", diz enquanto se despede com um simples aceno e sem olhar para trás, de mãos nos bolsos das calças e o envelope amarelo preso debaixo do braço.
Volta nos dias seguintes ao mesmo banco de jardim. O velho chega sempre pouco depois. Não se admira... vê a presença do homem como lógica, quase necessária. Aceita sempre o tabaco que ele lhe oferece. “O que tem nesse envelope?”, pergunta uma tarde o velho sem olhar para ele. O rapaz  demora mais de um minuto a responder, “Um manuscrito, um livro que escrevi.”, responde, ouvindo a sua voz sair tensa. “Porque anda com ele?”, insiste o velho com um ar estranhamente paternal. “Ando a tentar que mo publiquem. E o senhor, o que traz nesse embrulho?”, pergunta sentindo-se subitamente furioso com o velhote. “Hum”, é tudo o que ouve na boca do velho, que entretanto se levanta e vai embora sem proferir palavra, com passos lentos e dolorosos.
Nessa noite ao deitar, deu-se conta de que iria sentir falta do velho caso ele deixasse de aparecer no banco do jardim todas as tardes.
“O que tem nesse embrulho?”, pergunta-lhe uma tarde o rapaz novamente, tentado parecer casual. “As minhas culpas. Neste embrulho trago as minhas culpas.”, diz de voz sumida, enquanto fixa os olhos na ponte sobre o rio.
A Primavera cobriu as amendoeiras do parque de pequenas flores brancas.
O rapaz senta-se e pousa o eterno envelope amarelo. Nessa tarde o velho tarda em aparecer. O rapaz vai olhando impacientemente para a esquerda e para a direita. Fica ali a ouvir a água do rio chilreando alegremente, enquanto vai ficando cada vez mais impaciente. Quando está prestes a levantar-se para ir embora vê o velho chegar num passo mais lento que o normal. O homem senta-se sem o habitual “boa tarde” e sem lhe oferecer tabaco. “Trouxe-lhe uma tarte de groselha da pastelaria... o senhor oferece-me sempre tabaco e eu... nunca lhe trouxe nada... “, diz estendendo-lhe uma pequenina caixa de papel. O velho abre a caixa sem uma palavra e come a fatia de tarte em quatro dentadas. Não diz obrigado mas sorri-lhe com os olhos brilhantes. Olha fixamente para o rapaz enquanto lambe as ultimas migalhas de tarde dos lábios enrugados. “Este embrulho começa a pesar demais.”, diz. “Matei a minha mulher há cinquenta anos. Matei-a por dentro, entende? Ela era feliz, um ser radioso. Desde que a matei, nunca mais falou. Anda pela casa em silêncio, com a alma presa por um fio. Está no limbo... nem morta nem viva. Não vive, existe.” , o velho continua de voz embargada, “Todos os dias lhe escrevo um bilhete a pedir desculpa por a ter morto. Há cinquenta anos que lhe escrevo... estão todos aqui, neste pacote. Ela nunca os leu. Recusa-se. Recusa-se porque não me quer perdoar.”. O rapaz cala no fundo da garganta as mil perguntas que quer fazer ao velho. Vê-o a afagar o pacote, de lágrimas nos olhos e sente uma terrível vontade de o abraçar.
“Há quanto tempo nos encontramos aqui?”, perguntou pensativo. “Há alguns meses.”, respondeu-lhe o rapaz, sentindo um nó que lhe começava a estrangular o estômago. O velho leva a mão ao bolso da lapela e tira um pequeno cartão. “Esta é a minha morada. Importava-se de entregar este pacote à minha mulher?”, pergunta calmamente. “Claro, sim... claro.”. “Obrigado.”. O velho levanta-se e dirige-se à ponte. Caminha devagar, com o peso da culpa a vergar-lhe os ombros. O rapaz vê-o trepar com bastante esforço o pequeno gradeamento de ferro enferrujado. Por um instante sustem-se equilibrado no ar, o tempo suficiente para gritar “Obrigada pela tarte de groselha e boa sorte com o livro!”, e deixa-se cair na corrente violenta. O rapaz fica parado, a olhar, incapaz de se mover. Leva a mão ao bolso e tira um pacote de tabaco e mortalhas. Enrola um cigarro muito devagar . Acende-o e dá um bafo longo. Olha para a morada no pequeno cartão acinzentado. Pega no pesado embrulho do velho e no seu envelope amarelo e afasta-se, com os dois embrulhos debaixo do braço e cigarro na boca.

domingo, 7 de março de 2010

A casa dos rouxinóis

 

As várias centenas de rouxinóis acordavam o senhor Justino, como sempre, por volta das cinco horas da manhã. A musicalidade das pequenas aves perdia-se na quantidade de pios que tornavam o som insuportável. A passarada era a paixão da esposa, Dona Carlota Maria que, desde o primeiro dia de casada os começou a coleccionar, desalmadamente, em inúmeras gaiolas estrategicamente colocadas em todas as varandas e terraços da casa. Havia gaiolas em finas ripas de madeira simples, mas também gaiolas em arame trabalhado, madeira branca cheia de rendilhados, ou pintadas de dourado. Todos os Domingos aparecia uma romaria de gente para ver o espectáculo, incluindo estranhos de vilas e aldeias vizinhas que, tendo ouvido falar na “Casa dos Rouxinóis”, o queriam comprovar com os seus próprio olhos, visto ser certo e sabido que a língua que espalhava uma história normalmente exagerava na magnitude da mesma. Nunca ninguém saiu daquela casa desapontado. Dona Carlota Maria inchava de vaidade enquanto o marido se refugiava no quarto à beira de um colapso nervoso, a tremer e a roer almofadas.
A mulher, tal como os rouxinóis, começava os seus monólogos por volta das cinco da manhã e só se calava para dormir, ou durante os breves instantes em que parava para tomar fôlego.
“Levanta-te homem que o sol já vai alto! Mandei a criada comprar mais cera para o teu bigode, mas ela esqueceu-se. Eu até lhe escrevia uma lista de compras, mas de que lhe serviria se a desgraçada não sabe ler? Já pensei em perder algum tempo e ensiná-la, mas logo alguém a resgataria com um salário mais alto. Já não há lealdade nos serventes como antigamente. Não sei o que se passou com o colete do teu fato preto, tem uma mancha que não sai. Como é que fizeste aquilo? Não tens cuidado nenhum, é o que é! O que seria de ti sem mim, gostava eu de saber… sempre atrás de ti a emendar os teus disparates. Se não te acordasse eras bem capaz de dormir até morrer! És um preguiçoso, é o que é! A preguiça é o instrumento do Diabo! E os meus joelhos que há três dias não me dão descanso… aproxima-se uma tormenta, e das grandes! Escreve o que eu te digo. Nunca me enganaram, estes meus joelhos. E que desgastados que estão por causa do raio da escadaria em caracol que te lembraste de fazer nesta casa! Devias-me trazer ao colo até ao andar de cima! Isso sim. É o que merecias! Sabes quantos degraus tem? Aposto que não sabes. O que é que isso te interessa, se não és tu que tens problemas de joelhos, não é? Pois eu te digo que tem cento e cinquenta e três degraus! Achas bem que eu tenha de, até ao final dos meus dias, trepar cento e cinquenta e três degraus cerca de dez vezes por dia? É que para descer, todos os santos ajudam, mas e para subir? Oh suplicio! Deus me leve para o Paraíso, que no Inferno já eu estou há quinze anos! Amanhã é o baile dos fidalgos do Monte Branco. Como raio vou conseguir tirar a mancha do teu colete até lá? Imagina a nossa figura, tu de colete com uma nódoa, sem cera no bigode e eu a crepitar dos joelhos! É nisto que nos tornamos! As mais importantes famílias da região vão lá estar, e tu com uma nódoa no colete! Que vergonha! Oh tivesse eu ido para noviça! Teria mais animação num convento que com este casamento desgraçado! E larga esse cachimbo homem, que o cheiro me mete os pulmões numa aflição!  ”
E assim continuava Dona Carlota Maria desde que o sol nascia até que o sol se punha. Aos seus monólogos torturantes juntava-se o incessante chilrear dos rouxinóis. O senhor Justino não sabia o que tinha acontecido à antiga Dona Carlota Maria, que nos tempos de noivado mal abria a boca, mas que após a noite de núpcias a abriu para não mais a fechar.
Os bailes dados pelos fidalgos do Monte Branco já não eram novidade, mas causavam sempre uma alegria quase infantil ao senhor Justino, pois Dona Carlota Maria assim que lá chegava começava e espalhar a sua torturante verborreia pelos restantes convidados dando-lhe umas boas quatro horas de sossego. Ficava numa das poltronas a fumar cachimbo, deliciado, acenando cordialmente a este e àquele conviva. Contemplava com alguma tristeza as mulheres dos outros, que com uma delicadeza quase angelical mantinham conversas alegres e risinhos escondidos por leques. Este sossego terminava assim que subiam para o coche e voltavam para casa. Naquela noite, entrar para o coche custou-lhe mais do que costume. Olhou aquele objecto negro à sua espera… A caixa de madeira arredondada e escura parecia ganhar a vida de um sarcófago. Entrou relutante, olhando por cima do ombro para as janelas iluminadas do palacete, de onde ainda se ouviam as risadas dos últimos convidados.
“Viste o vestido da mulher do corregedor? Escarlate! Que desenvergonhada! E como se atreveu a vir de cabelo solto? Uma mulher casada e daquela idade, de cabelo solto! Oh que vergonha! Já nem estes bailes são o que eram antigamente! Sabes porquê? As pessoas já não têm valores! E o comendador que de braço dado à esposa, andava a piscar os olhos à amante? Toda a gente sabe e ninguém diz nada! Toda a gente menos a sonsa da mulher dele… e daí não sei. Se calhar sabe e não se importa! É neste estado que está o mundo! Aquele champanhe vai-me fazer dor de cabeça. Que triste a ganância dos fidalgos que faz servir aos convidados champanhe reles! Onde andaste a noite toda que nem uma única moda dançaste comigo? Os meus joelhos podem já não estar muito bons graças a ti e aos teus cento e cinquenta e três degraus, mas garanto-te que ainda gostam de dançar uma moda. A orquestra desafinava como se tivesse o diabo à solta dentro dos instrumentos, mas mesmo assim, gostaria de ter dançado uma moda. Antes de casarmos tu gostavas de dançar. Não sei o que te aconteceu! Oh que miserável eu sou! Só Deus sabe o que te aturo!”
Os primeiros raios de sol despertaram os rouxinóis que imediatamente iniciaram a zoeira do costume. Dona Carlota Maria levantou-se imediatamente, começando a sua cantilena asfixiante assim que colocou o primeiro pé no chão.
O senhor Justino ficou mais algum tempo deitado na cama, olhando o vazio do tecto e analisando matematicamente aqueles quinze anos de casamento.
Quando se levantou dirigiu-se ao suporte de ferro num dos cantos do quarto que tinha um espelho, uma bacia em esmalte cheia de água fresca e uma toalha. Olhou-se no espelho e os seus olhos riram. Pegou na lâmina de barbear, e com dois gestos rápidos cortou o bigode repenicado e teso da cera. Afagou a pele macia e sorriu. Com passos calmos e gestos lentos, correu todas as varandas abrindo as gaiolas uma a uma, deixando fugir os rouxinóis. Alguns permaneciam estáticos nos poleiros. A esses, pegava-os com as mãos e arremessava-os ao ar com uma gargalhada. Muitos caíam atordoados no jardim por não conseguirem voar.
À falta de ocupantes, as gaiolas foram-se silenciando aos poucos. Não tardou que Dona Carlota Maria desatasse a subir as escadas em caracol, aos guinchos, para ver o que se passava com os seus rouxinóis.
O senhor Justino esperou por ela ao cimo das escadas apenas de calças e suspensórios. O seu peito desnudo e forte batia desalmadamente, como uma criança que sem qualquer arrependimento que está prestes a sofrer as consequências de uma travessura.
A urgência da subida fazia a esposa arfar mais que o normal.
“Malditas escadas! Os meus rouxinóis! Onde estão os meus rouxinóis, que não os ouço? Os meus rouxinóis, oh os meus queridos rouxinóis! Que fizeste tu? O que fizeste homem? Oh, o teu bigode! O teu lindo bigode! A única coisa de jeito que tinhas! E que preparos são esses? Porque não estás vestido, homem desavergonhado e preguiçoso? Ai o bigode! Porque o rapaste? Enlouqueceste? O que se passa com os rouxinóis?”
O senhor Justino esperou que a mulher chegasse ao último degrau, e deixou-se ficar estático, barrando-lhe a passagem.
“Sai-me da frente homem! O que fizeste aos meus rouxinóis? Deixa-me passar alma do demo!”. E foi então, que com uma calma subaquática, o senhor Justino espetou o dedo indicador no peito da mulher. Ela desequilibrou-se e com um “Oh!”, foi rebolando pela escadaria abaixo, sentido no corpo cada um dos cento e cinquenta e três degraus.
Imobilizou-se ao fundo das escadas, de pescoço partido, pernas torcidas, coluna estilhaçada e olhos abertos num espanto.
O senhor Justino vai até uma das varandas cheia de gaiolas vazias e senta-se numa cadeira de balouço. Tira o cachimbo do bolso das calças e acende-o. Fecha os olhos calmamente enquanto o fumo lhe inunda os pulmões. Oscila a cadeira para trás e para a frente, serenamente, numa dança muda, apreciando pela primeira vez em muitos anos o mais profundo dos silêncios.

oil painting por Frieseke   


terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A longa espera...

Finalmente estava velha! Tinha esperado muitos anos pelo momento exacto em que sentiria mais para lá do que para cá, e quando esse momento chegou aceitou-o com júbilo e excitação.
Espreitou a manhã radiosa pela janela do quarto e sorriu com os poucos dentes que lhe restavam. Olhou para o penico debaixo da cama e pela primeira vez desde que se conhecia, deixou-o ficar em vez de o ir despejar à latrina. Tomou essa decisão de forma travessa e triunfante.
Foi buscar uma pá à arrecadação e dirigiu-se para o quintal. Caminhou pesadamente, com a dificuldade da idade até chegar ao pé de nove enormes vasos de roseiras alinhados em fila, que tinha coleccionado ao longo de mais de sessenta anos de trabalho árduo. Tentou mover um mas não conseguiu. Já não tinha forças para tanto. Empurrou-o até que tombasse para o chão em mil cacos. Começou a cavar no lugar do vaso até que a pá começou a fazer um som seco. Puxa um pesado pote para fora do buraco. Abre-o ali e mergulha as mãos velhas em centenas de moedas de ouro. Dá uma sonora gargalhada que culmina em risinhos nervosos. Olhou para os restantes vasos de rosas por uns momentos com visível satisfação.
Voltou para casa e encheu a sua malinha de domingo de moedas. Guardou as restantes num buraco do soalho e com o seu melhor xaile aos ombros caminhou com os seus passinhos lentos de velha até à casa do ferreiro. Não se sabia porque chamavam ferreiro ao ferreiro, já que ninguém jamais o tinha visto a moldar o que quer que fosse, no entanto todos iam ter com ele quando precisavam de coisas mais complicadas de obter. A velha em breves minutos disse-lhe tudo o que pretendia. O homem olhava-a embasbacado à medida que ela ia falando. No final lança-lhe um olhar de dúvida, que a velha apagou ao virar a malinha cheia de moedas em cima da mesa. Apenas soltou um "Oh Deus!" enquanto a velha lhe piscou um olho, satisfeita.
Na semana seguinte começa a chegar a enorme encomenda feita. Cria-se um enorme alvoroço em frente à casa da velha, enquanto de carroças, homens suados descarregam as mais variadas coisas. Uma enorme banheira de porcelana branca com pés em metal dourado, metros e metros de tecido de estampados garridos, caixas de madeira cheias de copos de cristal acomodados em palha, um piano de cauda, enormes braseiros de cobre, carpetes fofas enroladas e presas por um cordel, muitas caixas de conteúdo desconhecido e até objectos apenas cobertos por panos brancos mas sempre carregados com o maior dos cuidados.
A noticia espalha-se por toda a vila até chegar a casa das filhas da velha. Eram sete no total, todas idênticas de aparência mas não de humores. Caminham esbaforidas para casa da mãe, perplexas, surpresas, comentando umas com as outras a notícia e questionando a sua veracidade.
As filhas passaram por caixas e mais caixas largadas no jardim da mãe e entraram na casa aos tropeções.
"Minha mãe!", disse a mais velha, "Que se passa aqui? O que é tudo o isto? Enlouqueceu, minha mãe?". As outras acompanharam-na num coro lamuriento, "Enlouqueceu minha mãe?". A velha que já tinha previsto esta reacção, e que até tinha um pequeno discurso improvisado, exaltou-se e deixou o discurso entalado na garganta. "Como ousam?", grita subitamente. "Como se atrevem? Criaturas ingratas! Criei sete filhas e trinta e um netos, tantos netos que nem sei o nome de todos! Vivi para vocês mais de sessenta anos sem nunca soltar um único "ai"! Esperei toda a vida por isto. Finalmente o descanso! Agora é a minha vez de ser servida! Acabaram-se as couves da minha horta e os ovos dos meus poleiros. Acabaram-se os almoços de Domingo em minha casa! Até almoços de Páscoa e as Ceias de Natal!", pára arfando e de olhos a sair das órbitas. Aponta o dedo indicador à filha mais velha, "Este Domingo o almoço é em tua casa. No Domingo a seguir é em casa da segunda mais velha e assim sucessivamente e até chegarmos à mais nova. E depois começa-se do princípio. Estamos entendidas?". Responderam em forma de grunhidos surpresos enquanto olhavam umas para as outras virando a cabeça em seis direcções. "Mas mãezinha, onde arranjou dinheiro para comprar tudo isto?", pergunta a mais velha aflita, na sua qualidade de porta-voz. "Poupei-o!", gritou a mãe num guincho rouco e gutural que as fez fugir em debandada.
Nessa tarde a velha recebeu uma procissão de raparigas candidatas a um emprego de copeira, e quem diz copeira diz cozinheira, jardineira, caseira e tudo o mais que houvesse para fazer naquela casa. As moças iam-se apresentando à sua frente com uma pequena vénia. Amaldiçoava o cadeirão de pele novo extremamente desconfortável em que estava sentada, ao mesmo tempo que ia declinando as moças umas atrás da outra. "És muito baixa, não chegas aos sítios mais altos!", "És muito alta, deves ser muito desengonçada e trapalhona!", "És demasiado branca, nunca deves ter trabalhado na vida!", "És vesga, não quero morrer a olhar para uma vesga!". A velha achou que com a sua idade já não seria preciso estar com cortesias e de certo também não lhe restava muito tempo para simpatias, desta forma vomitava assim as verdades com enorme satisfação. Chegou a vez de uma rapariga de tronco caparrudo e sobrancelhas unidas. "Caramba! Que feia que és! Feia que nem um trovão! Caramba, caramba!". A rapariga olhou para a velha sem surpresa e olhos inexpressivos. "Gosto de ti, sabes? Pareces forte! Aposto que nunca adoeceste na vida. Como te chamas minha filha?", "Lúcia, minha senhora.", disse a rapariga sem convicção, como se aquele nome não significasse nada."Lúcia... Muito bem! Dou-te este trabalho se te puder chamar Feia." riu a velha com uma ponta de malvadez. "Aceito o trabalho se lhe puder chamar Velha.". A velha soltou uma sonora gargalhada e quando deram por si, ambas riam como umas perdidas, a Velha e a Feia. "Feia, a primeira coisa que vais fazer, é levar este cadeirão para o quintal e pegar-lhe fogo.".
Feia veio mudar completamente a vida da velha. Fazia o trabalho pesado de cinco homens com a mesma destreza com que enchia de rosas todas as jarras da casa. Tinha um dom especial para os doces, o que fazia com que a velha passasse as tardes a empanturrar-se de barrigas de freira e creme de ovos.
Todas as noites, quando Feia a despia para lhe dar um banho, dizia-lhe ,"Feia, ouve o que te digo, poupa as moedas de ouro que te dou, guarda-as como se disso dependesse a tua vida, e se tiveres a sorte de chegar à minha idade, esbanja-o como se não passassem de moedas de latão, ouviste?", "Sim minha Velha.", dizia sempre Feia na sua voz sem expressão, de joelhos ao pé banheira de porcelana, enquanto espremia um paninho embebido em água de rosas pelas costas da Velha. Aquela anciã tinha-lhe ocupado no coração o lugar que pertencia à mãe que nunca tivera.
Aos Domingos, a filha designada de dar o almoço à família toda, recebia a mãe à porta, acomodada numa carroça forrada de almofadas fofas, puxada por um burro com uma colar de cetim vermelho cheio de guizos pendurados. Tinha jurado a si mesma que até morrer não voltaria a dar um passo, a menos que fosse estritamente necessário.
Sentavam a mãe sempre no topo da mesa, de onde ela, qual rainha no trono, ia lançando comentários agrestes em todas a direcções. "Que decote é esse? Pareces uma rameira, valha-me Deus!", "Como estás velha e acabada minha filha. Esse desleixo também não ajuda!", "Venha cá meu genro. Que é isso no colarinho? Se se lavasse como deve de ser, não teria a camisa nesse estado!", "Que arroz é este? Parece borracha. Oh valha-me Deus, que me querem matar!", "Como estão travessas estas crianças! Não lhes metam a mão agora, não... que ficam perdidas!". A ladainha durava toda a refeição e ia-se aperfeiçoando de Domingo para Domingo, levando ao desespero as filhas, os genros e os netos.
Feia não largava a velha nem por um momento, fazendo questão de que nada lhe faltasse, mesmo quando lhe apetecia chá de jasmim a meio da noite, e tivesse de ir apanhar as folhas ao quintal debaixo do maior dos temporais.
Os anos passavam lentos e tépidos. A velha habituara-se a fazer longos monólogos todas as tardes, enquanto Feia lhe escovava os finos cabelos prateados por puro entretenimento. Contou a Feia como tinha ficado viúva logo após o nascimento da sétima filha, da herança deixada pelo marido que ela com juízo tinha conseguido multiplicar muitas vezes, do desgosto que tinha por nem uma única filha ter escolhido um noivo decente... e por fim, quando a sua confiança em Feia era inabalável, contou-lhe dos oito restantes vasos de roseiras no quintal que marcavam o lugar onde estava enterrada o resto da sua fortuna. "Quando eu morrer, vais lá e tiras um para ti. O resto é para as minhas filhas. São uma lorpas, mas o que é que se há-de fazer...? Entendeste Feia?", "Sim minha Velha", respondeu-lhe Feia agradecida, com um travo de tristeza na voz.
Numa manhã de sol invernal, a velha não acordou. Feia encontrou-a com um chá de jasmim frio na cabeceira da cama e um pratinho de barrigas de freira intacto. Tinha uma expressão suave e serena, de uma paz imensa.
Depois do funeral, Feia chamou as filhas a casa da velha. Na pequena mesa da sala de jantar tinha alinhados os oito potes cheios de moedas que tinha desenterrado no quintal. Explicou perante o ar assombrado das sete mulheres, que a cada uma estava destinado um pote. Enquanto elas olhavam em silêncio e de mão sobre a boca a enorme fortuna sem saber o que dizer, Feia pegou numa pequena trouxa de serapilheira com os seus poucos pertences e encaminhou-se para a porta. "Espere! Há um pote a mais!", gritou-lhe a filha mais velha. "Esse a sua mãe deu-mo a mim.", disse às sete cabeças viradas para ela. "E não o leva?", perguntaram surpreendidas sete vozes em simultâneo. "Não, obrigada. A vossa mãe já me deu mais do que eu alguma vez pude imaginar.", disse na sua voz sem expressão enquanto girava a maçaneta da porta."Mas espere! A nossa mãezinha, que falava tanto consigo... nunca lhe disse nada sobre nós?", perguntou esperançada a filha do meio. "Sim... dizia muitas vezes que não sabe o que fez a Deus para que lhe tivesse calhado umas filhas tão lorpas.". E saiu porta fora.

oil painting por Gerrit Dou
Para Fábrica de Letras - "Velhice"

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Gustava

Caminha descalça por entre os estábulos e os currais vazios. As pedras magoam-lhe os pés. De alguns dedos escorre sangue vivo e quente, noutros vêm-se crostas secas de outros dias.
A sineta lá em baixo continua a tocar insistentemente. Está a tocar há já cinco minutos, calcula ela. É uma estupidez ser a única servente daquela família de loucos. Como podiam pensar que ela sozinha conseguia fazer tudo? Limpar, cozinhar, tratar da horta...! “Um dia vou-me embora daqui!”, prometia ela muitas vezes. Nem sequer lhe pagavam, de que lhe valia servir naquela casa? Aos trinta anos estava acabada. A juventude tinha-se esfumado no meio de tantos trabalhos pesados... às vezes pensava que nunca tinha sido jovem, que tinha tido sempre as mãos gretadas e a tez queimada do sol.
A sineta continua imparável. Acelera o passo ao ver o vulto do jovem montado numa bicicleta, com uma enorme cesta de verga com rodas atada de atrelado.
Ela pára, do lado de dentro do portão, de olhar furioso e cabelo em desalinho.
- Tanta pressa!! Não estás farto de saber que trabalho sozinha aqui? – atira-lhe ela, mais em tom de afirmação que de pergunta.
Ele olha para ela, chocado com o quanto aquela rapariga se degradava de mês para mês. Ainda se lembrava dela a correr pela quinta com um vestido de linho branco, lançando gargalhadas ao vento. Sente um nó de tristeza que lhe aperta o estômago e o coração a ficar um pouco mais vazio.
- O que foi? Porque olhas assim para mim? Endoideceste, tu? Se me pagassem eu comprava umas tamancas novas, mas dinheiro nem vê-lo! Nem vê-lo! As que tinha partiram-se há uns dias. O merceeiro paga-te? – Pergunta mirando-o com um profundo interesse na resposta. Ele acena que sim ao mesmo tempo que lhe estende um pacotinho de caramelos.
- Oh, trazes-me sempre um doce. Até parece que estás apaixonado por mim! - Ri-se ela deliciada, mostrando os dentes que outrora tinham sido da cor da porcelana.
Ele cora e crava os olhos na terra. Sempre sem articular palavra, entra pelo portão e puxa até ao casarão, no topo do monte, a cesta carregada de pacotes de açúcar e arroz, frascos de café, pacotinhos de especiarias e farinha, destinadas a abastecer os móveis da cozinha. Fazia esta visita todos os meses. Ninguém daquela casa ia à vila há já muitos anos.
O Conde, que nunca tivera cabeça para os negócios nem para o jogo, era apaixonado por essas duas actividades. Assim sendo, perdeu tudo o que tinha na roleta e nas cartas e em investimentos desastrosos na capital.
Herdara o título aquando da morte de seu pai, que, completamente louco, costumava correr pelos campos a tentar apanhar borboletas, tropeçando em tudo quanto era pedra. É que se a paixão do filho eram os negócios e o jogo, a paixão do pai era a entomologia. Uma das pedras tinha sido fatal... e lá ficou o conde, estendido no chão com o crânio rachado ao meio. O filho assumiu o titulo com um ar pomposo... a primeira coisa que fez foi casar com uma prima abastada, afim de não dispersar fortuna. Infelizmente o gene da loucura corria pelas veias da família há muitas gerações... depois de perder tudo enlouqueceu, a seguir enlouqueceu a mulher e logo depois foram os filhos.
Viviam então alienados do mundo, naquela mansão decrépita, levando vidas de faz-de-conta, como se vivessem num gigantesco palco de teatro.
Está o rapaz a pousar as mercearias na mesa de mármore da gigantesca cozinha, quando o Conde entra, de bigode repenicado a fumar cachimbo.
-Gustava! Ainda bem que a encontro! Olhe, queria pedir-lhe que sirva veado ao jantar... há imenso tempo que me anda a apetecer veado. Bem tenrinho! Tome providências! – diz de modo afectado, e de postura rígida que nem um cepo, enquanto uma traça lhe pousa na lapela do casaco. Sai da cozinha apressadamente, deixando um rasto de cheiro bafiento, e sem prestar a mínima atenção ao rapaz.
- Veado! Oh... Veado! Eu lhe digo o veado! – Atira ela num grito rouco – Veado! Já me viste isto? Não tem onde cair morto e pede-me veado! Eu dou-lhe o veado! Desde que esta família enlouqueceu que eu me desdobro para que eles não morram à fome. Às vezes tenho de tirar da minha própria boca para lhes dar a eles! Um dia desapareço daqui! Nem me pagam... de que me serve? - Continuava ela na ladainha do costume.
O rapaz regressa à mercearia, pedalando velozmente, agora com a ligeireza do cesto vazio. O vento que lhe bate na cara lava-lhe as lágrimas.
O patrão olha para ele apreensivo.
- Como está ela? - pergunta preocupado. Mas o rapaz não responde, e num acesso de raiva começa a empilhar enormes sacos de farinha como se de plumas se tratassem.
Nessa tarde Gustava passeou-se demoradamente pela horta à procura de algo para o jantar. Os pés descalços enterravam-se na lama fria. Entre as alfaces roídas pelos coelhos e uns feijões verdes retorcidos e meio secos, encontra alguns tomates. Leva-os para a cozinha no regaço do avental sujo e corta-os em tiras muito finas. Coloca-os artisticamente numa bandeja de prata enquanto resmunga "Veado, bah, eu dou-lhes o veado.". Solta um sonoro espirro e é percorrida por um calafrio gelado. "Vou adoecer por não ter um raio de uns tamancos! Maldição!". Do salão começa a ouvir o habitual sininho de cobre que a condessa costumava agitar quando já estavam todos à mesa.
Entra na outrora sumptuosa sala de jantar iluminada apenas com três velas de sebo e pela lareira que crepitava baixinho. Leva nas mãos sujas a travessa cheia de tomate salpicado com oregãos frescos.
A família estava toda ali. A condessa tinha um vestido amarelo canário em veludo surrado. As rendas dos punhos estão desfeitas e arrastam-se lambendo a toalha de linho coberta de manchas amareladas. O cabelo está apanhado num penteado cheio de rococós que Gustava compunha religiosamente todas as manhãs, durante cerca de uma hora. Das orelhas caem-lhe uns pendentes de diamante, os únicos que se tinham salvado às penhoras. Gabava como sempre a beleza da filha com uma voz inchada de orgulho enquanto dava pequenas palmadinhas satisfeitas. A filha, sentada e de corpo estendido de forma lânguida sobre a mesa, segurava um pequeno espelho de prata, com que se mirava demoradamente, sempre sem dizer palavra. Na outra ponta da mesa, a quatro metros da esposa, está sentado o conde, de luneta posta, a ler nada. Fala animadamente com o filho, vestido com o velho uniforme de soldado do bisavô que tresandava a naftalina.
- Pois meu pai, garanto-lhe que combaterei com ousadia, destreza e valentia! O inimigo saberá do que é feito o sangue que nos corre nas veias! - diz numa voz teatral e aguda, como se estivesse a representar num palco. O pai ouve, assentindo orgulhoso com pequenos acenos de cabeça.
Gustava, de travessa na mão, vai servindo os pratos com pedacinhos de tomate.
- Este veado está uma delícia! Não está minha esposa?
- De facto querido... Gustava, deixa-me que te diga, cozinhas melhor a cada dia que passa. - Diz a condessa com um risinho histérico.
- Está extremamente suculento.
- De facto.
- Sublime!
Gustava dá uma fungadela mal disposta e fica de plantão ao lado da mesa.
Todas as noites o espectáculo era o mesmo. O filho dos condes de uniforme militar, pronto para partir para a guerra na manhã seguinte, o conde que acenava com a cabeça aguardando as glórias do filho, a condessa sempre com o mesmo vestido amarelo canário enaltecendo a entusiasticamente a beleza da filha, que por sua vez não largava o espelhinho de mão, nem enquanto comia.
A sala tinha quase todas as vidraças partidas, e os cortinados pendiam esfarrapados das janelas altas. Os castiçais de lustre jaziam por todo o lado, despidos de velas.
No meio da penumbra, Gustava começa a tremer de frio. Os pés descalços estão gelados. Olha para eles de forma abstracta, como se não fossem seus. Não sabe como irá sobreviver ao Inverno sem tamancas. "Maldição!".
Depois de servir a sobremesa, que a família devorou julgando ser profiteroles de chocolate, mas que não passava, obviamente, de pedaços de tomate, retira-se para um dos antigos currais, há muito abandonados. Mergulha na palha fofa e adormece num sono pesado. Tal como em todas as noites, sonha que anda pelos jardins vestida com um vestido linho branco e uma fita azul atada à cintura. Nos seus sonhos vivia na casa com os condes, num dos enormes quartos com cama de dossel. Quando os primeiros raios de sol a acordam, sente a febre a queimar-lhe a testa. Sacode a febre e os sonhos e vai para a horta, amanhando o sustendo daquela família de gente doida.
Na próxima ida do merceeiro a sineta é tocada suavemente. Está ansioso por ver a rapariga, e faz um esforço imenso para não saltar os portões e ir à procura dela.
Gustava chega passado um pouco, visivelmente doente. Tosse violentamente e arde em febre. Ele olha aflito para os pés descalços dela... havia lama seca à volta dos tornozelos e estavam cobertos de chagas purulentas.
- Estou doente. Maldição! Não olhes assim para mim. Fecha essa boca! Não preciso da pena de ninguém. - Rosna com os modos do costume. Ele estende-lhe um pacotinho de chocolates recheados de creme, arrependido por não ter trazido antes umas tamancas. Ela aceita, mas desta vez não o acusa de estar apaixonado por ela, nem tão pouco sorri. Leva-o em silêncio até à cozinha, e espera que ele vá embora, sempre sem uma palavra. Continua a tossir, envolta num xaile de lã à medida que o vê desaparecer na sua bicicleta.
O rapaz volta para a mercearia envolto num desespero que lhe fechava os pulmões e o fazia respirar estrangulado.
- Preciso de comprar umas tamancas para a Gustava. Anda descalça com este tempo... – Diz alto, apesar de estar a falar para si próprio
- Desgraçada da rapariga! – diz o merceeiro aflito.- Voltas lá amanhã e levas-lhe umas. Coitada, ao que ela chegou...
Amanheceu a chover torrencialmente. Um vento furioso varria tudo, tombando os vasos nas varandas e partindo os galhos das árvores. O rapaz tentava pedalar a bicicleta. Sentia uma urgência sufocante em entregar a Gustava as tamancas que levava penduradas às costas dentro de um velho saco de farinha, como se aquelas tamancas pudessem acabar com todas as desgraças do mundo, e, principalmente, como se pudessem fazer o tempo recuar.
Demora três vezes mais a chegar à casa do Conde do que o habitual. A chuva era tanta que ele não conseguia distinguir o palacete no alto do monte. Salta da bicicleta e atira-a para o chão. Corre para o portão e desata a tocar a sineta, mas o som é abafado pelo som ensurdecedor da tempestade. Tal como temia, ninguém aparece e começa então a tentar trepar o portão, mas a grades escorregadias e altas depressa o fazem desistir.
- Gustava! – Chama por ela, apesar de saber que ninguém o ouve. – Gustava!
Vê um vulto especado a olhar para ele de uma das janelas. Não consegue distinguir quem é, e começa a bracejar e a gritar, tentando chamar a atenção. O vulto faz um sinal de continência e desaparece. O rapaz continua agarrado ao portão, com as tamancas no ar. Pela porta da entrada vê sai o vulto, que não passava do filho do conde, vestido de soldado e de carabina ao ombro. Marchou, tal qual soldado no pelotão até ao rapaz.
- Que desejeis aqui? – Pergunta desconfiado. – Sois inimigo?
- Não, não… venho só trazer estes tamancos para a Gustava. – Diz levantando os tamancos à altura da cara.
- Lamento, mas a Gustava finou-se.
- Finou-se? Como assim, finou-se? – Grita o rapaz desesperado.
- Finou-se, então… morreu. Entende? Finou-se. Primeiro ficou doente, tossia muito, principalmente para cima da nossa comida… muito desagradável, muito desagradável… e hoje de manhã finou-se.
- E onde é que ela está? – Pergunta entre lágrimas, olhando para os tamancos, como se ainda fosse possível salvar a rapariga.
- O meu pai enterrou-a hoje de manhã no jardim das traseiras. Um bom homem o meu pai… mesmo com aquelas dores de costas, ainda conseguiu abrir um buraco para enterrar a moça. – Diz sem abandonar o tom monocórdico de um soldado a prestar contas ao general.
- Sem missa? Não houve missa, nada? Nem caixão? Nada? O que vai ser da sua pobre alma? – Grita-lhe enfurecido no auge do desespero.
-Alma? Os pobres não têm alma. Ainda mais ela, que nos tossia para cima da comida!
Voltou para a mercearia, mal pedalando, deixando que o vento o levasse. Foi com a cabeça livre de pensamentos e de coração vazio.
- Morreu. - Disse, deixando cair os tamancos no chão com um baque surdo.
- Quem morreu? - Perguntou aflito o merceeiro, enquanto entregava o troco à sobrinha do padre.
- Morreu... morreu a Gustava. - Disse em palavras despidas de entoação.
- Gustava? - Gritaram ambos.
- Quem morreu? - Perguntou uma velha que acabava de entrar, e que, tal como todos os velhos, tinha uma curiosidade acrescida a respeito de quem morria naquela terra.
- A Gustava.
-A filha mais velha do conde? - Perguntou espantada. - Pobre rapariga! Daquela família de loucos, foi a mais desgraçada.
E naquele momento a chuva parou. Um sol radioso abriu caminho por entre as vidraças da janela, iluminando com uma luz ténue o par de tamancas que jazia no chão.

oil paiting by Alexej Harlamo

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O velho e o Chopin


- Esta vila é muito bonita, não é Chopin? – Perguntou enquanto esfregava as mãos uma na outra, tentando aquecer-se.
Chopin olhou para ele e deitou-se no chão, com o estômago colado às costas, de tanta fome.
- Dantes, quando eu trabalhava aos fins-de-semana, e chegava cansado, a minha mulher tinha sempre à minha espera uma ceia de faisão. Já te tinha dito isto Chopin? – Disse, em jeito de afirmação vaga, enquanto olhava em volta com os olhos perdidos. Tosse de forma dolorosa durante um minuto e depois pára, de peito cansado.
O banco de jardim estava gelado e húmido. O velho sentia o frio a atravessar-lhe a pele, a carne e por fim a chegar aos ossos gastos, onde doía como se lhe estivessem a espetar facas. Afaga os joelhos cansados… o tecido das calças, surrado e roto, ameaçava desfazer-se a qualquer momento, desprendendo-se daquele corpo humano, como fuligem que se solta de uma chaminé.
- Vem Chopin, vamos tentar comer qualquer coisa. – Tosse novamente, em agonia… leva um lenço à boca para se limpar, e fica por uns momentos a olhar para o sangue. Suspira e volta a enfiar o lenço sujo num bolso ainda mais sujo. Caminham lado a lado, lentamente, ao ritmo da velhice e da doença que lhe corroía a carne. Passam por uma árvore de Natal da altura de dois homens, coberta de laços vermelhos e bolas de vidro coloridas. Por baixo, repousava um presépio, de estatuetas toscas esculpidas em madeira e de cores sumidas pela idade.
A padaria estava envolta numa nuvem de fumo que cheirava a bolos e a pão quente. Na porta estava pendurada uma coroa de azevinho, carregada de bagas vermelho vivo.
- Bom dia minha menina! Não me arranja nada com que entreter os dentes? A mim e ao Chopin… que ainda está com mais fome que eu. – Os seus olhos de raios cinzentos salpicados de verde, sorriem de forma amena, reflectindo uma bondade latente. A rapariga por detrás do balcão sorri-lhe com franqueza.
- Ontem apanhei uma descompostura do meu pai! Não lhe posso dar comida todos os dias, senhor. Olhe, posso dar-lhe um pãozinho de leite com queijo e uma chávena de café quente, pode ser? – Ouviu a própria voz sair da garganta, carregada de culpa e pena.
- E para o Chopin? – Perguntou com desalento e rugas tristes.
Chopin, olhava ora para um, ora para outro, impávido.
- Não posso, só lhe posso dar a si. Ao seu cão não pode ser… tenho muita pena. – Disse, enquanto preparava o pão-de-leite e chávena de café a ferver.
O velho dividiu a preciosa iguaria em três partes iguais. Deu duas ao cão e comeu a outra lentamente, enquanto beberricava o café.
- Onde vai passar a Consoada, senhor? – Perguntou a menina com tristeza. – Não pode ficar na rua na noite de Natal. Alguém tem de fazer alguma coisa!
- A cabana abandonada ao pé do rio até que nem é má, se não me cair em cima antes – riu-se o homem - Eu fico bem, não se preocupe. Acha que me arranja dois pãezinhos-de-leite para Consoada, menina?
- Oh, claro que sim! Passe aqui amanhã ao fim da tarde, que eu dou-lhe os pães-de-leite e um frasco de compota. Tenho algumas moedas guardadas. Se eu pagar, o meu pai não pode refilar… - disse algo divertida com a travessura. – Eu até o convidava para passar a consoada lá em casa, mas vamos passar o Natal a casa de uns primos, numa vila aqui perto.
O velhote anui com um gesto lento da cabeça e volta para o frio da rua, sempre com o cão ao lado, que o olhava com gratidão por os dois terços de pão-de-leite que tinha no estômago.
- Não há cão como tu, Chopin! Nunca te esqueças disso. – Disse emocionado, por entre mais um ataque de tosse violenta.
Parou em frente à ourivesaria a apreciar os relógios de cordões de ouro reluzente que se exibiam na vitrina. O ourives saiu à rua, e acendeu um cachimbo.
- Bom dia meu caro! Ainda por cá? Está a gostar disto, hein? – Perguntou o homem de fato engomado e barriga de frade, com um sorriso prazenteiro.
- Oh sim. São todos muito simpáticos por estes lados! – Respondeu o velho com gratidão.
- E diga-me… onde é que vai passar a Consoada? É já amanhã. – Perguntou, engasgando-se numa nuvem de fumo.
- Na cabana ao pé do rio.
- Ah! Isso é que não pode ser! Não pode ficar na rua na noite de Natal! - indignou-se -Alguém tem de fazer alguma coisa! – Gritou o ourives enquanto consultava as horas no seu relógio preso por uma corrente de ouro. Franziu o sobrolho a fim de focar os ponteiros e voltou a guardar o relógio no bolsinho do colete. – Eu teria muito gosto em recebe-lo em minha casa, mas vem uma prima da minha mulher da capital, com o seu rancho de filhos, e íamos acabar por ficar todos muitos apertados. Olha, passe por cá amanhã à tardinha, antes de fecharmos. Digo à minha mulher para lhe trazer umas fatias de peru.
- Muito obrigado senhor! Não como peru há muitos anos. Muitos anos! – O velho irradiava gratidão. – Ouviste Chopin? Peru! Peru, Chopin! Ouviste bem?
Estava a atravessar a rua, quando o dono da garrafeira o chamou. - Hei! Chegue aqui! Como anda? Ainda por cá? – Perguntou o homem muito rapidamente num grito alegre.
- Ainda. Devo de ir embora para a semana. – Disse o velho entre um ataque de tosse.
- E onde é que vai passar o Natal, meu caro?
- Na velha cabana ao pé do rio… consegui juntar um pouco de lenha seca, o suficiente para fazer uma pequena fogueira. A menina da padaria vai dar-me uns pãezinhos-de-leite e compota, e o ourives umas fatias de peru. Há muitos anos que não tenho um Natal tão farto! – disse o velhote quase rindo.
- Oh, não pode ficar naquela barraca na noite de Natal! Alguém tem de fazer alguma coisa! Escute, passe por cá amanhã antes de fechar aqui a loja, que eu dou-lhe uma garrafa de tinto! Que lhe parece? – Disse o homem piscando o olho. – Eu até o convidava para passar o Natal connosco, mas vai lá estar o meu irmão… o médico, sabe, e ele tem a mania que é muito fino. Não se dá com toda a gente, sabe?
- Não faz mal. Mas muito obrigado pelo vinho, é muita bondade da sua parte. Vinho para acompanhar o peru! Muito obrigado senhor… Deus lhe pague.
O velhote afasta-se com lágrimas nos olhos, agradecido pela generosidade daqueles desconhecidos.
- Sabes Chopin, antes, no Natal, a minha mulher fazia sempre um grande banquete. Punha a toalha vermelha na mesa, tirava a louça de porcelana dos armários, os copos de cristal, e fazia uma fogueira de labaredas altas. E depois trocávamos presentes embrulhados em papel de seda colorido. Já te tinha dito isto, Chopin?
O Chopin lambeu-lhe a mão e o velho afagou-lhe a cabeça morna. – Não há cão como tu, Chopin. – disse com a voz embargada por entre mais um violento ataque de tosse. Olha para a mão que levou à boca, velha e ensanguentada e fecha os olhos num instante de reflexão.
Custa-lhe cada vez mais andar… uma nuvem de bafo quente e fraca sai-lhe da boca. A neve caía como farinha peneirada, e cobria tudo como uma mantinha de croché fofo.
A florista, de avental de couro, está atarefada a mudar vasos e jarras de flores de sítio em frente à loja.
- Bom dia! Ainda por cá? Como vai o senhor? – Pergunta ela alegremente ao velho indigente.
- Vai-se andando, muito devagarinho. – Diz ele bem disposto. Encosta-se a um poste e começa a tossir violentamente.
- O senhor não me parece nada bem. Precisa de uma cama macia para dormir e um lume forte para o aquecer! – Recomendou preocupada a florista.
- Pois… é como diz a senhora. Mas terei de me contentar com a cabana abandonada ao pé do rio. – Diz um velho com um sorriso terno, resignado e sem mágoa.
- É lá que vai passar o Natal? – Pergunta, indignada. – Isso é que não pode ser! Não, não! Alguém tem de fazer alguma coisa! Ouça, passe por aqui amanhã, à horinha de fechar, que eu dou-lhe uma cestinha de frutas e um pacotinho de nozes.
- Oh, muito obrigado! Como lhe agradeço! - Diz o velho emocionado.
- Não agradeça… afinal de contas, é Natal. Não pode é dormir naquele casebre. Alguém tem de fazer alguma coisa. Eu até o chamava lá para passar o Natal connosco, mas o meu marido é muito avesso a ter desconhecidos em casa. Se não fosse isso…
- Não tem importância. Eu fico bem… tenho lenha seca, pães-de-leite, compota, peru, vinho e frutas! Vai ser um regalo, este Natal. – Diz o velho rindo, visivelmente contente e agradecido.
O velho volta para o casebre. Não tem porta nem janelas. Vêem-se as vigas de madeira, descarnadas dos tijolos de barro envelhecido. Olha para o monte de lenha a um canto e sente-se tentado a acende-la. – Não pode ser Chopin… é para a noite de Natal.
O dia amanheceu cinzento e gelado. A neve, furiosa, voava vinda de todas direcções. O velho tremia a um canto, a invadido de frio e de febre. Não se consegue mexer com as dores que lhe massacram o corpo e com a tosse que lhe sacudia a alma em convulsões violentas. Balbucia palavras sem nexo e chama por Chopin. O cão, que ainda não tinha saído da sua beira, lambe-lhe as faces com ternura e deita-se em cima das pernas velhas e cansadas para o aquecer.
O tempo lá fora, passa lento e o velho recompõe-se um pouco. – A fome aperta, não é Chopin? O que vale, é que hoje vamos ter um banquete digno de um rei! Essa é que é essa!
Olha pela janela e calcula que a tarde já deva ir a meio. – Temos de nos apressar Chopin. – Diz o velho. O cão agita a cauda, contente por ver o dono de pé e pousa-lhe a pata numa perna. – Não há cão como tu Chopin, nunca te esqueças disso.
Caminham, velho e cão lado a lado. Os ataques de tosse são cada vez mais violentos e longos. Começa a cair uma chuva miudinha e fria. – Depressa Chopin! Vamos acabar ensopados.
Chega à vila silenciosa e escura. A árvore de Natal, de pé no meio da praça, olha para eles, triste. A chuva miudinha que entretanto se tinha tornado de uma tormenta de ventos fortes e gotas pesadas, tinha arrancado mais de metade das bolas e laços que enfeitavam a árvore, e estavam agora espalhados pelo chão, rodopiando ao sabor da tempestade.
O velho acelera o passo e dirige-se à padaria. Fecha as mãos em concha e espreita pelas janelas escuras – Oh Chopin! Chegamos tarde Chopin! Oxalá a ourivesaria ainda esteja aberta…
Caminham apressados. A ourivesaria apresentava-se também de janelas escuras e sem vida. O velhote, num acto desesperado, bate à porta com força… mas apenas lhe responde um silêncio frio. – Oh Chopin, nem pães-de-leite nem peru. A culpa é minha, que não consegui vir mais cedo.
Chegaram à garrafeira. A porta fechada de madeira negra e ferrolhos pesados, condizia com o desalento das janelas de cortinas corridas. O velho engole em seco e deixa cair uma lágrima, apenas uma. A fome triturava-lhe o estômago, impiedosa e cruel. A chuva já lhe tinha trespassado o casacão pesado e a velha camisola esburacada de lã. Uma das solas desprende-se das botas e ele fica com um pé descalço no chão.
Numa última chama de esperança, corre para a florista. Queda-se à entrada fechada. As mãos caem-lhe ao lado do corpo num desalento gritante. As lágrimas, agora soltas e abundantes, preenchem-lhe as rugas desenhadas pela idade e pelas amarguras da vida…
- Vamos embora Chopin. Desculpa, oh, porque não vim mais cedo? Desculpa amigo, que noite bonita e farta poderíamos ter tido…
Caminham de volta ao casebre, ensopados e a tremer, com uma fome que consumia cada célula dos seus corpos. O velho tossia sem parar, com uma violência que lhe despedaçava os pulmões. Quando se aproxima do casebre, verifica horrorizado e em pânico, que metade tinha ruído com a força da tormenta. Num dos cantos, o telhado permanecia intacto, mas no lado onde ele tinha guardado a lenha, jazia agora um monte de escombros ensopados. O velho, de lábios trementes e gelados, deixa-se cair de joelhos e chora. Chora a vida que teve, chora a vida que poderia ter tido, chora os seus sonhos e a suas esperanças. Chora tudo o que não chorou durante anos e anos de vida solitária e errante. Agacha-se a um canto e deixa-se ficar a tremer e a chorar. – Desculpa Chopin… merecias melhor que isto na Consoada. – O cão gane baixinho e deita-se em cima do velho, que o afaga com os dedos magros e débeis. E é então, que sob um trovão ensurdecedor, a terra tremeu e o resto da cabana ruiu.
No dia de Natal, um sol frio mas radioso, penetra pelas janelas e acorda a vila adormecida. Alegres e agasalhados, de barrigas ainda cheias da noite anterior, dirigem-se à Igreja para assistir à missa de Natal. Conversam alegres. Falam na tempestade da noite passada, na alegria que era ter a família junta, nos presentes trocados…
A florista pergunta se alguém sabia do velho indigente. Mas ninguém sabia, ninguém o tinha visto. Ele não tinha aparecido para ir buscar os pães-de-leite, o peru, o vinho e a fruta. Ouvem-se vozes desconsertadas, embaraçadas, culpadas.
- Meu Deus, pobre desgraçado! Não me digam que passou a Consoada sozinho naquele casebre a cair aos bocados! – Gritou incrédulo e chocado, o dono da garrafeira. – Não chegou a vir buscar a garrafa de vinho… - murmurou para si próprio.
Um pequeno grupo forma-se. Apressam-se à cabana junto ao rio. A menina da padaria ia em ultimo, a chorar baixinho, - ele não veio buscar os pães-de-leite e a compota… devia ter ido à procura dele… oh – Repetia para si própria. Quando lá chegam, só encontram um monte de tijolos velhos e vigas de madeira podres. Avista-se por baixo dos escombros, uma mão branca e sem vida. Velha, triste, coberta pelo desamparo da morte.
As pessoas, de tez carregada de angustia, começam a remover o entulho apressadamente. – Rápido! Rápido! – grita o ourives.
Conseguem chegar ao velho, que nunca ninguém chegou a saber o nome ou a conhecer a história. O cão, jazia em cima da sua barriga, como se tivesse feito um derradeiro esforço para aquecer o dono.
- Pobre desgraçado! Ninguém merecer partir deste mundo assim… - diz o ourives tristemente, carregado de culpa, rodando o anel de rubi no indicador.
- Merece um enterro condigno. – Levantam-se algumas vozes.
- Alguém tem de fazer alguma coisa. – Dizem.
- Sim… alguém tem de fazer alguma coisa.

oil painting por Rembrandt

domingo, 15 de novembro de 2009

A Menina Preta e a Menina Branca


As gémeas nasceram no dia treze de um mês chuvoso.
Aquele parto provocou na vila um reboliço sem precedentes. O choque da parteira foi igual ao choque de todas as outras pessoas. Uma das meninas era branca, como a cal viva... a outra negra como carvão. Não havia diferenças de tonalidade entre os cabelos, a pele, e nem mesmo nos olhos. Eram ambas como uma faixa compacta de uma só cor.
Tinham uma beleza serena, que era ao mesmo tempo tão assustadora quanto hipnotizante.
O pai pediu satisfações à mãe, e a mãe não lhas soube dar. O médico interveio, dizendo que aquilo era uma fenómeno que ultrapassava os limites da ciência. O pai aceitou a explicação, algo relutante, mas a verdade é que a sua relação com a esposa nunca mais foi a mesma.
Perante a incapacidade dos pais em lhes dar um nome, ficaram apenas conhecidas por Menina Branca e Menina Preta, o que causou uma grande dor de cabeça na hora de registar as crianças.
As meninas foram criadas num isolamento quase total, e das poucas vezes que as levavam à rua, não podiam deixar de ser alvo de olhares embasbacados. "Olha para elas... têm menina do olho? Não dá para perceber...", "É negra, mas não tem feições de africana... é como se tivesse sido tingida, apenas...". As meninas eram imperturbáveis a estes comentários sussurrados, e continuavam, calmas, sempre de mãos dadas. Eram absolutamente normais em tudo o resto, mas a mãe às vezes apanhava-as a olhar uma para a outra... silenciosas, como se estivessem a falar telepaticamente.
Ambas insistiam em vestir-se de acordo com o tom de pele, o que fazia com que parecessem, uma, uma sombra e a outra uma aparição.
No dia em que fizeram quatro anos, a mãe levou-as ao parque, para uma volta de carrossel. Foram as três comprar os bilhetes, ao mesmo tempo que se deixavam deslumbrar pelos cavalinhos de madeira colorida, que rodopiavam embalados ao som da música alegre. O senhor da bilheteira, carrancudo e cansado, preparava-se para aceitar as moedas e entregar em troca os papelinhos rectangulares e coloridos, quando, sem aviso, a Menina Preta disse: "O senhor salvou um menino de morrer afogado num poço... e nunca contou a ninguém.". A Menina Branca disse de seguida: "Mas deixou morrer a sua mãe à fome e ao frio."
O homem ficou a olhar para ambas... petrificado. Ora olhava para a Menina Branca, ora olhava para a Menina Preta, confuso, quase em choque. A mãe olhava também atónita, ora para uma, ora para a outra, acompanhando em sintonia a cabeça do vendedor de bilhetes. "Vão, esta volta é por minha conta, vão, vão." - disse o homem confuso. "Comportem-se!" - rosnou-lhes a mãe exasperada, e mandou-as subir no carrossel, enquanto o vendedor de bilhetes continuava a olhar para elas de boca aberta.
Do céu começou a cair uma chuvinha peneirada e morna, que as deixou cobertas de um pó brilhante e húmido. A mãe levou-as à pastelaria, para que bebessem um chá quente e comessem uns pasteis recheados de creme de baunilha.
Espreitaram a doçaria exposta numa vitrina, e entraram as três a salivar. A senhora atrás do balcão tinha uma beleza altiva. Uns óculos minúsculos, equilibravam-se precários na ponta do seu nariz, "Boa tarde, o que desejam as meninas?" - Perguntou delicadamente enquanto acomodava uns pastéis de creme ao lado de uma torta de chocolate e tentava fingir que as aquelas duas crianças tinham uma aparência normal. "A senhora todas as noites deixa comida à porta de uma viúva pobre com cinco filhos... e nunca disse a ninguém." - disse-lhe a Menina Preta, calmamente, numa voz neutra. "Mas foi a senhora que empurrou o seu irmão das escadas quando era pequena. Ele partiu o pescoço e morreu."-disse-lhe a Menina Branca fixamente. A senhora olhou para elas, agora menos bonita e menos altiva, de olhos marejados de lágrimas e de lábios a trementes. "Levem os vossos pastéis... vão... sentem-se numa mesa, já lhes levo o chá... é por conta da casa, sentem-se, sentem-se." - disse numa voz convulsa, enquanto se perdia fixando o vazio.
"O que é que se passa com vocês?? O que vos deu para estarem com essas mentiras? Em casa vamos ter uma conversinha minhas meninas!!" - A mãe estava furiosa, mas algo estupefacta por nem o senhor dos bilhetes ou a senhora da pastelaria se terem mostrado ofendidos... apenas em choque. "Mas mamã... o que eu disse é verdade." - diz a Menina Branca calmamente enquanto enfiava o narizito dentro do pastel. "O que eu disse também é verdade." - diz a Menina Preta, mergulhando também no folhado de creme. A mãe olhava para elas... não as sentido como carne da sua carne, mas apenas como dois seres que lhe caíram no regaço para expiar os seus pecados e testar os limites da sua bondade.
Caminharam para o eléctrico apressadamente, tentando fugir ao frio da noite que começava a invadir as ruas. A Menina Preta ainda ia a lamber o açúcar em pó dos cantos da boca, quando sobem os degraus daquele gigante de madeira e metal, e dão de caras com o condutor. "Quantos bilhetes?" - pergunta o homem com um sorriso nervoso, ao olhar para aquelas duas meninas tão estranhas. "O senhor costuma deitar uma nota na caixa de correio da prostituta velha e louca que vive na rua ao pé do parque... sem a sua ajuda já teria morrido à fome." - disse a Menina Preta com um sopro. O homem fica petrificado, pois nunca tinha contado aquilo a ninguém, e tinha sempre muito cuidado para não ser visto. "Mas antes de casar, matou o filho que a sua mulher carregava no ventre com um ferro enferrujado. Ela nunca mais conseguiu engravidar novamente." - disse a Menina Branca, olhando-o quase com ternura.
As pessoas sentadas nos bancos duros de eléctrico julgaram que o condutor ia ter uma ataque qualquer, pela forma como revirou os olhos e ficou coberto de um tom amarelo deslavado. "Sentem-se, esta pago eu... sentem-se"- gaguejou, coberto de suores frios. A irmãs sentaram-se, e a mãe, que já nem se atrevia a dizer uma palavra, pensou que Deus talvez estivesse demasiado duro com ela e que isto já eram provações a mais.
A noticia espalhou-se pela vila, como fogo em mato seco. A Menina Preta conseguia ler nos olhos das pessoas acções de extrema bondade, enquanto que e a Menina Branca, qual anjo vingador, encontrava o que de mais odioso e condenável havia na alma.
A meio da noite, formou-se um motim à porta da casa das meninas. A multidão não queria que andassem à solta dois seres com aqueles poderes. Ninguém sabia quem seria o próximo contemplado, e no auge da raiva, queriam acabar ali com assunto ali mesmo, à paulada.
Cada pessoa sabe intrinsecamente se é maioritariamente boa ou má... visto que ninguém é completamente bom, ou completamente mau, mas não queriam ninguém a apontar-lhes as faltas. Isso estava guardado para o dia do julgamento final.
Os pais, desesperados perante aquele tumulto que lhe ameaçava entrar pela casa a dentro e levar as filhas, que por mais estranhas que fossem, eram suas filhas, faziam os possíveis para acalmar aquela massa de gente em fúria.
As meninas assistiam das janelas envidraças à multidão a espumar raiva, que agitava paus no ar e gritos de ódio. Tremeram e abraçaram-se... enroladas uma na outra, pareciam uma espiral preta e branca de tecido pulsante. Olharam-se nos olhos, toldados pelo medo e encostaram a testa uma na outra. E foi então que do céu começaram a cair gotas brancas e pretas de uma substancia macia, como tinta. As gotas caíam e misturavam-se no chão, deixando rios cinzentos nas pedras da calçada.
A multidão calou-se, contemplando o espectáculo, que pela sua grandiosidade só poderia ser obra de Deus ou do Diabo.
Resignaram-se ali mesmo. Resignaram-se às meninas e ao julgamento publico. Por mais bondade que tivessem dentro de si, a vergonha das suas negritudes suplantava tudo o resto. Uma boa acção de um homem, era sempre ofuscada por uma sua má acção.
A vida continuou como dantes... como se aquela noite de raiva nunca tivesse acontecido, mas já ninguém fazia uma maldade ou actos mais impuros. As pessoas policiavam-se a si próprias... até nos pensamentos.
A partir dali, todos se afastavam à passagem das duas meninas, e estas nunca mais foram importunadas... nem nunca mais precisaram de pagar bilhete para o carrossel, bilhete de eléctrico ou pasteis de creme... nunca mais precisaram de pagar nada.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O magarefe



Três crianças jogam ao berlinde na rua poeirenta. Riem alto enquanto dão saltinhos agachados. Ouvem passos pesados e viram-se, ainda com um resto de gargalhada na ponta da língua. Ao verem o homem calam-se, e divertidas fogem para trás de um enorme carvalho à beira da estrada.
Esperam de respiração suspensa e entre risinhos nervosos que ele passe.
O homem já está habituado a esta reacção. Não o incomoda, na medida em que muita pouca coisa o incomodava e ainda menos coisas lhe mereciam uma segunda reflexão.
Era mais alto e entroncado que qualquer outro homem da aldeia. Nunca ninguém lhe tinha ouvido a voz... talvez apenas um grunhido numa ou outra rara ocasião.
Volta a casa depois de mais um dia de trabalho no matadouro. Tem as calças salpicadas com o sangue dos borregos que tinha desmanchado naquela tarde... nas mãos traz um saco de serapilheira com aparas de borrego que o patrão lhe dispensou. O saco está húmido e pinga, deixando pequenos pontinhos vermelho vivo decorando as pedras e fazendo-as parecer joaninhas gigantes secas ao sol. Talvez a mulher pudesse fazer um estufado para o jantar. As botas de cabedal mal curtido arranham o chão áspero e o peso de um dia de trabalho verga-lhe as costas.
Passa por três raparigas que regam uma sementeira... elas calam-se à sua passagem, num misto de embaraço e risos contidos. "Olha, é o magarefe!" - diz a mais nova, sufocando uma gargalhada com a mão. Acotovelam-se umas às outras na tontice própria da juventude.
- Magarefe! Doem-me tanto as costas... podes ajudar-nos a trazer baldes de água? - Grita-lhe uma delas, divertida.
Ele pára e vai ter com elas. Nunca dizia "não" a um pedido de ajuda... e naquela aldeia os pedidos de ajuda que lhe faziam era uma constante. Pega no pesado balde feito de ripas de madeira inchada e até ao pôr-do-sol faz incontáveis viagens entre a horta e o poço.
Quando pára por falta de luz, repara que as meninas há muito que tinham ido embora. Não pensa sequer nisso.
Antes de chegar a casa, ainda ajuda uma vizinha a guardar as galinhas no galinheiro. Toda a aldeia vivia dos favores daquele homem. Chegavam a acorda-lo a meio da noite para ir procurar cavalos fugidos e a maioria das vezes nem se lembravam de lhe agradecer a ajuda. No entanto ele era um homem genuinamente bom e ingénuo. Normalmente apelidavam-no de otário, pois é certo que a natureza humana tem destas crueldades injustificadas.
Ele continua, exausto. O saco de serapilheira já não pinga. Como qualquer homem que aspira pelo final do dia para poder descansar, ver os filhos, ou fumar um mísero cigarro enrolado... também ele percorria todos os minutos do dia com um único propósito, voltar para a mulher. Ela não o sabia, mas não abandonava o pensamento do marido por um segundo sequer.
A vila era tão no fim do mundo, que a expressão “fim do mundo” ganhava uma nova força quando se falava daquele lugar. Chegava a suceder o fenómeno de chover em toda a província, menos ali. No entanto ninguém estranhava o facto e compreendiam que Deus se tenha esquecido daquele lugar.
Entra em casa, e o cheiro a sopa de feijão leva-o à cozinha. A mulher cirandava numa azáfama de um lado para o outro cantarolando. Uma das pontas da bainha da saia estava presa na cintura, deixando ver as coxas morenas e cheias. O cabelo mal apanhado em desalinho, as faces rosadas e a respiração ofegante.
Olha-a com devoção... ela vira-se e ele baixa o olhar, tossicando... disfarçando a fraqueza.
“Chegaste!”, cantarola ela alegremente, “Tens fome?”, e antes que ele respondesse, encheu um prato de sopa e colocou-o na mesa.
Os longos dez anos de vida em comum com aquele homem que o pai lhe tinha arranjado, ensinaram-lhe que não valia a pena fazer perguntas. Ele raramente respondia e quase nunca proferia palavra. Estar casada com ele era o mesmo que estar casada com um muro de tijolos e ela já há muito que aprendera que a única forma de combater a solidão era ter amantes esporádicos que a faziam guinchar de prazer no meio das cearas de trigo.
Olha para ele de soslaio... é tão grande que parece entalado naquela cozinha minúscula. A colher desaparece algures naquelas mãos imensas e ela tem um arrepio nervoso.
Toda a aldeia sabia dos acessos de luxúria daquela mulher. A população assistia divertida aquela novela, rindo-se perante a ingenuidade patética daquele marido bruto e cego de amor. Chamavam-lhe “o magarefe chifrudo”, e verdade seja dita, tirando as tropelias deste caricato casal e as missas ao Domingo de manhã, pouco mais havia para fazer naquele lugar que nem o diabo se dignava a visitar. Talvez por não falar, quase não o tomavam por humano, mas sim como um monte de membros que se movimentavam como por magia, e que serviam apenas para os ajudar a levantar cercas ou a fazer telhados.
Ultimamente a mulher do magarefe andava a rebolar-se pelos campos com um dos trabalhadores dos caminhos-de-ferro. Enquanto houvessem carris para assentar, ela estaria servida, e por isso, descansada.
Acaso do destino (e como a vida é feita não do esperado, mas sim dos desvios do dia a dia), numa tarde quente de sexta-feira, ele é dispensado do matadouro antes da hora habitual. A sua perícia em desmanchar porcos tinha-o levado a acabar o serviço uma hora antes do tempo... o que acabaria por trazer à sua vida um novo rumo e bastantes dissabores para o resto da aldeia, como mais tarde se veio a verificar.
Vinha extremamente bem-disposto, o que no caso dele, não se traduzia em qualquer aspecto exterior visível a olho nu. O calor abrasador fazia-o transpirar em bica. Pensou que talvez fosse boa ideia dar um mergulho no rio antes de ir para casa... chegaria fresco e rejuvenescido e talvez até a levasse a mulher até à taberna da praça depois do jantar... e depois quem sabe, talvez ela o deixasse fundir na sua pele quente e morena.
Embalado pela boa disposição, começa a assobiar, o que sucedeu pela primeira e ultima vez na sua vida.
Soltava uma melodia improvisada e alegre por entre os lábios, enquanto as suas mãos fortes mergulhavam na água fresca que chilreava como pardais. Preparava-se para despir a camisa quando começou a ouvir um reboliço contido por entre o canavial. Risos, gemidos e palavras sussurradas e urgentes. Avança silencioso, atraído por aqueles sons que lhe eram estranhamente familiares. Os ossos arregalam-se quando se aproxima o suficiente para reconhecer as costas nuas da mulher, que cavalgava em cima de um rapaz com metade da sua idade. Arfava como uma gata com cio e parecia que toda a fornicação deste mundo seria insuficiente para apagar aquele fogo.
Ele afasta-se, atarantado e vagueia pelos campos sem tino... sem consciência. O choque da descoberta não o deixa reagir, e quando dá por si, está na praça da vila, mesmo em frente à taberna. Ouve muitas vozes de entoações diferentes e muitos risos. Resolve entrar e pedir um whisky para beber de um trago só. Talvez lhe atenuasse um pouco o choque.
As frases voam para rua, abafadas. "Não teve sorte com a mulher, de facto! Puta mais puta não há! As putas ao menos ainda cobram pelos serviços, mas esta é que pagaria pelos serviços de um macho se assim tivesse de ser!" - risos e mais risos - "Coitado do chifrudo do magarefe!" - uma gargalhada geral levanta-se ensurdecedora.
Ele fica lívido ao aperceber-se de que todos sabiam a vida que a mulher levava.
Alguém se vira para trás, ainda a meio de uma gargalhada e vê aquele gigante ali parado na ombreira da porta, lívido e inexpressivo, se é que uma combinação dessas fosse sequer possível.
Aos poucos calam-se e chegam umas cadeiras às outras, como se isso de alguma forma os protegesse. As mãos pendiam ao lado das ancas. Por algum motivo todos olham para as suas mãos. São tão grandes e fortes que podiam separar a cabeça do tronco de qualquer homem que ali se encontrava... corriam aliás rumores de que muita vezes o magarefe matava vacas não com um punhal, mas com uma torcidela de pescoço.
Ele não diz nada, apenas os olha fixamente. Naquele olhar lêem tristeza, desapontamento e sobretudo a dor da traição... não só da mulher, mas de toda a vila.
Ele volta para trás e corre para a igreja. Agora já não chora lágrimas de tristeza, mas sim de raiva.
Corre tudo à procura do padre. Encontra-o na sacristia e implora-lhe que o confesse.
Pela primeira vez fala... fala muito. Pronuncia palavras que nunca tinha usado na vida.
- "Tem de perdoar... sabe, a sua mulher tem uma natureza muito errante. Ninguém lhe contou porque tinham medo que sofresse". - O padre fala calmamente, contendo o riso miudinho de uma criança a fazer uma travessura.
O magarefe, atónito, lança-lhe a pergunta com o olhar.
- "Sim... eu também sabia." - Diz o padre agora pouco à vontade. - "Perdoe-lhes... perdoe todos. Jesus assim o faria."
- "Perdoar?" - Diz o magarefe com uma voz inexpressiva.
- "Sim... pague a todos uma rodada na taberna, ou convide-os para uma matança de porco. Perdoe meu filho."
O gigante traído balbucia um "sim" e sai da Igreja aos ziguezagues.
No dia seguinte não se fala de outra coisa da vila, e ninguém escondia um certo receio do magarefe, principalmente depois da mulher do padeiro ter dito que tinha sonhado que ele lhe tinha entrado em casa e a estrangulado durante o sono, cego pela vingança.
Na taberna todos falam em surdina, comentando o sucedido quando ouvem uma voz estridente vinda da ombreira da porta.
- "Boas!" - diz o magarefe com um sorriso estampado nos lábios.
Ainda estavam todos em estado de choque com o "Boas", visto que nunca ninguém lhe tinha ouvido a voz, quando ele remata - "Amanhã é domingo. Estão todos convidados para um churrasco em minha casa!".
Olham uns para os outros, perplexos, sem saber o que achar do convite, sem saber o que achar daquela mudança tão radical de comportamento, sem saber o que achar de nada.
Na noite de Sábado, a vila inteira sonhou que o magarefe lhes entrava pela casa a dentro e os estrangulava durante o sono.


No Domingo, depois da missa, seguiram em fila, ansiosos e ensopados em nervoso miudinho, para casa do cornudo. Alguns iam em coches, outros a cavalo e os mais humildes caminhavam a pé.
O magarefe tinha improvisado várias mesas vestidas de toalhas brancas no jardim.
Cumprimentava todos, sorridente, falando pelos cotovelos. Grelhava a carne ele mesmo, e depois distribuía-a pelas mesas. Não deixava um copo ficar sem vinho, ou um prato sem pão. A carne estava tenra e suculenta, e em passado um bocado, já todos riam, aquecidos pelo deus Baco e maravilhados com o sabor da carne.
- "A sua esposa?" - pergunta a mulher do sapateiro. - "Ah, anda por aí" - disse ele abrindo os braços em jeito de vénia, abrangendo todo o jardim - "Ela já vem... comam, comam" - dizia rindo.
A filha do calceteiro, uma menina de cinco anos, na inquietude própria da idade, começa numa correria desenfreada pelo jardim, pelo quintal... entra e sai da casa, dos currais, do celeiro, até que entra na casa de desmanche dos porcos e carneiros. O local é gelado e escuro e ela franze as sobrancelhas a fim de adaptar os olhos à escuridão. E é então, que o seu coraçãozinho de cinco anos quase pára com o choque. Em dois ganchos da parede, estão a cabeça da mulher do magarefe e de um jovem rapaz. A mesa do desmanche, em pedra, tem esquecidas algumas tiras de carne, atiradas ao acaso e que pingavam sangue para o chão.
Ela corre dali para fora, espavorida, aos guinchos e soluços. "Cabeças! Estão ali cabeças! Mamã!". A mãe volta-se para ela com um naco de carne suculento pendurado num dos cantos da boca. "O que foi meu amor?". O magarefe tem um sorriso gelado desenhado nos lábios. Toda a gente corre a verificar a veracidade da história.
Entram aos encontrões naquele pequeno matadouro e dão de caras com o horror. Começam a vomitar pelos cantos, enojados, agarrados ao estômago. Percebem então, quase todos em simultâneo, que o magarefe tinha morto a mulher e o amante. A seguir esventrou-os, sangrou-os, cortou-os em postas e ofereceu-os em forma de banquete à vila inteira. A vingança é um prato que se serve frio, mas ele serviu-o grelhado e acompanhado com puré de batata e salada de tomate.
O horror fez toda a gente fugir em debandada, como um bando de pássaros assustados.
O medo apoderou-se da aldeia, e ninguém chamou as autoridades, pois demoravam mais um mês a vir da capital, e quando lá chegassem, já o magarefe os teria transformado a todos em febras.
A partir daquele dia já ninguém pedia favores ao homem... mas sim o inverso. E foi assim, que em menos de um mês, pintaram a casa ao magarefe, trocaram-lhes as janelas, refizeram todo o jardim, e as senhoras revezavam-se para lhe levar o jantar todas as noites. Nunca mais se comentou o sucedido... nem quando se mudou para a vila o novo farmacêutico viúvo com a sua filha solteirona, impetuosa e refilona.
Quando o farmacêutico conheceu o magarefe, simpatizou imediatamente com ele, pois sabia-o também viúvo, e é muito triste um homem viver sem uma mulher. Após breves conversas, ambos acordaram que se casasse com a moça, que já tinha vinte e oito anos e por isso já algo acabada e em dificuldades em encontrar marido.
O casamento durou dois anos sem percalços, até ao dia em que a mulher se apaixonou perdidamente pelo cabreiro. A vila assistia ao romance com o coração nas mãos... sem terem coragem para avisar a rapariga e muito menos o magarefe.
Infelizmente para todos, depois do desaire que foi o seu primeiro casamento, o homem ficou com os sentidos muito mais apurados... esperteza de raposa, olfacto de javali e olhos de falcão.
Numa noite de Sábado, estava a taberna cheia, quando o magarefe apareceu à soleira da porta com um sorriso estampado nos lábios.
- "Boas! Amanhã é domingo. Estão todos convidados para um churrasco em minha casa!".


oil painting 1 Vincent Van Gogh
oil painting 2 Peter Severin Kroyer