domingo, 1 de março de 2009

O Jardim


O Dr. Afonso vivia desde sempre naquela pequena mas nobre cidade, escondida por trás de montes inóspitos e esquecida do resto do mundo. Todos os habitantes viviam segundo as mais rígidas regras de moral e decoro e qualquer escândalo pessoal que pingasse para o conhecimento do publico consternava toda a população, enquanto que, paradoxalmente, fazia as delícias de qualquer lanche da tarde, em que grupos de amigas se reuniam para comerem pastelinhos com creme entre chávenas de chá perfumado e gargalhadinhas maliciosas.
Quatro anos antes, o Dr. Afonso sobrevivera ao escândalo social e ao repudio geral quando a sua esposa Violeta o abandonara levando consigo ambos os filhos do casal. Rosa de cinco anos e Jacinto de dois. Desapareceram os três da noite para o dia e ninguém duvidava que D. Violeta tinha fugido para o estrangeiro com um qualquer amante secreto.
O facto de ser de famílias nobres e antiquíssimas garantia ao Dr. Afonso o status de partido muito requisitado pelas mais belas donzelas da cidade. Tanto não fosse pelas suas origens, a sua enorme fortuna teria bastado.
No entanto ele parecia muito pouco ou nada interessado em voltar a casar. Isolou-se no seu palacete secular de onde recusava amavelmente os convites para eventos sociais e de onde só saía para atender pacientes no seu consultório no centro da cidade. Nada dava mais prazer a este homem que sentar-se num dos varandins da casa enquanto contemplava o seu magnífico e magistral jardim que florescia de forma frondosa e inexplicável e em que as espécies de flores e plantas eram tantas que se ficava inebriado só de olhar.
Tinha enfrentado o desaparecimento da mulher com uma altivez e uma compostura surpreendentes e todos lamentavam a sorte daquele homem de bondoso, que trabalhava apesar de não precisar de o fazer e que a maioria dos pacientes que tinha eram pessoas de parcas posses ás quais não cobrava consulta, salvando assim muitas vidas naqueles tempos em que as doenças fomentavam e as hipóteses de cura eram escassas.
Certo dia chega á cidade uma nova professora primária, a D. Íris, com sua filha Margarida de quatro anos. Ainda não tinha trinta anos e já era viúva, tendo ficado nessa condição quando o marido partiu para o Brasil na esperança de voltar com fortuna, mas que morreu no próprio dia em que chegou ao país, trespassado pela seta de um índio foragido e selvagem.
De uma beleza simples mas extraordinária, a D. Íris era de gostos requintados mas sem exigências e dona de uma personalidade dócil e de grande sentido moral.
O Dr. Afonso reparou imediatamente nela, e ela, por sua vez, reparou imediatamente no bondoso médico.
Eram de personalidades compatíveis e de gostos similares. Assim que se conheceram tornaram-se inseparáveis. Três meses após se terem visto pela primeira vez, ficaram noivos e um ano depois estavam casados. No dia do casamento o que mais se comentava entre sussuros era o facto do quanto D. Íris era parecida com a desaparecida D. Violeta. A pequena Margarida, coroada de flores saltitava feliz á volta da mãe, com uma adoração que enternecia os convidados.
D. Íris adorava o novo marido. Adorava a sua nova casa com o seu fértil jardim e em que ás vezes se perdia por entre os jacintos e as rosas que cresciam por todo o lado... e adorava toda a rotina daquele antigo palacete mantido com regras rígidas por uma pequeno batalhão de empregados silenciosos e corteses.
Vivia feliz com a sua filha que tinha encontrado no Dr. Afonso um novo pai e não se tinha arrependido em qualquer momento por ter dado aquele passo na vida.
Várias vezes surpreendia o marido sentado á janela a contemplar o jardim, numa enorme cadeira-de-baloiço e de ar ausente, como que hipnotizado por algo. Assustava-se com aqueles olhos sem vida e depressa o trazia á realidade abanando-o com violência até ele sair do transe, "Um dia destes não voltas!!" dizia-lhe ela nervosamente. Ele descansava-a puxando-a para si e dando-lhe um beijo terno na testa.
Certo dia, andava D. Íris a explorar a casa, quando se deparou com uma porta que não conseguia abrir e da qual ninguém parecia ter chave. Considerava aquela casa como sua também e o facto de existir um quarto em que não conseguia entrar começou a consumi-la por dentro. Pediu a um dos empregados para chamar um serralheiro, mas este recusou-se, defendendo-se dizendo que só o faria com ordens do patrão e que aquele quarto, até ver, era interdito a todos por ordem do próprio Dr. Afonso, e que o melhor seria que se ela mesma lhe pedisse a chave.
Ela abordou o marido ao jantar a respeito do assunto, mas só obteve da parte dele um olhar velado e de quase ódio, que ela nunca tinha visto antes. Estremeceu um pouco e foi-se sentido cada vez mais consternada durante todo o jantar, pois o marido remeteu-se a um silencio frio e insondável.
Apartir daquele dia o marido mudou radicalmente de atitude, tornado-se distante e ácido e a entrar mais vezes do que nunca naquele transe hipnótico da sua cadeira-de-baloiço.
Refugiou-se na pequena Margarida e passava todos os minutos que podia com aquela criança, pequenina e frágil, tendo a certeza de que o único amor de que se pode ter garantia nesta vida, é o de entre uma mãe e uma filha.
Alguns dias depois, enquanto levava alguns dos seus pertences para o sótão, deparou-se com um pequeno móvel poeirento e que parecia mais velho que a própria casa. Ao baixar-se para abrir uma das gavetas, tropeçou e embateu numa das quinas do móvel, fazendo abrir um pequeno compartimento secreto. Isso não a surpreendeu pois aquele género de artimanhas eram muito vulgares na época, sendo uma forma muito prática de se guardarem jóias ou documentos valiosos. Porém aquele compartimento tinha apenas uma chave envolvida num pedaço de veludo e D. Íris soube imediatamente que se tratava da chave desaparecida daquele quarto que tanta curiosidade lhe causava. Enfiou-a no decote por entre as rendas do espartilho que a sufocavam mais do que nunca e desceu as escadas.
Nessa noite, esperou que Margarida adormecesse no seu quartinho branco e lavanda. Beijou-lhe a face e retirou-se para o seu quarto. O marido estava a ler, deitado na cama, com aquele seu novo ar frio e distante. Ela fingiu-se adormecer e assim que ele apagou a candeia e adormeceu, ela abriu os olhos na escuridão com a chave apertada entre as mãos, aguardando pacientemente que todos os empregados se deitassem.
Quando deixou de ouvir qualquer som e toda a casa se imobilizou de vida, ela levantou-se da cama e o mais silenciosamente possível, pegou numa vela e saiu percorrendo todo o percurso até ao misterioso quarto por puro instinto, pois apesar de a lua estar cheia, havia muita nuvem no céu e a escuridão era total. Chega á porta aos apalpões, com o coração a latejar tão forte no peito, que ela por momentos julgou que ia acordar toda a gente na casa só com o seu bater.
A chave entra imediatamente na fechadura e ao contrário do que ela previra, a fechadura abre sem o menor ruido, como se fosse manteiga. Uma vez lá dentro, acende a vela, e por entre o cheiro a mofo depara-se com cerca de uma dúzia de baús enormes. Com os nervos desfeitos e derrepente inundada de um medo aterrador, começa a abrir os baús, um por um. Lá dentro encontra roupas de criança... imensas roupas para todas as ocasiões e estações do ano. Dois dos baús estão cheios de brinquedos de menina e de menino, desde bonecas de porcelana de vestidos aos folhos a bolas e piões. Fica atónita, sem entender. Ela sabe que a anterior esposa do marido fugiu, jamais poderia ter levado todos os pertences dos filhos na fuga, mas ainda assim, sente-se atingida por uma onda de terror instintivo. Sem conseguir parar, continua a abrir baús, estes com finas roupas de senhora. Sente um nó na garganta ao verificar que um dos baús tem como conteúdo unicamente trajes de viagem. Num deles encontra uma caixa de madeira trabalhada cheia de jóias. Anéis de brilhantes, gargantilhas dignas de qualquer princesa das cortes mais abastadas, pregadeiras forradas a pedras preciosas e um não acabar de jóias de preço que ela nem de longe podia calcular. Nenhuma mulher no seu perfeito juízo fugiria de casa sem levar pertences tão valiosos.
Sente-se desfalecer e corre para fora da casa... precisando de ar puro que inspira vigorosamente enquanto corre sem destino por entre o jardim perfumado. Quase na mais completa escuridão, tropeça numa raiz de árvore. Fica ajoelhada no chão tentando perceber o que aqueles baús num quarto fechado podem querer dizer. Subitamente e como que por magia, uma nuvem deixa a lua cheia a descoberto, e ela na súbita claridade levanta os olhos. À sua frente estão três canteiros majestosos e meticulosamente cuidados. Um era de violetas, outro de jacintos e o terceiro de rosas. Ela naquele instante percebe tudo! Os olhos arregalam-se de horror e da sua garganta começam a sair gritos que lhe pareciam ser de outra pessoa. Na ala dos criados as janelas dos quartos começam a iluminar-se uma a uma e vultos começam a assomar ás janelas, olhando imóveis e sem expressão.
Ela grita cada vez mais e começa a correr em direcção á casa. Quer ir buscar a pequena Margarida e fugir para longe... para o mais longe que puder. Corre sempre aos tropeções no meio de todas aquelas flores. Sente-os a olhar para ela. Porque é que ninguém a ajuda??? Ela não entende.
A alguns metros da casa cai e bate com o queixo no chão que começa a sangrar violentamente. Ao levantar a cabeça e a única coisa que vê é o Dr. Afonso com um machado erguido e de olhos vazios e lábios cerrados.
No ano seguinte, ao lado dos canteiros de violetas, jacintos e rosas erguem-se outros dois, um de íris e outro de margaridas.

10 comentários:

Random Thoughts disse...

O meu preferido =)

Adoro este conto.

Brown Eyes disse...

Ginger este conto é magnífico. Fez-me lembrar as histórias de amor entre o senhor e a governanta só que este conto tem um fim muito mais imaginativo. Quem diria que este médico era psicopata. A ideia de relacionar os nomes das pessoas com as flores dos canteiros foi genial. Mais uma vez parabens.

Johnny disse...

não gosto de "escândalo social e ao repudio geral" e "magnífico e magistral"

Ao ler isto, reparei num vício teu

Sempre duas características ou adjectivos, ou seja:


"florescia de forma frondosa e inexplicável"

"beleza simples mas extraordinária"

"gostos requintados mas sem exigências"

"personalidade dócil e de grande sentido moral"

"personalidades compatíveis e de gostos similares"

"olhar velado e de quase ódio"

"silêncio frio e insondável."

"tornado-se distante e ácido"

"pequenina e frágil"

"aquele seu novo ar frio e distante"

Ginger disse...

ah ah ah

Agora ri-me.

Gosto de tudo aos pares sim... como se um adjectivo acabasse por suportar o outro.

meldevespas disse...

Eu podia bem imaginar este conto filmado, de tão cinematográfico que é. Todo ele é cenários sumptuosos e personagens sublimes e cores e cheiros e tudo.
(deve ter sido com um comentário como este aqui de cima que começou a minha relação "amorosa" com o Jóni...eheh)

mz disse...

É uma história tão subtil que até o assassino ganha uma forma suave e quase livre do perfil comum de quem pratica crimes horrendos.

fOI REALMENTE UM SURPRESA NO FINAL!

bj

Sandra disse...

Vi sua inscrição na fábrica. Mas acho que vc ainda não publicou.
Escrever nos inspira a voar pela imagnação.
Amo escrever. Por isso meu tema é Vida de Poeta.
Interação de amigos também está participando. Vou te esperar por lá.
http://sandrarandrade7.blogspot.com
este é um momento onde todos trocam experiências.As coletivas aproximam as pessoas.
Carinhosamente,
Sandra

Natália Augusto disse...

Ginger,

Que conto longo e mágico! Gostei muito de o ler. Sabes, ferz-me relembrar «O Barba Azul»! Este Dr. Afonso não era tão bondoso como parecia!!! «As aparências iludem»! Ah pois é!

Amei a tua participação.

Beijinhos

Eduardina disse...

Muito bem gerida, a dose de suspense.Cativante.O final macabro fez-me lembrar os filmes de Alfred HitchcocK.

Brown Eyes disse...

Ginger excelente escolha para o tema de Setembro da Fábrica. Beijinho grande