Adónis levantou-se assim que o sono retalhado lhe permitiu ver a claridade que começava a tomar conta do quarto. Olhou satisfeito para a moldura em cima da mesinha de cabeceira com uma fotografia de Tom Mix, o cowboy lendário do cinema norte americano.
Há meses que tinha substituído a foto da mãe por uma do homem com um chapéu branco de abas largas, dando nesse dia a dona Filomena mais um entre tantos outros desgostos e fazendo-a chorar baixinho a noite toda.
Vestiu-se como se estivesse a ouvir alguém gritar fogo na rua. Enfiou as duas pernas na mesma perneira das calças e insistiu um pouco até ouvir as linhas estalarem. Depois de dar pelo erro meteu cada perna na respectiva perneira mas tentou andar ainda com as calças pelos joelhos enquanto as puxava para cima, o que o fez estatelar-se ao comprido no chão de terra batida. "Foda-se", pensou apenas, pois esqueceu-se de abrir a boca para verbalizar a palavra.
“Mãe, é hoje mãe. A encomenda, mãe”, gritou ao passar a correr pela cozinha onde dona Filomena lhe preparava um pequeno-almoço de papas de aveia com mel. “Disparates! Olha, mas tu não comes? O correio só chega às dez horas”, gritou, mas ele já tinha saído para a rua.
Tinha a mão estendida para abrir a cancela tosca do jardim quanto uma colher de pau voou de dentro de casa e lhe acertou em cheio na nuca. “Vem comer as papas de aveia, já”, guinchou-lhe a mãe, de mão na cintura e cabelo preso num rabo-de-cavalo quase desfeito. “Com que idade vais ganhar juízo, Adónis” perguntou. O filho voltou a entrar na cozinha a resmungar baixinho, curvando-se ligeiramente ao passar por debaixo da porta. Dona Filomena esticou-se toda para chegar à orelha do filho e puxou-a, levando-o de arrastão até à mesa. “Que disparate isso de quereres ser quebói” resmungava ao mesmo tempo que lhe deitava as papas a ferver dentro de um prato de barro lascado. “Cowboy”, corrigiu-a ele entre dentes.
A colher de pau ergueu-se no ao ar e caiu em voo picado acertando-lhe desta vez na testa. Engoliu as papas a escaldar, o que o fez queimar a língua e arfar como um cão exausto. “És tão desastrado. Que belo quebói vais tu dar”, disse a mãe no seu tom invarialmente jocoso. “Mãezinha, a próxima vez que passarem um filme no largo do coreto, quero que venha ver comigo. Vai ver que ser cowboy é o melhor dos destinos que um homem pode ter”, disse exaltado e de sorriso aberto. “Disparates”, resmungou ela enquanto varria o chão de terra batida.
Desde há um mês que Adónis aguardava a chegada de um revólver, um chapéu de cowboy, um cinto com coldre e umas esporas, vindos dos Estados Unidos da América. Tinha feito a encomenda ao seu tio Inácio que tinha imigrado há dez anos para Nova Iorque. “Isto aqui é um chiqueiro. Uma salada de gente que não se entende”, tinha ele escrito uma vez numa carta, assustado com agressividade dos irlandeses após a terceira cerveja e enojado com as fossas a céu aberto que enfeitavam os bairros de emigrantes.
A primeira vez que o tio Inácio viu um negro ser enforcado num poste e depois incendiado com as roupas empapadas em gasolina, caiu de cama durante duas semanas, perseguido pelos gritos de fúria da multidão e o cheiro a carne humana queimada, mas depois de mais cinco ou seis execuções públicas, a coisa já não o incomodava e passou a sentir até alguma excitação infantil sempre que o povo, equivocado ou não, fazia justiça pelas próprias mãos.
O carteiro chegou duas horas atrasado e sem revólver, chapéu, esporas ou coldre. “Não há nada para mim”, perguntou Adónis num desalento. “Volta para a semana. A aldeia aguenta sem cowboy mais uns dias”, disse numa gargalhada. Adónis afagou com um ar preocupado as faces esburacadas pelas bexigas, “Espero bem que sim, senhor carteiro. Espero bem que sim.”, disse ele com toda a calma do mundo, contemplando um ponto imaginário no horizonte. “Não é tudo mau. Pelo caminho passei pela Companhia de Cinema. Devem chegar lá para a tardinha.” disse o carteiro fazendo Adónis olhá-lo como se estivesse a ver a Nossa Senhora na aparição do 13 de Maio em Fátima. Só lhe faltou o cheiro a flores. Adónis ia dizer qualquer coisa, mas a emoção silenciou-lhe as palavras e ele sem um adeus sequer, correu em direcção à quinta do senhor Jarvas onde o aguardavam 30 puceiros de milho para esbulhar.
Quanto mais depressa acabasse, mais depressa poderia regressar a casa para tomar um bom banho, vestir o seu melhor fato e passar cera no bigode que parecia desenhado por um pincel com pouca tinta e pregado à martelada por debaixo do nariz para que não caísse.
O dia demorou mil anos a terminar e Adónis chegou a pensar que as maçarocas de milho se multiplicavam dentro dos puceiros, tal como Jesus tinha feito com o peixe e o pão. Assim que acabou de debulhar o milho correu para casa e encontrou a mãe a varrer como sempre o chão de terra batida.
“O Cinema Ambulante está cá. Hoje vem comigo mãe. Eu compro-lhe o bilhete. Vá meter o avental do domingo”, gritou ele, comendo metade das palavras com a histeria. “Disparates”, resmungou ela, disfarçando um sorriso e sentindo por aquele filho meio tonto, que nunca tinha conhecido pai, um amor que mal lhe cabia no peito.
Adónis lavou-se numa pia de água no quintal, esfregando-se minuciosamente com um pedaço de sabão tão rijo e áspero que ficou com a pele em fogo. Tirou o único fato que tinha de dentro do armário e vestiu-se à pressa, batendo com as canelas nos pés da cama e os cotovelos na cómoda que parecia ir desfazer-se em caruncho a qualquer momento. Depois de pronto demorou-se em frente ao espelho, colocando-se ora de frente, ora de lado, “Que magnífico cowboy eu vou dar. Esta vila não me merece”, dizia para o rapaz de corpo desengonçado e pele que parecia um crivo, que o mirava no espelho da casa de banho.
“Vou indo minha mãe. Venha lá ter”, disse à medida que passava a porta. “É um disparate, mas vou. Fecho as galinhas, penteio-me e vou ter contigo”, disse dona Filomena com a voz carregada de amor cansado.
Constatou que o sol ainda não se tinha enterrado no horizonte, e como tal, estava muito adiantado. Resolveu parar na taberna para matar tempo. “Adónis, rapaz! Que bom ver-te.”, berrou o taberneiro, ensopado em vinho, que mal conseguia andar e que servia os clientes aos tropeções nas mesas e cadeiras. “Vens cá pouco Adónis. Que belo rapaz te tornaste”, gozou o taberneiro, exibindo um sorriso esburacado e apodrecido. Os que estavam sentados na mesa riram cúmplices da maldade do taberneiro e cumprimentaram o rapaz com acenos moles.
Sua mãe tinha decidido dar-lhe a graça de Adónis quando, grávida de oito meses tinha visto uma lata de biscoitos trazidos de Paris em casa da sua senhora, com um belo homem em tronco nu na tampa. "É Adónis, o mais belo dos deuses gregos" tinha suspirado a senhora ao mesmo tempo que foi acometida por uma onda de calor inesperada. Dona Filomena deu então ao filho o nome do mais belo deus grego, o que infelizmente se veio mais tarde a verificar, que de propositado não tinha nada.
“Vais ao cinema não é? Ouviu-se a sineta tocar a tarde toda. Vai começar às oito horas.” disse o taberneiro enquanto lhe enchia um copinho de vidro baço com três dedais de bagaço. “Sim, espero que seja um filme do Tom Mix”, respondeu Adónis engolindo as últimas palavras juntamente com o bagaço. Os homens espalhados pelas mesas começaram a rir com a piada que era velha, mas que não perdia a graça. “Pois é Adónis, tens de aprender como fazem os cowboys” disseram, agradecendo intimamente aquele momento de divertida desgraça alheia.
Adónis achou que o melhor era não fazer caso daqueles seres de sonhos limitados, agricultores que na vida só viam arados e campos por amanhar, e pediu mais um bagaço. Deviam ser sete e meia quando começou a sentir o estômago refilar de fome e pediu um punhado de tremoços. Ia a levar o primeiro à boca quando entrou o doutor Afonso, o médico da vila. As conversas e as risadas cessaram e foram substituídas por acenos de cabeça educados e palavras de cordiais cumprimentos.
O doutor Afonso encostou-se ao balcão, e com o seu ar de quem sabia tudo o que há para saber no mundo, pediu um whisky. O taberneiro tirou a chave que tinha pendurada ao pescoço e abriu uma portinha por debaixo do balcão que continua unicamente uma garrafa de whisky, especialmente reservada para o médico. Serviu a preciosa bebida âmbar com gestos nervosos, tentado disfarçar a embriagues.
“Estás bêbado que nem um cacho, homem. Ganha vergonha”, disse o médico levando o copo aos lábios. O taberneiro pareceu ofender-se, e com o amuo de uma criança de escola, começou a limpar os copos com um trapo de cor indefinida pelo uso.
“Adónis, essa saúde”, perguntou o Doutor Afonso concentrando-se no rapaz. “Rijo que nem um pêro, doutor”, respondeu Adónis enchendo o peito, como que para demonstrar a veracidade da afirmação. “Muito bem, muito bem. E aquela maluqueira de quereres ser cowboy. Já te passou” perguntou num tom paternal que tentava em vão esconder dureza, pena e algum desprezo. “Nunca doutor. Não, não. Para a semana chega a encomenda do meu tio Inácio. Vou ter tudo o que preciso para ser cowboy”, disse o rapaz num tom ligeiramente ofendido. “Ah sim? Vais ter um revólver?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter um coldre?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter esporas para as botas?”, o rapaz acenou que sim. “Muito bem meu rapaz. Parece-me que tens tudo bem pensado”, disse o médico engolindo um gole de whisky e disfarçando um sorriso. “E um cuboiate”, quase gritou Adónis, com uma voz cheia de segurança. “Um quê”, perguntou confuso o médico. “Um cuboiate. O doutor esqueceu-se do cuboiate. O meu tio vai-me mandar um branco. Mandei-lhe a medida da minha cabeça e tudo, que é para não ser demasiado grande ou demasiado pequeno”, disse com os olhos a brilhar de excitação. “Ah, um cowboy hat”, riu o doutor Afonso, com a voz amansada pelo whisky e uma boa disposição crescente. “Muito bem meu caro. Que seria de um cowboy sem um cowboy hat”. Adónis sentia-se no centro do mundo por o doutor Afonso concordar com o seu plano, que há tanto tempo o tornava risível aos olhos de toda a vila. “E cavalo, já tens?”, perguntou o médico engolindo a tempo uma gargalhada. “A mula da minha mãe terá de servir, doutor. Pelo menos no inicio. Depois logo se verá”, disse Adónis num tom sério.
“Faltam quinze minutos para as oito”, disse agitado, olhando para o pêndulo do relógio na parede e enfiando os tremoços nos bolsos do casaco. “Está na hora”, afirmou como quem se despede, e saiu seguindo o som da sineta da Companhia de Cinema.
A Companhia de Cinema consistia numa camioneta de caixa fechada que se desfazia em ferrugem pelas estradas e caminhos que ligavam as povoações esquecidas. Parecia ter sido vermelha há muito tempo, mas agora não era nada. Os donos da Companhia de cinema eram dois irmãos, que tal como a camioneta, se desfaziam em pó de gente pelas estradas e caminhos. Tinham a idade indefinida que é característica a alguns velhos. Augustino Fonseca e Duarte Fonseca tinham gasto até ao último tostão a herança do pai naquele negócio visionário, e em menos de dois anos não só tinham recuperado todo o investimento, como tinham lucrado outro tanto.
Havia cerca de trinta cadeiras desdobráveis viradas para uma tela de tecido branco, preso nas extremidades a dois tubos de ferro espetados no chão. Atrás das cadeiras, virado para a tela encontrava-se o projector que seria operado pelo irmão Duarte Fonseca, e no lado direito estava um órgão preto com incrustações vermelhas e douradas de madeira talhada, onde Augustino Fonseca tocaria a musica que acompanhava o filme sem palavras.
Adónis foi o primeiro a chegar, e mal conseguindo disfarçar o nervosismo, apesar dos três bagaços que trazia no bucho, foi cumprimentar os irmãos Fonseca. “Adónis, já te estranhávamos”, disseram os irmãos ao mesmo tempo, fazendo uma vénia teatral. “Estive a matar tempo na taberna e perdi-me nas horas”, disse Adónis passando satisfeito os olhos pelas cadeiras ainda vazias.
“Tom Mix” perguntou o rapaz esperançado. “Claro, não te queríamos causar um desgosto”, disse Augustino Fonseca com um sorriso de trinta e dois dentes de ouro. “Mas da próxima vez que viermos trazemos um filme com uma actriz nova muito famosa nos Estados Unidos”, avisou o irmão Duarte Fonseca em tom solene. “Sim, uma tal de Greta Garbo. Uma estampa, Adónis, uma estampa. Vi-a num panfleto”. Adónis fez um ar amuado, “Não pode haver nada melhor que os filmes do Tom Mix”.
Sentado na cadeirinha de madeira bamba de tanto uso, Adónis tentava permanecer quieto mordiscando tremoços freneticamente para disfarçar o nervosismo. A Companhia de Cinema ambulante tinha demorado mais de três meses a regressar à vila, deixando Adónis à beira do colapso nervoso e a ponderar seriamente em fazer as malas e mudar-se para a capital, onde, como já lhe tinham dito, o cinema não era ambulante, mas sim num enorme salão onde se passavam filmes todos os dias para uma plateia enterrada em cadeirões de veludo escarlate. Se não houvesse filmes todos os dias, certamente que haveria filmes dia sim, dia não, e se não houvesse dia sim, dia não, com certeza de que haveria filmes todos os sábados. Disto ele tinha a certeza, apesar de nunca ninguém lhe ter dito que efectivamente assim o era. Fazia questão de se sentar sempre na fila da frente, o que provocava protestos constantes de quem se sentava atrás.
“Vai lá para fundo ó gigantone! Para que te metes sempre aí à frente? Tapas metade da tela”, berravam-lhe os de trás. “Calem-se ou levam um calduço nas beiças”, rosnava ele erguendo a mão fechada no ar, complementando a ameaça a mímica ridícula. Os outros riam-se, porque apesar do tamanho que tinha, Adónis era um monte de ossos coberto de uma fina camada de pele e parecia às pessoas, que em dias de ventania ele poderia levantar voo e nunca mais descer à terra.
Dona Filomena chegou com ar ensonado. “Disparates” bocejou, enquanto se sentava na cadeira que o filho lhe tinha reservado. Não havia cadeiras suficientes, e os últimos a chegar tiveram de ficar ao fundo, em pé, ou sentados ao lado das cadeiras no chão.
Um piano começou a tocar e todos se calaram num silêncio expectante. O projector começou a trabalhar e uma bobiba com milhares de imagens coladas numa película plana começou a passar a uma velocidade tal, que as figuras pareciam movimentar-se de forma contínua. A plateia, apesar de já conhecer o sistema, soltava sempre pequenas exclamações de espanto perante aquele milagre do engenho.
O herói Tom Mix passou todo o tempo que durou o filme perseguindo ora um bando de malfeitores, ora um bando de índios Apache. Adónis, sentia tanto o filme que era como se estivesse dentro dele. Gritava pelo herói, roía as unhas e sofria com cada tiro disparado, cada emboscada e cada duelo ao pôr-do-sol. Desviou por uns segundos os olhos da tela e olhou para mãe procurando um sinal de aprovação. “Disparates”, resmungou ela, que só queria que o filme acabasse para poder ir para casa.
Quando, algum tempo depois, vê Tom Mix cavalgar no seu cavalo branco e desaparecer de encontro ao maior pôr-do-sol que alguma vez tinha visto, Adónis deixa rolar pela face uma lágrima de admiração e precoce saudade.
Regressa para casa com a mãe que notou estar mais calada que de costume. “Que é minha mãe”, perguntou sem a olhar. “É aquilo que queres ser então”, perguntou-lhe. “Sim, é aquilo. Tal e qual”. “Mas cá não há índios”, disse num tom de voz sem expressão, “Nem bandidos”, continuou. “Você não entende”, gritou-lhe Adónis, apanhando-a de surpresa e fizeram o resto do caminho em silêncio.
A próxima vinda do carteiro trouxe a Adónis o que ele há tanto ansiava. Gritou um obrigado ao carteiro e, esquecendo-se que tinha terra para fresar na quinta do senhor Jarvas, correu para casa aos tropeções, apertando a encomenda contra o peito como uma mãe que protege um filho da chuva.
Numa caixa de cartão amassada e pegajosa vinha um revólver, um cinto com coldre, umas esporas e o maior chapéu de feltro que Adónis já tinha visto. Pensou que se apanhasse uma brisa rasteira e constante, poderia planar com ele sobre os campos. O revólver parecia vivo.
Encandeou-se com o brilho do metal e com um misto de receio e excitação pegou nele para lhe tomar o peso. Depois de inspirar profundamente colocou o cinto, as esporas por cima das botas, o chapéu na cabeça e de revólver na mão foi à procura da mãe aos gritos. Dona Filomena respondeu-lhe de um lugar vago.
Deu com ela a podar uma videira. “Minha mãe, olhe para mim. Já sou um cowboy”, disse-lhe de revólver em riste. A tesoura de podar fez um voo pesado e acertou-lhe num ombro. “Vira isso para outro lado. Queres matar-me” perguntou-lhe, soltando perdigotos furiosos. “Ah, desculpe minha mãe, desculpe. Mas e que tal me acha”, perguntou cheio de orgulho e vaidade. Dona Filomena pousou uma mão na cintura e com a outra mão apontou para uma árvore a pouca distância dali. “Estás a ver aquele pombo”, perguntou num tom severo, “Mata-o para o almoço que eu depois te direi o que acho”.
Adónis protestou que não era isso que faziam os cowboys, mas dona Filomena, calejada pela vida e por sonhos mortos, disse-lhe que ou caçava o pombo ou nem almoço faria para ele de todo.
Adónis, amuado como uma criança a quem obrigam tomar banho, fez pontaria ao pombo e premiu o gatilho. As entranhas do revólver contraíram-se num estalido seco e nada aconteceu. Olhou confuso para a arma e levou-a ao nível dos olhos, como se o facto de a ver mais de perto tornasse possível entendê-la melhor. Abriu o canhão do revólver tal como tinha visto Tom Mix a fazer nos filmes. “Vazio, minha mãe, não tem balas”, ouviu-se dizer à mãe, numa voz à beira do choro. “Disparate! Tudo isto é um autêntico disparate”, gritou-lhe dona Filomena levando as mãos ao céus. Voltou-se novamente para a videira e continuou a podar como se nada tivesse acontecido.
Adónis sentiu uma fúria apoderar-se dele como se tivesse uma bola de fogo a consumir-lhe cada milímetro de pele. Voltou para casa aos pontapés a cada calhau que lhe aparecia pelo caminho. Escreveu ao tio Inácio uma carta de quatro folhas a reclamar a falta de balas, que era coisa que já estava implícita no envio do revólver, e que assim seria apenas um cowboy patético e o palhaço da aldeia. Pediu-lhe então que enviasse o mais rapidamente possível dez caixas de balas, porque dessa sempre duravam algum tempo.
A notícia de que Adónis era um cowboy sem balas correu em menos de duas horas toda a vila. “Desculpa filho, perguntaram-me por ti e descai-me com a desgraça”, disse-lhe depois dona Filomena. O rapaz, carregado com uma vergonha que lhe transformou as orelhas em tochas constantes, fechou-se em casa durante dois meses a aguardar o envio das balas, esquecendo-se dos trabalhos que esperavam por ele na quinta do senhor Jarvas e de como era a luz do sol.
Passou-se o último mês da Primavera e o primeiro de Verão, até que finalmente as balas chegaram acompanhadas de uma carta ofendida do tio Inácio que tinha nada mais nada menos que dez folhas, mas que Adónis atirou para o lado e nunca chegou a ler. Atestou o canhão do revólver de balas e colocou o cinto, o coldre, as esporas e o chapéu. Pediu uma moeda à mãe para ir à taberna beber um bagaço, e tendo assim a oportunidade de exibir a sua nova condição de cowboy. Ela atirou-lha à cabeça ao mesmo tempo que soltou um "Disparates".
Adónis entrou pela porta da taberna ao fim da tarde. O brilho do sol que se punha no horizonte batia-lhe por trás, o que cegou quem se virou para o ver entrar. No início não o reconheceram. Um chapéu que mal cabia na porta devido à sua largura, coroava uma cabeça pousada num corpo que parecia um cabo de vassoura. "Adónis", gritou o taberneiro com um arroto. Os homens esquecidos nas cadeiras reconheceram-no também no meio de gargalhadas contidas. O doutor Afonso, sentado numa das pontas do balcão, engoliu o whisky de uma assentada e de corpo quente virou-se para o rapaz, fazendo um esforço tal para não rir que teve de dar uso a todos os músculos do corpo. "Então Adónis, essa saúde", perguntou com o ar mais sério que lhe foi possível, dadas as circunstâncias. "Rijo como um pêro, doutor", disse Adónis num sorriso de muitos dentes. "Vejo que já és cowboy", continuou o médico. Os risos que até agora vinham das mesas numa surdina contida, explodiram numa gargalhada geral. O taberneiro, de bochechas escarlates pela bebedeira e pelo esforço do teatro, juntou-se aos risos e descontrolou-se da bexiga. Adónis sentiu uma fúria ressentida a envolve-lo, e quanto deu por si, tinha o revólver apontado ao tecto, "Parem com isso já. Eu agora sou o cowboy da vila. Respeito", berrou ele num estado de nervos tal, que as ultimas palavras lhe saíram da boca num guincho imperceptível. "E a partir de agora quero ser tratado por Adónis Mix". Por uns momentos fez-se um silêncio surpreso, que segundos depois deu lugar a mais uma vaga de gargalhadas. Adónis, impregnado de vergonha e à beira das lágrimas resolveu disparar ao tecto para impor respeito, tal como tinha visto um sherif fazer num dos filmes do Tom Mix. Premiu o gatilho, e o estrondo fez com que todos se atirassem ao chão com expressões de espanto. A bala bateu no candeeiro, fez ricochete num prato de latão que enfeitava a lareira e um novo ricochete que a direccionou em cheio à testa de Adónis. Caiu devagar, ondulante na sua magreza, como uma fita de sede dançando ao vento. Ficou de olhos abertos a contemplar o tecto. Levantaram-se todos com o som de mesas e cadeiras a cair e debruçaram-se sobre ele. O doutor Afonso, de copo meio de whisky na mão abriu caminho pelo meio dos homens calados. "Está morto", disse com uma fungadela e esvaziando o copo, "Alguém vá chamar a mãe".
Há meses que tinha substituído a foto da mãe por uma do homem com um chapéu branco de abas largas, dando nesse dia a dona Filomena mais um entre tantos outros desgostos e fazendo-a chorar baixinho a noite toda.
Vestiu-se como se estivesse a ouvir alguém gritar fogo na rua. Enfiou as duas pernas na mesma perneira das calças e insistiu um pouco até ouvir as linhas estalarem. Depois de dar pelo erro meteu cada perna na respectiva perneira mas tentou andar ainda com as calças pelos joelhos enquanto as puxava para cima, o que o fez estatelar-se ao comprido no chão de terra batida. "Foda-se", pensou apenas, pois esqueceu-se de abrir a boca para verbalizar a palavra.
“Mãe, é hoje mãe. A encomenda, mãe”, gritou ao passar a correr pela cozinha onde dona Filomena lhe preparava um pequeno-almoço de papas de aveia com mel. “Disparates! Olha, mas tu não comes? O correio só chega às dez horas”, gritou, mas ele já tinha saído para a rua.
Tinha a mão estendida para abrir a cancela tosca do jardim quanto uma colher de pau voou de dentro de casa e lhe acertou em cheio na nuca. “Vem comer as papas de aveia, já”, guinchou-lhe a mãe, de mão na cintura e cabelo preso num rabo-de-cavalo quase desfeito. “Com que idade vais ganhar juízo, Adónis” perguntou. O filho voltou a entrar na cozinha a resmungar baixinho, curvando-se ligeiramente ao passar por debaixo da porta. Dona Filomena esticou-se toda para chegar à orelha do filho e puxou-a, levando-o de arrastão até à mesa. “Que disparate isso de quereres ser quebói” resmungava ao mesmo tempo que lhe deitava as papas a ferver dentro de um prato de barro lascado. “Cowboy”, corrigiu-a ele entre dentes.
A colher de pau ergueu-se no ao ar e caiu em voo picado acertando-lhe desta vez na testa. Engoliu as papas a escaldar, o que o fez queimar a língua e arfar como um cão exausto. “És tão desastrado. Que belo quebói vais tu dar”, disse a mãe no seu tom invarialmente jocoso. “Mãezinha, a próxima vez que passarem um filme no largo do coreto, quero que venha ver comigo. Vai ver que ser cowboy é o melhor dos destinos que um homem pode ter”, disse exaltado e de sorriso aberto. “Disparates”, resmungou ela enquanto varria o chão de terra batida.
Desde há um mês que Adónis aguardava a chegada de um revólver, um chapéu de cowboy, um cinto com coldre e umas esporas, vindos dos Estados Unidos da América. Tinha feito a encomenda ao seu tio Inácio que tinha imigrado há dez anos para Nova Iorque. “Isto aqui é um chiqueiro. Uma salada de gente que não se entende”, tinha ele escrito uma vez numa carta, assustado com agressividade dos irlandeses após a terceira cerveja e enojado com as fossas a céu aberto que enfeitavam os bairros de emigrantes.
A primeira vez que o tio Inácio viu um negro ser enforcado num poste e depois incendiado com as roupas empapadas em gasolina, caiu de cama durante duas semanas, perseguido pelos gritos de fúria da multidão e o cheiro a carne humana queimada, mas depois de mais cinco ou seis execuções públicas, a coisa já não o incomodava e passou a sentir até alguma excitação infantil sempre que o povo, equivocado ou não, fazia justiça pelas próprias mãos.
O carteiro chegou duas horas atrasado e sem revólver, chapéu, esporas ou coldre. “Não há nada para mim”, perguntou Adónis num desalento. “Volta para a semana. A aldeia aguenta sem cowboy mais uns dias”, disse numa gargalhada. Adónis afagou com um ar preocupado as faces esburacadas pelas bexigas, “Espero bem que sim, senhor carteiro. Espero bem que sim.”, disse ele com toda a calma do mundo, contemplando um ponto imaginário no horizonte. “Não é tudo mau. Pelo caminho passei pela Companhia de Cinema. Devem chegar lá para a tardinha.” disse o carteiro fazendo Adónis olhá-lo como se estivesse a ver a Nossa Senhora na aparição do 13 de Maio em Fátima. Só lhe faltou o cheiro a flores. Adónis ia dizer qualquer coisa, mas a emoção silenciou-lhe as palavras e ele sem um adeus sequer, correu em direcção à quinta do senhor Jarvas onde o aguardavam 30 puceiros de milho para esbulhar.
Quanto mais depressa acabasse, mais depressa poderia regressar a casa para tomar um bom banho, vestir o seu melhor fato e passar cera no bigode que parecia desenhado por um pincel com pouca tinta e pregado à martelada por debaixo do nariz para que não caísse.
O dia demorou mil anos a terminar e Adónis chegou a pensar que as maçarocas de milho se multiplicavam dentro dos puceiros, tal como Jesus tinha feito com o peixe e o pão. Assim que acabou de debulhar o milho correu para casa e encontrou a mãe a varrer como sempre o chão de terra batida.
“O Cinema Ambulante está cá. Hoje vem comigo mãe. Eu compro-lhe o bilhete. Vá meter o avental do domingo”, gritou ele, comendo metade das palavras com a histeria. “Disparates”, resmungou ela, disfarçando um sorriso e sentindo por aquele filho meio tonto, que nunca tinha conhecido pai, um amor que mal lhe cabia no peito.
Adónis lavou-se numa pia de água no quintal, esfregando-se minuciosamente com um pedaço de sabão tão rijo e áspero que ficou com a pele em fogo. Tirou o único fato que tinha de dentro do armário e vestiu-se à pressa, batendo com as canelas nos pés da cama e os cotovelos na cómoda que parecia ir desfazer-se em caruncho a qualquer momento. Depois de pronto demorou-se em frente ao espelho, colocando-se ora de frente, ora de lado, “Que magnífico cowboy eu vou dar. Esta vila não me merece”, dizia para o rapaz de corpo desengonçado e pele que parecia um crivo, que o mirava no espelho da casa de banho.
“Vou indo minha mãe. Venha lá ter”, disse à medida que passava a porta. “É um disparate, mas vou. Fecho as galinhas, penteio-me e vou ter contigo”, disse dona Filomena com a voz carregada de amor cansado.
Constatou que o sol ainda não se tinha enterrado no horizonte, e como tal, estava muito adiantado. Resolveu parar na taberna para matar tempo. “Adónis, rapaz! Que bom ver-te.”, berrou o taberneiro, ensopado em vinho, que mal conseguia andar e que servia os clientes aos tropeções nas mesas e cadeiras. “Vens cá pouco Adónis. Que belo rapaz te tornaste”, gozou o taberneiro, exibindo um sorriso esburacado e apodrecido. Os que estavam sentados na mesa riram cúmplices da maldade do taberneiro e cumprimentaram o rapaz com acenos moles.
Sua mãe tinha decidido dar-lhe a graça de Adónis quando, grávida de oito meses tinha visto uma lata de biscoitos trazidos de Paris em casa da sua senhora, com um belo homem em tronco nu na tampa. "É Adónis, o mais belo dos deuses gregos" tinha suspirado a senhora ao mesmo tempo que foi acometida por uma onda de calor inesperada. Dona Filomena deu então ao filho o nome do mais belo deus grego, o que infelizmente se veio mais tarde a verificar, que de propositado não tinha nada.
“Vais ao cinema não é? Ouviu-se a sineta tocar a tarde toda. Vai começar às oito horas.” disse o taberneiro enquanto lhe enchia um copinho de vidro baço com três dedais de bagaço. “Sim, espero que seja um filme do Tom Mix”, respondeu Adónis engolindo as últimas palavras juntamente com o bagaço. Os homens espalhados pelas mesas começaram a rir com a piada que era velha, mas que não perdia a graça. “Pois é Adónis, tens de aprender como fazem os cowboys” disseram, agradecendo intimamente aquele momento de divertida desgraça alheia.
Adónis achou que o melhor era não fazer caso daqueles seres de sonhos limitados, agricultores que na vida só viam arados e campos por amanhar, e pediu mais um bagaço. Deviam ser sete e meia quando começou a sentir o estômago refilar de fome e pediu um punhado de tremoços. Ia a levar o primeiro à boca quando entrou o doutor Afonso, o médico da vila. As conversas e as risadas cessaram e foram substituídas por acenos de cabeça educados e palavras de cordiais cumprimentos.
O doutor Afonso encostou-se ao balcão, e com o seu ar de quem sabia tudo o que há para saber no mundo, pediu um whisky. O taberneiro tirou a chave que tinha pendurada ao pescoço e abriu uma portinha por debaixo do balcão que continua unicamente uma garrafa de whisky, especialmente reservada para o médico. Serviu a preciosa bebida âmbar com gestos nervosos, tentado disfarçar a embriagues.
“Estás bêbado que nem um cacho, homem. Ganha vergonha”, disse o médico levando o copo aos lábios. O taberneiro pareceu ofender-se, e com o amuo de uma criança de escola, começou a limpar os copos com um trapo de cor indefinida pelo uso.
“Adónis, essa saúde”, perguntou o Doutor Afonso concentrando-se no rapaz. “Rijo que nem um pêro, doutor”, respondeu Adónis enchendo o peito, como que para demonstrar a veracidade da afirmação. “Muito bem, muito bem. E aquela maluqueira de quereres ser cowboy. Já te passou” perguntou num tom paternal que tentava em vão esconder dureza, pena e algum desprezo. “Nunca doutor. Não, não. Para a semana chega a encomenda do meu tio Inácio. Vou ter tudo o que preciso para ser cowboy”, disse o rapaz num tom ligeiramente ofendido. “Ah sim? Vais ter um revólver?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter um coldre?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter esporas para as botas?”, o rapaz acenou que sim. “Muito bem meu rapaz. Parece-me que tens tudo bem pensado”, disse o médico engolindo um gole de whisky e disfarçando um sorriso. “E um cuboiate”, quase gritou Adónis, com uma voz cheia de segurança. “Um quê”, perguntou confuso o médico. “Um cuboiate. O doutor esqueceu-se do cuboiate. O meu tio vai-me mandar um branco. Mandei-lhe a medida da minha cabeça e tudo, que é para não ser demasiado grande ou demasiado pequeno”, disse com os olhos a brilhar de excitação. “Ah, um cowboy hat”, riu o doutor Afonso, com a voz amansada pelo whisky e uma boa disposição crescente. “Muito bem meu caro. Que seria de um cowboy sem um cowboy hat”. Adónis sentia-se no centro do mundo por o doutor Afonso concordar com o seu plano, que há tanto tempo o tornava risível aos olhos de toda a vila. “E cavalo, já tens?”, perguntou o médico engolindo a tempo uma gargalhada. “A mula da minha mãe terá de servir, doutor. Pelo menos no inicio. Depois logo se verá”, disse Adónis num tom sério.
“Faltam quinze minutos para as oito”, disse agitado, olhando para o pêndulo do relógio na parede e enfiando os tremoços nos bolsos do casaco. “Está na hora”, afirmou como quem se despede, e saiu seguindo o som da sineta da Companhia de Cinema.
A Companhia de Cinema consistia numa camioneta de caixa fechada que se desfazia em ferrugem pelas estradas e caminhos que ligavam as povoações esquecidas. Parecia ter sido vermelha há muito tempo, mas agora não era nada. Os donos da Companhia de cinema eram dois irmãos, que tal como a camioneta, se desfaziam em pó de gente pelas estradas e caminhos. Tinham a idade indefinida que é característica a alguns velhos. Augustino Fonseca e Duarte Fonseca tinham gasto até ao último tostão a herança do pai naquele negócio visionário, e em menos de dois anos não só tinham recuperado todo o investimento, como tinham lucrado outro tanto.
Havia cerca de trinta cadeiras desdobráveis viradas para uma tela de tecido branco, preso nas extremidades a dois tubos de ferro espetados no chão. Atrás das cadeiras, virado para a tela encontrava-se o projector que seria operado pelo irmão Duarte Fonseca, e no lado direito estava um órgão preto com incrustações vermelhas e douradas de madeira talhada, onde Augustino Fonseca tocaria a musica que acompanhava o filme sem palavras.
Adónis foi o primeiro a chegar, e mal conseguindo disfarçar o nervosismo, apesar dos três bagaços que trazia no bucho, foi cumprimentar os irmãos Fonseca. “Adónis, já te estranhávamos”, disseram os irmãos ao mesmo tempo, fazendo uma vénia teatral. “Estive a matar tempo na taberna e perdi-me nas horas”, disse Adónis passando satisfeito os olhos pelas cadeiras ainda vazias.
“Tom Mix” perguntou o rapaz esperançado. “Claro, não te queríamos causar um desgosto”, disse Augustino Fonseca com um sorriso de trinta e dois dentes de ouro. “Mas da próxima vez que viermos trazemos um filme com uma actriz nova muito famosa nos Estados Unidos”, avisou o irmão Duarte Fonseca em tom solene. “Sim, uma tal de Greta Garbo. Uma estampa, Adónis, uma estampa. Vi-a num panfleto”. Adónis fez um ar amuado, “Não pode haver nada melhor que os filmes do Tom Mix”.
Sentado na cadeirinha de madeira bamba de tanto uso, Adónis tentava permanecer quieto mordiscando tremoços freneticamente para disfarçar o nervosismo. A Companhia de Cinema ambulante tinha demorado mais de três meses a regressar à vila, deixando Adónis à beira do colapso nervoso e a ponderar seriamente em fazer as malas e mudar-se para a capital, onde, como já lhe tinham dito, o cinema não era ambulante, mas sim num enorme salão onde se passavam filmes todos os dias para uma plateia enterrada em cadeirões de veludo escarlate. Se não houvesse filmes todos os dias, certamente que haveria filmes dia sim, dia não, e se não houvesse dia sim, dia não, com certeza de que haveria filmes todos os sábados. Disto ele tinha a certeza, apesar de nunca ninguém lhe ter dito que efectivamente assim o era. Fazia questão de se sentar sempre na fila da frente, o que provocava protestos constantes de quem se sentava atrás.
“Vai lá para fundo ó gigantone! Para que te metes sempre aí à frente? Tapas metade da tela”, berravam-lhe os de trás. “Calem-se ou levam um calduço nas beiças”, rosnava ele erguendo a mão fechada no ar, complementando a ameaça a mímica ridícula. Os outros riam-se, porque apesar do tamanho que tinha, Adónis era um monte de ossos coberto de uma fina camada de pele e parecia às pessoas, que em dias de ventania ele poderia levantar voo e nunca mais descer à terra.
Dona Filomena chegou com ar ensonado. “Disparates” bocejou, enquanto se sentava na cadeira que o filho lhe tinha reservado. Não havia cadeiras suficientes, e os últimos a chegar tiveram de ficar ao fundo, em pé, ou sentados ao lado das cadeiras no chão.
Um piano começou a tocar e todos se calaram num silêncio expectante. O projector começou a trabalhar e uma bobiba com milhares de imagens coladas numa película plana começou a passar a uma velocidade tal, que as figuras pareciam movimentar-se de forma contínua. A plateia, apesar de já conhecer o sistema, soltava sempre pequenas exclamações de espanto perante aquele milagre do engenho.
O herói Tom Mix passou todo o tempo que durou o filme perseguindo ora um bando de malfeitores, ora um bando de índios Apache. Adónis, sentia tanto o filme que era como se estivesse dentro dele. Gritava pelo herói, roía as unhas e sofria com cada tiro disparado, cada emboscada e cada duelo ao pôr-do-sol. Desviou por uns segundos os olhos da tela e olhou para mãe procurando um sinal de aprovação. “Disparates”, resmungou ela, que só queria que o filme acabasse para poder ir para casa.
Quando, algum tempo depois, vê Tom Mix cavalgar no seu cavalo branco e desaparecer de encontro ao maior pôr-do-sol que alguma vez tinha visto, Adónis deixa rolar pela face uma lágrima de admiração e precoce saudade.
Regressa para casa com a mãe que notou estar mais calada que de costume. “Que é minha mãe”, perguntou sem a olhar. “É aquilo que queres ser então”, perguntou-lhe. “Sim, é aquilo. Tal e qual”. “Mas cá não há índios”, disse num tom de voz sem expressão, “Nem bandidos”, continuou. “Você não entende”, gritou-lhe Adónis, apanhando-a de surpresa e fizeram o resto do caminho em silêncio.
A próxima vinda do carteiro trouxe a Adónis o que ele há tanto ansiava. Gritou um obrigado ao carteiro e, esquecendo-se que tinha terra para fresar na quinta do senhor Jarvas, correu para casa aos tropeções, apertando a encomenda contra o peito como uma mãe que protege um filho da chuva.
Numa caixa de cartão amassada e pegajosa vinha um revólver, um cinto com coldre, umas esporas e o maior chapéu de feltro que Adónis já tinha visto. Pensou que se apanhasse uma brisa rasteira e constante, poderia planar com ele sobre os campos. O revólver parecia vivo.
Encandeou-se com o brilho do metal e com um misto de receio e excitação pegou nele para lhe tomar o peso. Depois de inspirar profundamente colocou o cinto, as esporas por cima das botas, o chapéu na cabeça e de revólver na mão foi à procura da mãe aos gritos. Dona Filomena respondeu-lhe de um lugar vago.
Deu com ela a podar uma videira. “Minha mãe, olhe para mim. Já sou um cowboy”, disse-lhe de revólver em riste. A tesoura de podar fez um voo pesado e acertou-lhe num ombro. “Vira isso para outro lado. Queres matar-me” perguntou-lhe, soltando perdigotos furiosos. “Ah, desculpe minha mãe, desculpe. Mas e que tal me acha”, perguntou cheio de orgulho e vaidade. Dona Filomena pousou uma mão na cintura e com a outra mão apontou para uma árvore a pouca distância dali. “Estás a ver aquele pombo”, perguntou num tom severo, “Mata-o para o almoço que eu depois te direi o que acho”.
Adónis protestou que não era isso que faziam os cowboys, mas dona Filomena, calejada pela vida e por sonhos mortos, disse-lhe que ou caçava o pombo ou nem almoço faria para ele de todo.
Adónis, amuado como uma criança a quem obrigam tomar banho, fez pontaria ao pombo e premiu o gatilho. As entranhas do revólver contraíram-se num estalido seco e nada aconteceu. Olhou confuso para a arma e levou-a ao nível dos olhos, como se o facto de a ver mais de perto tornasse possível entendê-la melhor. Abriu o canhão do revólver tal como tinha visto Tom Mix a fazer nos filmes. “Vazio, minha mãe, não tem balas”, ouviu-se dizer à mãe, numa voz à beira do choro. “Disparate! Tudo isto é um autêntico disparate”, gritou-lhe dona Filomena levando as mãos ao céus. Voltou-se novamente para a videira e continuou a podar como se nada tivesse acontecido.
Adónis sentiu uma fúria apoderar-se dele como se tivesse uma bola de fogo a consumir-lhe cada milímetro de pele. Voltou para casa aos pontapés a cada calhau que lhe aparecia pelo caminho. Escreveu ao tio Inácio uma carta de quatro folhas a reclamar a falta de balas, que era coisa que já estava implícita no envio do revólver, e que assim seria apenas um cowboy patético e o palhaço da aldeia. Pediu-lhe então que enviasse o mais rapidamente possível dez caixas de balas, porque dessa sempre duravam algum tempo.
A notícia de que Adónis era um cowboy sem balas correu em menos de duas horas toda a vila. “Desculpa filho, perguntaram-me por ti e descai-me com a desgraça”, disse-lhe depois dona Filomena. O rapaz, carregado com uma vergonha que lhe transformou as orelhas em tochas constantes, fechou-se em casa durante dois meses a aguardar o envio das balas, esquecendo-se dos trabalhos que esperavam por ele na quinta do senhor Jarvas e de como era a luz do sol.
Passou-se o último mês da Primavera e o primeiro de Verão, até que finalmente as balas chegaram acompanhadas de uma carta ofendida do tio Inácio que tinha nada mais nada menos que dez folhas, mas que Adónis atirou para o lado e nunca chegou a ler. Atestou o canhão do revólver de balas e colocou o cinto, o coldre, as esporas e o chapéu. Pediu uma moeda à mãe para ir à taberna beber um bagaço, e tendo assim a oportunidade de exibir a sua nova condição de cowboy. Ela atirou-lha à cabeça ao mesmo tempo que soltou um "Disparates".
Adónis entrou pela porta da taberna ao fim da tarde. O brilho do sol que se punha no horizonte batia-lhe por trás, o que cegou quem se virou para o ver entrar. No início não o reconheceram. Um chapéu que mal cabia na porta devido à sua largura, coroava uma cabeça pousada num corpo que parecia um cabo de vassoura. "Adónis", gritou o taberneiro com um arroto. Os homens esquecidos nas cadeiras reconheceram-no também no meio de gargalhadas contidas. O doutor Afonso, sentado numa das pontas do balcão, engoliu o whisky de uma assentada e de corpo quente virou-se para o rapaz, fazendo um esforço tal para não rir que teve de dar uso a todos os músculos do corpo. "Então Adónis, essa saúde", perguntou com o ar mais sério que lhe foi possível, dadas as circunstâncias. "Rijo como um pêro, doutor", disse Adónis num sorriso de muitos dentes. "Vejo que já és cowboy", continuou o médico. Os risos que até agora vinham das mesas numa surdina contida, explodiram numa gargalhada geral. O taberneiro, de bochechas escarlates pela bebedeira e pelo esforço do teatro, juntou-se aos risos e descontrolou-se da bexiga. Adónis sentiu uma fúria ressentida a envolve-lo, e quanto deu por si, tinha o revólver apontado ao tecto, "Parem com isso já. Eu agora sou o cowboy da vila. Respeito", berrou ele num estado de nervos tal, que as ultimas palavras lhe saíram da boca num guincho imperceptível. "E a partir de agora quero ser tratado por Adónis Mix". Por uns momentos fez-se um silêncio surpreso, que segundos depois deu lugar a mais uma vaga de gargalhadas. Adónis, impregnado de vergonha e à beira das lágrimas resolveu disparar ao tecto para impor respeito, tal como tinha visto um sherif fazer num dos filmes do Tom Mix. Premiu o gatilho, e o estrondo fez com que todos se atirassem ao chão com expressões de espanto. A bala bateu no candeeiro, fez ricochete num prato de latão que enfeitava a lareira e um novo ricochete que a direccionou em cheio à testa de Adónis. Caiu devagar, ondulante na sua magreza, como uma fita de sede dançando ao vento. Ficou de olhos abertos a contemplar o tecto. Levantaram-se todos com o som de mesas e cadeiras a cair e debruçaram-se sobre ele. O doutor Afonso, de copo meio de whisky na mão abriu caminho pelo meio dos homens calados. "Está morto", disse com uma fungadela e esvaziando o copo, "Alguém vá chamar a mãe".