domingo, 1 de março de 2009

Da Alma...



Entra na taberna de mão dada com o filho de dois anos. Segue, segura de si e indiferente aos olhares lascivos dos poucos clientes que se embebedavam pelas mesas ainda antes da hora do almoço. Caminha altiva apesar de estar apenas calçada com uns tamancos de madeira tosca e um velho vestido de xadrez surrado. Quem a visse iria pensar que se tratava de uma rainha caída em desgraça, desprovida de bens, mas não do seu orgulho.
O frio quase não deixa respirar… aperta o cachecol ao menino e pede ao taberneiro dois caramelos. Não pode comprar mais. Pensa na malga de leite que não tomou de manhã para poder comprar a guloseima ao filho e sorri. Tem fome, mas ela afasta-a com o prazer de desgrenhar o cabelo ao menino com uma pequena risada. Pensa no marido que partiu há dois meses para as minas à procura de encontrar sustento para a família e sente um aperto de saudade.
Está assim, encostada ao balcão e perdida nos seus pensamentos quando alguém entra na taberna. O forasteiro traz com ele o frio da rua, a neve empurrada por um vento descontrolado e a solidão das cordilheiras geladas e de escalada impossível que rodeiam toda a povoação.
Tem um gorro de lã na cabeça, um casacão forrado com pele de marta e umas botas de cabedal feitas por medida, encomendadas no melhor sapateiro da capital.
O desconhecido pousa uma mala com os utensílios de trabalho. Esquadros, fitas métricas e mapas que está a usar para cartografar a região. O seu olhar fixa-se magnetizado na silhueta da mulher.

Ela sente-o. Sente o sangue dele a pulsar nas suas próprias veias. Vira-se tão lentamente que parece que nem se chega a mover. Os olhos dos dois encontram-se, perdidos e incrédulos. Ambos se sentem como que fulminados por um raio.
Algo os trespassa… primeiro a certeza de já se terem visto antes, tal não é a familiaridade das formas. Mas ambos rejeitam essa hipótese passado uns segundos. Nunca se viram, mas conhecem-se. Conhecem-se desde o início dos tempos… almas antigas que vagueiam procurando encontrar-se uma à outra.
Ambos os corações batem velozes e confusos.
Ela pega apressada no filho, com os joelhos a tremerem-lhe e os olhos marejados de lágrimas e corre para o exterior de encontro à neve que os fustiga, impiedosa e cruel. A criança caminha aos tropeções tentando acompanhar a mãe. Volta-se para o filho subitamente: “Olha amor, a mãe vai levar-te a casa da avó, está bem?”. A criança acena alegremente. Em casa da avó há sempre uma lareira acesa e pão. Muitas vezes está duro, mas é pão, e pão é sempre bom… e ás vezes, muito raramente, a avó até tem mel!
Ele volta a pegar na mala e sai atrás dela, não sabe porque a segue, apenas que tem de a seguir, e que tem de a ter, pois ela é dele. Gira com o polegar a aliança de casamento, e pensa na esposa e nas duas filhas que ficaram na capital à espera do seu regresso.
Segue-a por ruas sinuosas e vê-a chegar a uma velha casa de madeira e a bater uma porta que se abre. Empurra a criança suavemente para dentro, dando uma explicação inaudível á figura que não chega a sair à rua e prossegue caminho.
Sempre sem parar, volta-se ligeiramente, consciente de que ele a segue e o seu corpo começa a aquecer de tal forma que parece acometido por ataques de febre… e ali, a mais de trinta passos de distância, sente que o dele também fervilha.
Entra numa praça larga, deserta e morta pelo Inverno… canteiros desnudes e uma fonte de água congelada. Pára a meio e volta-se para trás, decidida e corajosa. Ele abranda o passo mas continua a caminhar na direcção dela. Os seus olhares fixam-se em concordância… os seus corpos ardem com um querer maior que qualquer força ou que qualquer consciência.
Quando chega por fim ao pé dela, ficam parados respirando profundamente, sem conseguirem desviar o olhar um do outro… os seus corpos de tão quentes, aquecem o resto da praça, e da pequena fonte de granito começa a brotar uma água cristalina, e em todas as varandas nascem subitamente pequenas flores nos vasos que só as esperavam na Primavera.
Não trocam uma palavra, nem precisam de o fazer. Cada um conhece a essência do outro até ao mais profundo do seu ser.
Ela recomeça a caminhada e ele segue-a uns passos atrás… Pensa no marido longe e no filho que acabou de deixar em casa da mãe. Eles fazem parte desta sua vida, ama-os e daria a vida por eles, mas este homem que a segue está muito acima de qualquer coisa terrena. Ele é ela, ela é ele… ambos são o mesmo… completam-se. O sentimento que os une já existe há mais tempo que o próprio conceito de tempo.
Chega a sua casa, uma modesta cabana de janelas repletas de frinchas e por onde o vento entra implacável… ele segue-a e entra na divisão enquanto ela lhe segura a porta, e deixa cair a sua mala no chão pesadamente.
Ele agarra-a por trás violentamente, por aquela cintura frágil que treme nervosamente com a antecipação… beija-lhe o pescoço enquanto afasta as madeixas cabelo negro que cheira a flores, ternura e fumo. Ela vira-se para ele, com urgência, com desespero… mergulha naquele peito quente e tão familiar… ambos surpresos consigo próprios, mas resignados, pois sabem que já se encontraram assim em muitas outras reencarnações, por vezes por breves instantes, por vezes por vidas inteiras.
Amam-se incansáveis, deitados no chão de madeira carunchosa. Amam-se sempre sem trocar uma única palavra. Amam-se com a fatalidade da separação terrena. Choram lágrimas de alegria misturadas com lágrimas de tristeza, numa sinfonia agridoce e caótica enquanto se abraçam, se apertam, se acarinham…
Lá fora o vento parou... e a neve cobre tudo placidamente como uma cúmplice expectadora.
Despedem-se por fim, com os lábios dormentes de tanto beijo, sem palavras nem lamentos pois sabem que as suas almas se voltarão a reencontrar na próxima vida e em todas as outras… até o fim dos tempos.

Participação para a Fábrica de Letras  01/05/10

19 comentários:

b.vilão disse...

Que bela contadora de estórias que tu me saíste... Bravo. Esta tocou-me.

Johnny disse...

Mais uma história muito bem contada.

Miguel disse...

Também acho que há paixões de tão fortes que são, que parecem que carregam consigo milénios de intensidade acumulada por outras partilhas e vivência dessa mesma paixão,
gostei muito !

meldevespas disse...

É muito bonita esta paixão...sentida, verdadeira, mesmo quando tudo parece ir na direcção errada.

Ps: Já tinha gostado muito da primeira vez....

Beijos

chica disse...

Maravilhosa participação com essa história!beijos,chica

mz disse...

Uma atracção fulminante, um sentir intenso e breve.
Bonita e muito bem elaborada a tua história Ginger.

Bjs

Su m disse...

Gostei da forma como colocaste esta paixão acima de tudo e todos, acima do que sociedade e a vida lhes impôs, acima daquilo que, até àquele momento, eles mais amavam. Só a paixão entre eles é que importava naqueles tão céleres mas intensos momentos...

Mais uma excelente participação...

Alice disse...

as tuas histórias são sempre envolventes e bem contadas.

Lala disse...

Sem dúvida que é "Da Alma" mesmo. A alma não trai. E quando duas almas se unem é eterno. E é tão bela essa união que a própria natureza cede. Mais uma vez Ginginha, uma bela estória... desta vez de amor eterno.
Parabéns!!

Beijinho**

Teresa Diniz disse...

Confesso que não acredito em paixões à primeira vista. Mas a narração está muito bonita e envolvente.
Bjs

Lala disse...

... de amor eterno e paixão ardente, claro!!!

;)))

Ronilson disse...

"almas antigas que vagueiam procurando encontrar-se uma à outra" ... Muito interessante !

Anónimo disse...

Excelente narrativa. Você consegue nos colocar dentro das imagens. Ainda estou perdido dentro do cenário que me ajudaste a construir.

Expressivo, envolvente, enigmático...

Beijos
Ricardo.

Lou Albergaria disse...

Ginger,

Vc é realmente uma excelente ficcionista!!! Amei seu texto!

Estou retribuindo a visita que fez ao meu blog. Pena que não concordei em achar a história do García Márquez improvável. Fiquei triste. Deixei lá um recadinho pra ti.

Parabéns pelo seu texto!!!
Virei freguesa, se não se importa.

Um super beijo!

Lou

Natália Augusto disse...

Que bela narrativa. Espaço, tempo, personagens magistralmente escolhidos para dar voz à paixão.

E que paixão! Li o texto de um só fôlego para descobrir depressa como terminaria.

Belíssimo fim.

su disse...

excelente [aliás, como é hábito].

as paixões são assim, ficam-nos gravadas a fogo no corpo com o passar das vidas... e, no reencontro, é como se o nosso sangue reconhecesse aquele cheiro, aquele sabor, aquele toque. mesmo antes de se ter [ser] cheirado, de se ter [ser] provado, de se ter [ser] tocado...

bjos

Fê blue bird disse...

Aqueceu-me a alma este seu belíssimo, intenso e arrebatador texto, comecei hoje a ler os textos publicados na fábrica, e não podia ter feito melhor escolha , parabéns!
Fê Blue Bird

Aliás vou dar uma espreitadela por aqui ;-)

Helga Piçarra disse...

Não sei exactamente o que senti, apenas senti o pulsão do meu coração, como se eu mesma estivesse dentro deste texto. Acredito em almas gémeas que esperam uma pela outra sem saberem. Adorei!

Mag disse...

A mim, que acredito fielmente em encontros que transportam séculos consigo, tocou-me enormemente esta (excelentemente escrita) história.
Parabéns, Ginger.