tag:blogger.com,1999:blog-61000993532524688382024-03-13T06:25:45.899-07:00À Sombra das PalavrasGingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.comBlogger26125tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-50463257679740116272011-04-09T10:58:00.000-07:002011-06-14T10:17:36.929-07:00Adónis, o cowboy<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOWVThHn_B182YtrG7dv5ZkZRZt2sdSZb9sp40n7BQ4w_iZMN0mwqaagrgBWL0l08y2UKk8TieHSTWG4qaTowz1oaGN2CehowLUwzL2jCg_yfrZUqotUDeIh64Rx4EnooH8yc5er09PPk/s1600/tom-mix.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjOWVThHn_B182YtrG7dv5ZkZRZt2sdSZb9sp40n7BQ4w_iZMN0mwqaagrgBWL0l08y2UKk8TieHSTWG4qaTowz1oaGN2CehowLUwzL2jCg_yfrZUqotUDeIh64Rx4EnooH8yc5er09PPk/s1600/tom-mix.jpg" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"></div><div style="text-align: justify;">Adónis levantou-se assim que o sono retalhado lhe permitiu ver a claridade que começava a tomar conta do quarto. Olhou satisfeito para a moldura em cima da mesinha de cabeceira com uma fotografia de Tom Mix, o cowboy lendário do cinema norte americano. <br />
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Há meses que tinha substituído a foto da mãe por uma do homem com um chapéu branco de abas largas, dando nesse dia a dona Filomena mais um entre tantos outros desgostos e fazendo-a chorar baixinho a noite toda. <br />
Vestiu-se como se estivesse a ouvir alguém gritar fogo na rua. Enfiou as duas pernas na mesma perneira das calças e insistiu um pouco até ouvir as linhas estalarem. Depois de dar pelo erro meteu cada perna na respectiva perneira mas tentou andar ainda com as calças pelos joelhos enquanto as puxava para cima, o que o fez estatelar-se ao comprido no chão de terra batida. "Foda-se", pensou apenas, pois esqueceu-se de abrir a boca para verbalizar a palavra. <br />
“Mãe, é hoje mãe. A encomenda, mãe”, gritou ao passar a correr pela cozinha onde dona Filomena lhe preparava um pequeno-almoço de papas de aveia com mel. “Disparates! Olha, mas tu não comes? O correio só chega às dez horas”, gritou, mas ele já tinha saído para a rua. <br />
Tinha a mão estendida para abrir a cancela tosca do jardim quanto uma colher de pau voou de dentro de casa e lhe acertou em cheio na nuca. “Vem comer as papas de aveia, já”, guinchou-lhe a mãe, de mão na cintura e cabelo preso num rabo-de-cavalo quase desfeito. “Com que idade vais ganhar juízo, Adónis” perguntou. O filho voltou a entrar na cozinha a resmungar baixinho, curvando-se ligeiramente ao passar por debaixo da porta. Dona Filomena esticou-se toda para chegar à orelha do filho e puxou-a, levando-o de arrastão até à mesa. “Que disparate isso de quereres ser quebói” resmungava ao mesmo tempo que lhe deitava as papas a ferver dentro de um prato de barro lascado. “Cowboy”, corrigiu-a ele entre dentes. <br />
A colher de pau ergueu-se no ao ar e caiu em voo picado acertando-lhe desta vez na testa. Engoliu as papas a escaldar, o que o fez queimar a língua e arfar como um cão exausto. “És tão desastrado. Que belo quebói vais tu dar”, disse a mãe no seu tom invarialmente jocoso. “Mãezinha, a próxima vez que passarem um filme no largo do coreto, quero que venha ver comigo. Vai ver que ser cowboy é o melhor dos destinos que um homem pode ter”, disse exaltado e de sorriso aberto. “Disparates”, resmungou ela enquanto varria o chão de terra batida.<br />
Desde há um mês que Adónis aguardava a chegada de um revólver, um chapéu de cowboy, um cinto com coldre e umas esporas, vindos dos Estados Unidos da América. Tinha feito a encomenda ao seu tio Inácio que tinha imigrado há dez anos para Nova Iorque. “Isto aqui é um chiqueiro. Uma salada de gente que não se entende”, tinha ele escrito uma vez numa carta, assustado com agressividade dos irlandeses após a terceira cerveja e enojado com as fossas a céu aberto que enfeitavam os bairros de emigrantes. <br />
A primeira vez que o tio Inácio viu um negro ser enforcado num poste e depois incendiado com as roupas empapadas em gasolina, caiu de cama durante duas semanas, perseguido pelos gritos de fúria da multidão e o cheiro a carne humana queimada, mas depois de mais cinco ou seis execuções públicas, a coisa já não o incomodava e passou a sentir até alguma excitação infantil sempre que o povo, equivocado ou não, fazia justiça pelas próprias mãos. <br />
O carteiro chegou duas horas atrasado e sem revólver, chapéu, esporas ou coldre. “Não há nada para mim”, perguntou Adónis num desalento. “Volta para a semana. A aldeia aguenta sem cowboy mais uns dias”, disse numa gargalhada. Adónis afagou com um ar preocupado as faces esburacadas pelas bexigas, “Espero bem que sim, senhor carteiro. Espero bem que sim.”, disse ele com toda a calma do mundo, contemplando um ponto imaginário no horizonte. “Não é tudo mau. Pelo caminho passei pela Companhia de Cinema. Devem chegar lá para a tardinha.” disse o carteiro fazendo Adónis olhá-lo como se estivesse a ver a Nossa Senhora na aparição do 13 de Maio em Fátima. Só lhe faltou o cheiro a flores. Adónis ia dizer qualquer coisa, mas a emoção silenciou-lhe as palavras e ele sem um adeus sequer, correu em direcção à quinta do senhor Jarvas onde o aguardavam 30 puceiros de milho para esbulhar. <br />
Quanto mais depressa acabasse, mais depressa poderia regressar a casa para tomar um bom banho, vestir o seu melhor fato e passar cera no bigode que parecia desenhado por um pincel com pouca tinta e pregado à martelada por debaixo do nariz para que não caísse. <br />
O dia demorou mil anos a terminar e Adónis chegou a pensar que as maçarocas de milho se multiplicavam dentro dos puceiros, tal como Jesus tinha feito com o peixe e o pão. Assim que acabou de debulhar o milho correu para casa e encontrou a mãe a varrer como sempre o chão de terra batida.<br />
“O Cinema Ambulante está cá. Hoje vem comigo mãe. Eu compro-lhe o bilhete. Vá meter o avental do domingo”, gritou ele, comendo metade das palavras com a histeria. “Disparates”, resmungou ela, disfarçando um sorriso e sentindo por aquele filho meio tonto, que nunca tinha conhecido pai, um amor que mal lhe cabia no peito. <br />
Adónis lavou-se numa pia de água no quintal, esfregando-se minuciosamente com um pedaço de sabão tão rijo e áspero que ficou com a pele em fogo. Tirou o único fato que tinha de dentro do armário e vestiu-se à pressa, batendo com as canelas nos pés da cama e os cotovelos na cómoda que parecia ir desfazer-se em caruncho a qualquer momento. Depois de pronto demorou-se em frente ao espelho, colocando-se ora de frente, ora de lado, “Que magnífico cowboy eu vou dar. Esta vila não me merece”, dizia para o rapaz de corpo desengonçado e pele que parecia um crivo, que o mirava no espelho da casa de banho.<br />
“Vou indo minha mãe. Venha lá ter”, disse à medida que passava a porta. “É um disparate, mas vou. Fecho as galinhas, penteio-me e vou ter contigo”, disse dona Filomena com a voz carregada de amor cansado.<br />
Constatou que o sol ainda não se tinha enterrado no horizonte, e como tal, estava muito adiantado. Resolveu parar na taberna para matar tempo. “Adónis, rapaz! Que bom ver-te.”, berrou o taberneiro, ensopado em vinho, que mal conseguia andar e que servia os clientes aos tropeções nas mesas e cadeiras. “Vens cá pouco Adónis. Que belo rapaz te tornaste”, gozou o taberneiro, exibindo um sorriso esburacado e apodrecido. Os que estavam sentados na mesa riram cúmplices da maldade do taberneiro e cumprimentaram o rapaz com acenos moles. <br />
Sua mãe tinha decidido dar-lhe a graça de Adónis quando, grávida de oito meses tinha visto uma lata de biscoitos trazidos de Paris em casa da sua senhora, com um belo homem em tronco nu na tampa. "É Adónis, o mais belo dos deuses gregos" tinha suspirado a senhora ao mesmo tempo que foi acometida por uma onda de calor inesperada. Dona Filomena deu então ao filho o nome do mais belo deus grego, o que infelizmente se veio mais tarde a verificar, que de propositado não tinha nada. <br />
“Vais ao cinema não é? Ouviu-se a sineta tocar a tarde toda. Vai começar às oito horas.” disse o taberneiro enquanto lhe enchia um copinho de vidro baço com três dedais de bagaço. “Sim, espero que seja um filme do Tom Mix”, respondeu Adónis engolindo as últimas palavras juntamente com o bagaço. Os homens espalhados pelas mesas começaram a rir com a piada que era velha, mas que não perdia a graça. “Pois é Adónis, tens de aprender como fazem os cowboys” disseram, agradecendo intimamente aquele momento de divertida desgraça alheia.<br />
Adónis achou que o melhor era não fazer caso daqueles seres de sonhos limitados, agricultores que na vida só viam arados e campos por amanhar, e pediu mais um bagaço. Deviam ser sete e meia quando começou a sentir o estômago refilar de fome e pediu um punhado de tremoços. Ia a levar o primeiro à boca quando entrou o doutor Afonso, o médico da vila. As conversas e as risadas cessaram e foram substituídas por acenos de cabeça educados e palavras de cordiais cumprimentos. <br />
O doutor Afonso encostou-se ao balcão, e com o seu ar de quem sabia tudo o que há para saber no mundo, pediu um whisky. O taberneiro tirou a chave que tinha pendurada ao pescoço e abriu uma portinha por debaixo do balcão que continua unicamente uma garrafa de whisky, especialmente reservada para o médico. Serviu a preciosa bebida âmbar com gestos nervosos, tentado disfarçar a embriagues. <br />
“Estás bêbado que nem um cacho, homem. Ganha vergonha”, disse o médico levando o copo aos lábios. O taberneiro pareceu ofender-se, e com o amuo de uma criança de escola, começou a limpar os copos com um trapo de cor indefinida pelo uso. <br />
“Adónis, essa saúde”, perguntou o Doutor Afonso concentrando-se no rapaz. “Rijo que nem um pêro, doutor”, respondeu Adónis enchendo o peito, como que para demonstrar a veracidade da afirmação. “Muito bem, muito bem. E aquela maluqueira de quereres ser cowboy. Já te passou” perguntou num tom paternal que tentava em vão esconder dureza, pena e algum desprezo. “Nunca doutor. Não, não. Para a semana chega a encomenda do meu tio Inácio. Vou ter tudo o que preciso para ser cowboy”, disse o rapaz num tom ligeiramente ofendido. “Ah sim? Vais ter um revólver?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter um coldre?”, o rapaz acenou que sim. “Vais ter esporas para as botas?”, o rapaz acenou que sim. “Muito bem meu rapaz. Parece-me que tens tudo bem pensado”, disse o médico engolindo um gole de whisky e disfarçando um sorriso. “E um cuboiate”, quase gritou Adónis, com uma voz cheia de segurança. “Um quê”, perguntou confuso o médico. “Um cuboiate. O doutor esqueceu-se do cuboiate. O meu tio vai-me mandar um branco. Mandei-lhe a medida da minha cabeça e tudo, que é para não ser demasiado grande ou demasiado pequeno”, disse com os olhos a brilhar de excitação. “Ah, um cowboy hat”, riu o doutor Afonso, com a voz amansada pelo whisky e uma boa disposição crescente. “Muito bem meu caro. Que seria de um cowboy sem um cowboy hat”. Adónis sentia-se no centro do mundo por o doutor Afonso concordar com o seu plano, que há tanto tempo o tornava risível aos olhos de toda a vila. “E cavalo, já tens?”, perguntou o médico engolindo a tempo uma gargalhada. “A mula da minha mãe terá de servir, doutor. Pelo menos no inicio. Depois logo se verá”, disse Adónis num tom sério. <br />
“Faltam quinze minutos para as oito”, disse agitado, olhando para o pêndulo do relógio na parede e enfiando os tremoços nos bolsos do casaco. “Está na hora”, afirmou como quem se despede, e saiu seguindo o som da sineta da Companhia de Cinema.<br />
A Companhia de Cinema consistia numa camioneta de caixa fechada que se desfazia em ferrugem pelas estradas e caminhos que ligavam as povoações esquecidas. Parecia ter sido vermelha há muito tempo, mas agora não era nada. Os donos da Companhia de cinema eram dois irmãos, que tal como a camioneta, se desfaziam em pó de gente pelas estradas e caminhos. Tinham a idade indefinida que é característica a alguns velhos. Augustino Fonseca e Duarte Fonseca tinham gasto até ao último tostão a herança do pai naquele negócio visionário, e em menos de dois anos não só tinham recuperado todo o investimento, como tinham lucrado outro tanto. <br />
Havia cerca de trinta cadeiras desdobráveis viradas para uma tela de tecido branco, preso nas extremidades a dois tubos de ferro espetados no chão. Atrás das cadeiras, virado para a tela encontrava-se o projector que seria operado pelo irmão Duarte Fonseca, e no lado direito estava um órgão preto com incrustações vermelhas e douradas de madeira talhada, onde Augustino Fonseca tocaria a musica que acompanhava o filme sem palavras. <br />
Adónis foi o primeiro a chegar, e mal conseguindo disfarçar o nervosismo, apesar dos três bagaços que trazia no bucho, foi cumprimentar os irmãos Fonseca. “Adónis, já te estranhávamos”, disseram os irmãos ao mesmo tempo, fazendo uma vénia teatral. “Estive a matar tempo na taberna e perdi-me nas horas”, disse Adónis passando satisfeito os olhos pelas cadeiras ainda vazias. <br />
“Tom Mix” perguntou o rapaz esperançado. “Claro, não te queríamos causar um desgosto”, disse Augustino Fonseca com um sorriso de trinta e dois dentes de ouro. “Mas da próxima vez que viermos trazemos um filme com uma actriz nova muito famosa nos Estados Unidos”, avisou o irmão Duarte Fonseca em tom solene. “Sim, uma tal de Greta Garbo. Uma estampa, Adónis, uma estampa. Vi-a num panfleto”. Adónis fez um ar amuado, “Não pode haver nada melhor que os filmes do Tom Mix”. <br />
Sentado na cadeirinha de madeira bamba de tanto uso, Adónis tentava permanecer quieto mordiscando tremoços freneticamente para disfarçar o nervosismo. A Companhia de Cinema ambulante tinha demorado mais de três meses a regressar à vila, deixando Adónis à beira do colapso nervoso e a ponderar seriamente em fazer as malas e mudar-se para a capital, onde, como já lhe tinham dito, o cinema não era ambulante, mas sim num enorme salão onde se passavam filmes todos os dias para uma plateia enterrada em cadeirões de veludo escarlate. Se não houvesse filmes todos os dias, certamente que haveria filmes dia sim, dia não, e se não houvesse dia sim, dia não, com certeza de que haveria filmes todos os sábados. Disto ele tinha a certeza, apesar de nunca ninguém lhe ter dito que efectivamente assim o era. Fazia questão de se sentar sempre na fila da frente, o que provocava protestos constantes de quem se sentava atrás. <br />
“Vai lá para fundo ó gigantone! Para que te metes sempre aí à frente? Tapas metade da tela”, berravam-lhe os de trás. “Calem-se ou levam um calduço nas beiças”, rosnava ele erguendo a mão fechada no ar, complementando a ameaça a mímica ridícula. Os outros riam-se, porque apesar do tamanho que tinha, Adónis era um monte de ossos coberto de uma fina camada de pele e parecia às pessoas, que em dias de ventania ele poderia levantar voo e nunca mais descer à terra. <br />
Dona Filomena chegou com ar ensonado. “Disparates” bocejou, enquanto se sentava na cadeira que o filho lhe tinha reservado. Não havia cadeiras suficientes, e os últimos a chegar tiveram de ficar ao fundo, em pé, ou sentados ao lado das cadeiras no chão.<br />
Um piano começou a tocar e todos se calaram num silêncio expectante. O projector começou a trabalhar e uma bobiba com milhares de imagens coladas numa película plana começou a passar a uma velocidade tal, que as figuras pareciam movimentar-se de forma contínua. A plateia, apesar de já conhecer o sistema, soltava sempre pequenas exclamações de espanto perante aquele milagre do engenho.<br />
O herói Tom Mix passou todo o tempo que durou o filme perseguindo ora um bando de malfeitores, ora um bando de índios Apache. Adónis, sentia tanto o filme que era como se estivesse dentro dele. Gritava pelo herói, roía as unhas e sofria com cada tiro disparado, cada emboscada e cada duelo ao pôr-do-sol. Desviou por uns segundos os olhos da tela e olhou para mãe procurando um sinal de aprovação. “Disparates”, resmungou ela, que só queria que o filme acabasse para poder ir para casa.<br />
Quando, algum tempo depois, vê Tom Mix cavalgar no seu cavalo branco e desaparecer de encontro ao maior pôr-do-sol que alguma vez tinha visto, Adónis deixa rolar pela face uma lágrima de admiração e precoce saudade. <br />
Regressa para casa com a mãe que notou estar mais calada que de costume. “Que é minha mãe”, perguntou sem a olhar. “É aquilo que queres ser então”, perguntou-lhe. “Sim, é aquilo. Tal e qual”. “Mas cá não há índios”, disse num tom de voz sem expressão, “Nem bandidos”, continuou. “Você não entende”, gritou-lhe Adónis, apanhando-a de surpresa e fizeram o resto do caminho em silêncio.<br />
A próxima vinda do carteiro trouxe a Adónis o que ele há tanto ansiava. Gritou um obrigado ao carteiro e, esquecendo-se que tinha terra para fresar na quinta do senhor Jarvas, correu para casa aos tropeções, apertando a encomenda contra o peito como uma mãe que protege um filho da chuva. <br />
Numa caixa de cartão amassada e pegajosa vinha um revólver, um cinto com coldre, umas esporas e o maior chapéu de feltro que Adónis já tinha visto. Pensou que se apanhasse uma brisa rasteira e constante, poderia planar com ele sobre os campos. O revólver parecia vivo. <br />
Encandeou-se com o brilho do metal e com um misto de receio e excitação pegou nele para lhe tomar o peso. Depois de inspirar profundamente colocou o cinto, as esporas por cima das botas, o chapéu na cabeça e de revólver na mão foi à procura da mãe aos gritos. Dona Filomena respondeu-lhe de um lugar vago. <br />
Deu com ela a podar uma videira. “Minha mãe, olhe para mim. Já sou um cowboy”, disse-lhe de revólver em riste. A tesoura de podar fez um voo pesado e acertou-lhe num ombro. “Vira isso para outro lado. Queres matar-me” perguntou-lhe, soltando perdigotos furiosos. “Ah, desculpe minha mãe, desculpe. Mas e que tal me acha”, perguntou cheio de orgulho e vaidade. Dona Filomena pousou uma mão na cintura e com a outra mão apontou para uma árvore a pouca distância dali. “Estás a ver aquele pombo”, perguntou num tom severo, “Mata-o para o almoço que eu depois te direi o que acho”. <br />
Adónis protestou que não era isso que faziam os cowboys, mas dona Filomena, calejada pela vida e por sonhos mortos, disse-lhe que ou caçava o pombo ou nem almoço faria para ele de todo. <br />
Adónis, amuado como uma criança a quem obrigam tomar banho, fez pontaria ao pombo e premiu o gatilho. As entranhas do revólver contraíram-se num estalido seco e nada aconteceu. Olhou confuso para a arma e levou-a ao nível dos olhos, como se o facto de a ver mais de perto tornasse possível entendê-la melhor. Abriu o canhão do revólver tal como tinha visto Tom Mix a fazer nos filmes. “Vazio, minha mãe, não tem balas”, ouviu-se dizer à mãe, numa voz à beira do choro. “Disparate! Tudo isto é um autêntico disparate”, gritou-lhe dona Filomena levando as mãos ao céus. Voltou-se novamente para a videira e continuou a podar como se nada tivesse acontecido.<br />
Adónis sentiu uma fúria apoderar-se dele como se tivesse uma bola de fogo a consumir-lhe cada milímetro de pele. Voltou para casa aos pontapés a cada calhau que lhe aparecia pelo caminho. Escreveu ao tio Inácio uma carta de quatro folhas a reclamar a falta de balas, que era coisa que já estava implícita no envio do revólver, e que assim seria apenas um cowboy patético e o palhaço da aldeia. Pediu-lhe então que enviasse o mais rapidamente possível dez caixas de balas, porque dessa sempre duravam algum tempo.<br />
A notícia de que Adónis era um cowboy sem balas correu em menos de duas horas toda a vila. “Desculpa filho, perguntaram-me por ti e descai-me com a desgraça”, disse-lhe depois dona Filomena. O rapaz, carregado com uma vergonha que lhe transformou as orelhas em tochas constantes, fechou-se em casa durante dois meses a aguardar o envio das balas, esquecendo-se dos trabalhos que esperavam por ele na quinta do senhor Jarvas e de como era a luz do sol.<br />
Passou-se o último mês da Primavera e o primeiro de Verão, até que finalmente as balas chegaram acompanhadas de uma carta ofendida do tio Inácio que tinha nada mais nada menos que dez folhas, mas que Adónis atirou para o lado e nunca chegou a ler. Atestou o canhão do revólver de balas e colocou o cinto, o coldre, as esporas e o chapéu. Pediu uma moeda à mãe para ir à taberna beber um bagaço, e tendo assim a oportunidade de exibir a sua nova condição de cowboy. Ela atirou-lha à cabeça ao mesmo tempo que soltou um "Disparates".<br />
Adónis entrou pela porta da taberna ao fim da tarde. O brilho do sol que se punha no horizonte batia-lhe por trás, o que cegou quem se virou para o ver entrar. No início não o reconheceram. Um chapéu que mal cabia na porta devido à sua largura, coroava uma cabeça pousada num corpo que parecia um cabo de vassoura. "Adónis", gritou o taberneiro com um arroto. Os homens esquecidos nas cadeiras reconheceram-no também no meio de gargalhadas contidas. O doutor Afonso, sentado numa das pontas do balcão, engoliu o whisky de uma assentada e de corpo quente virou-se para o rapaz, fazendo um esforço tal para não rir que teve de dar uso a todos os músculos do corpo. "Então Adónis, essa saúde", perguntou com o ar mais sério que lhe foi possível, dadas as circunstâncias. "Rijo como um pêro, doutor", disse Adónis num sorriso de muitos dentes. "Vejo que já és cowboy", continuou o médico. Os risos que até agora vinham das mesas numa surdina contida, explodiram numa gargalhada geral. O taberneiro, de bochechas escarlates pela bebedeira e pelo esforço do teatro, juntou-se aos risos e descontrolou-se da bexiga. Adónis sentiu uma fúria ressentida a envolve-lo, e quanto deu por si, tinha o revólver apontado ao tecto, "Parem com isso já. Eu agora sou o cowboy da vila. Respeito", berrou ele num estado de nervos tal, que as ultimas palavras lhe saíram da boca num guincho imperceptível. "E a partir de agora quero ser tratado por Adónis Mix". Por uns momentos fez-se um silêncio surpreso, que segundos depois deu lugar a mais uma vaga de gargalhadas. Adónis, impregnado de vergonha e à beira das lágrimas resolveu disparar ao tecto para impor respeito, tal como tinha visto um sherif fazer num dos filmes do Tom Mix. Premiu o gatilho, e o estrondo fez com que todos se atirassem ao chão com expressões de espanto. A bala bateu no candeeiro, fez ricochete num prato de latão que enfeitava a lareira e um novo ricochete que a direccionou em cheio à testa de Adónis. Caiu devagar, ondulante na sua magreza, como uma fita de sede dançando ao vento. Ficou de olhos abertos a contemplar o tecto. Levantaram-se todos com o som de mesas e cadeiras a cair e debruçaram-se sobre ele. O doutor Afonso, de copo meio de whisky na mão abriu caminho pelo meio dos homens calados. "Está morto", disse com uma fungadela e esvaziando o copo, "Alguém vá chamar a mãe".</div></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com15tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-79686863649299662362010-06-11T08:47:00.000-07:002011-03-12T05:20:27.600-08:00Alma vazia<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTDU7KpMQktXntjBGZOGDFYIuzD_aNf_7IBtG6SmUGjkt2vTlwqrP0ukFJ0NjN_wknRnnDzqNIYv5YBG9XbXLGL07xEKyYeYADBpsO6wg-NdUJhKhsFEXiXoTJeMaomvGQQ9OS-nrKAKQ/s1600/carta_by_theartr.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgTDU7KpMQktXntjBGZOGDFYIuzD_aNf_7IBtG6SmUGjkt2vTlwqrP0ukFJ0NjN_wknRnnDzqNIYv5YBG9XbXLGL07xEKyYeYADBpsO6wg-NdUJhKhsFEXiXoTJeMaomvGQQ9OS-nrKAKQ/s320/carta_by_theartr.jpg" /></a></div><div style="text-align: justify;">Os talheres batiam suavemente nos pratos e os guardanapos de linho iam e vinham num som abafado. Ninguém falava, pois era de mau tom falar com uma defunta à mesa. Há muitos anos que mal se ouvia uma palavra naquela casa. As vozes tinham-se calado quando o coração de Dona Eduarda foi ferido de morte pelo marido. Não se notou logo que Dona Eduarda tinha morrido, pois nos primeiros tempos ela parecia apenas triste. Mas o coração ferido apodreceu-lhe no peito, secou e fez-se pó. O seu corpo começou a cheirar a flores murchas e da sua boca emanava um ligeiro cheiro de águas mortas e fétidas.</div><div style="text-align: justify;">O marido tinha desde há muito declinado o seu lugar numa das pontas da mesa, e sentava-se sempre ao lado da mulher com os olhos vidrados na sua direcção e o peso da culpa a vergar-lhe a espinha. Ele falava-lhe, mas ela nunca lhe devolvia uma palavra. Nem a ele nem a ninguém. Os filhos, sentados à volta da mesa com as respectivas mulheres, tinham-se habituado desde crianças a ter como mãe uma defunta, e nada daquilo lhes parecia trágico, triste ou mesmo estranho.</div><div style="text-align: justify;">Todos os dias, antes da sobremesa, o marido de Dona Eduarda estendia-lhe um bilhetinho dobrado, onde tinha escrito tristes e breves pedidos de desculpas. Escrevia-os à noite antes de ir para a cama e guardava-os debaixo do travesseiro. "Desculpa", balbuciava ele com voz tremente, enquanto lhe estendia o pedaço de papel branco. Fazia-o em frente de todos, como se assim conseguisse a absolvição pública do seu pecado. À mesa, acostumados já com aquele ritual de tanto anos, já ninguém reparava. A entrega dos bilhetes tinha-se transformado em mais um hábito mundano, e era encarado com tanta naturalidade como escovar o cabelo de manhã ou sacudir um tapete à janela. O pedaço de papel dobrado permanecia intocado ao lado da esposa até ao final da sobremesa. Ele voltava a pegar no bilhete e puxava um enorme embrulho do chão para cima da mesa. Desapertava-lhe o cordel encerado e abri-o como se fosse um presente. Colocava o pequeno pedaço de papel junto a centenas de outros, e voltava a fechar o embrulho. Levantava-se então da mesa e ia dar um longos passeios pela cidade, com o peso da sua culpa amarrado firme e seguro debaixo do braço.</div><div style="text-align: justify;">Naquele dia o homem sentia-se mais cansado e derrotado que nunca. O peso de tantos anos de angústia tinham-se condensado naquele momento. Tinha passado a hora do almoço a contemplar as amendoeiras em flor que os saudavam batendo com os longos ramos nas janelas. Sentiu o mundo pairar sobre ele, pesado e acusador. Uma tristeza esmagadora apoderou-se do seu ser deixando-o nauseado.</div><div style="text-align: justify;">Assim que a empregada começa a colocar os pratinhos com bolo de morango e creme na mesa, ele entrega à esposa o habitual bilhetinho, mas desta vez não era branco. Tinha-o escrito em papel roxo e salpicado com umas gotas da sua água de colónia. A mesma que usava desde que a mulher lha tinha oferecido pela primeira vez há cinquenta e cinco anos atrás.</div><div style="text-align: justify;">"Eduarda, desculpa. Por favor...", inclinou-se para ela e olhou-a de frente, num derradeiro esforço de ver vida ali. Mas não encontrou nada. Estavam vazios os olhos e no seu peito apenas existia um montinho de pó que tinha sido outrora um coração. Engoliu em seco enquanto juntava o pedaço de papel roxo aos outros bilhetes. Deixou correr algumas lágrimas livremente enquanto saía de casa e fechava a porta sem ruído.</div><div style="text-align: justify;">Ao fim da tarde alguém toca à porta suavemente. A empregada dirigiu-se à saleta onde as mulheres bordavam e os homens liam o jornal e fumavam charutos. Com um ar afectado anuncia um jovem que diz ter uma entrega para fazer naquela morada. </div><div style="text-align: justify;">O rapaz entra, com uma expressão que podia ser lida como um misto de tristeza, consternação e desconforto. Debaixo dos braços carrega dois embrulhos. Um era de papel amarelo novo, mas o outro era extremamente familiar. "Há meses que me encontro com um senhor todas as tardes no parque. Oferecia-me sempre tabaco... conversávamos muito, eu e ele...", pára, visivelmente incomodado. "Ele hoje pediu-me para entregar este embrulho à esposa.", disse percorrendo todos com o olhar. Imobilizou-se ao vislumbrar o vulto de Dona Eduarda. Só aquela podia ser a mulher morta de que lhe tinha falado o velho. "Minha senhora", disse pousando-lhe o embrulho gasto ao colo. cobriu com levemente as suas mãos, as mãos geladas da velha. "O seu marido pediu-me que lhe entregasse isto e depois saltou ao rio. Ele queria muito que lesse os bilhetes...". Uma onda de choque abafado percorre todos quantos estavam na sala. As bocas abrem-se num espanto e o rapaz abandona a sala sem mais uma palavra.</div><div style="text-align: justify;">Levam Dona Eduarda para o quarto e deixam-na na cama com o pesado embrulho ao lado. Ela olha-o com com os seus olhos vazios e atira-o para dentro do cesto de papeis. Despeja-lhe para dentro o óleo de uma lamparina e pega-lhe fogo.</div><div style="text-align: justify;">Deitou-se na cama, sentindo-se finalmente em paz, e deixou que a ténue chama de vida que durante tantos anos fez o seu corpo funcionar, finalmente se apagasse. </div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"><i><br />
</i></span></div><br />
<div style="text-align: justify;"><br />
</div></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com25tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-61691510601632233932010-03-16T10:10:00.000-07:002010-06-11T06:47:33.001-07:00O banco de jardim<div style="text-align: justify;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPnKpJVXW-a9kbQCFzHZFYWtIMpKj0NtkzNe4XgpZBrN8wtZyvpCpYxo1QATAJXFboN1Z4PFUuu37CfJdcM_GT0IAiowSJ4_F6mCBa9R6qvKgcUwdfWVCx7Ag77OxARk4ClX1CMgrToeY/s1600-h/Empty_Bench_by_ninereeds_DA.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPnKpJVXW-a9kbQCFzHZFYWtIMpKj0NtkzNe4XgpZBrN8wtZyvpCpYxo1QATAJXFboN1Z4PFUuu37CfJdcM_GT0IAiowSJ4_F6mCBa9R6qvKgcUwdfWVCx7Ag77OxARk4ClX1CMgrToeY/s400/Empty_Bench_by_ninereeds_DA.jpg" width="302" /></a></div><br />
Não se lembrava de alguma vez ter sentido tanto frio. Sentado num banco de jardim prepara-se para inspirar profundamente, mesmo sabendo que isso iria ser doloroso. O ar entra dentro dele como uma avalanche que enche os pulmões de raspas de gelo e bloqueia-lhe a respiração por alguns segundos.<br />
Estica as pernas para frente enquanto une as mãos em concha atrás da nuca.<br />
Era a única pessoa à face da terra. Todos os que se cruzavam com ele não passavam de sombras esbatidas e apressadas que tentavam fintar o frio.<br />
Ao seu lado está pousado um envelope grande e amarelo, amassado pelas inúmeras viagens. Fica a olhar para o rio, perguntando-se quanto tempo demoraria a morrer naquelas aguas geladas que avançavam furiosamente até ao mar.<br />
Sente alguém aproximar-se de passo arrastado. "Boa tarde", ouve dizer. Não olha o desconhecido, mas pela voz percebeu que devia ser muito velho. Demasiado velho para estar ali numa tarde tão fria. "Boa tarde.", responde indiferente. Havia dezenas de brancos livres no jardim, mas o velho sentara-se ali, ao lado dele. Isso aborrece-o um pouco. O velho estende-lhe um pacote de tabaco e uma mortalha. "É servido?". Ele aceita, sem saber porquê.<br />
Olha para o velho de soslaio e para o seu fato bastante usado, mas de corte impecável. Na cabeça trazia um chapéu de feltro cinzento que deixava ver algumas madeixas de cabelo cor de prata.. Ao seu lado tem pousado um grosso embrulho amarelo atado com um cordel. O papel está bastante gasto e manchado, mas o cordel é novo. Ele sorri num esgar , pensando o quão caricato seria para quem passava ver ali sentados, numa tarde gelada, um jovem e um velho, ambos a fumar com gestos sincronizados, ambos com um embrulho amarelo ao lado, ambos a contemplar o rio com um vazio no olhar.<br />
"Estou quase a morrer e nunca cheguei a viver", diz o velho de forma vaga e inexpressiva. "Poucos chegam verdadeiramente a viver", responde-lhe o rapaz, naturalmente, como se na vida já nada o pudesse surpreender. O tempo passa lento e silencioso. "Obrigado pelo cigarro.", diz enquanto se despede com um simples aceno e sem olhar para trás, de mãos nos bolsos das calças e o envelope amarelo preso debaixo do braço.<br />
Volta nos dias seguintes ao mesmo banco de jardim. O velho chega sempre pouco depois. Não se admira... vê a presença do homem como lógica, quase necessária. Aceita sempre o tabaco que ele lhe oferece. “O que tem nesse envelope?”, pergunta uma tarde o velho sem olhar para ele. O rapaz demora mais de um minuto a responder, “Um manuscrito, um livro que escrevi.”, responde, ouvindo a sua voz sair tensa. “Porque anda com ele?”, insiste o velho com um ar estranhamente paternal. “Ando a tentar que mo publiquem. E o senhor, o que traz nesse embrulho?”, pergunta sentindo-se subitamente furioso com o velhote. “Hum”, é tudo o que ouve na boca do velho, que entretanto se levanta e vai embora sem proferir palavra, com passos lentos e dolorosos.<br />
Nessa noite ao deitar, deu-se conta de que iria sentir falta do velho caso ele deixasse de aparecer no banco do jardim todas as tardes.<br />
“O que tem nesse embrulho?”, pergunta-lhe uma tarde o rapaz novamente, tentado parecer casual. “As minhas culpas. Neste embrulho trago as minhas culpas.”, diz de voz sumida, enquanto fixa os olhos na ponte sobre o rio.<br />
A Primavera cobriu as amendoeiras do parque de pequenas flores brancas.<br />
O rapaz senta-se e pousa o eterno envelope amarelo. Nessa tarde o velho tarda em aparecer. O rapaz vai olhando impacientemente para a esquerda e para a direita. Fica ali a ouvir a água do rio chilreando alegremente, enquanto vai ficando cada vez mais impaciente. Quando está prestes a levantar-se para ir embora vê o velho chegar num passo mais lento que o normal. O homem senta-se sem o habitual “boa tarde” e sem lhe oferecer tabaco. “Trouxe-lhe uma tarte de groselha da pastelaria... o senhor oferece-me sempre tabaco e eu... nunca lhe trouxe nada... “, diz estendendo-lhe uma pequenina caixa de papel. O velho abre a caixa sem uma palavra e come a fatia de tarte em quatro dentadas. Não diz obrigado mas sorri-lhe com os olhos brilhantes. Olha fixamente para o rapaz enquanto lambe as ultimas migalhas de tarde dos lábios enrugados. “Este embrulho começa a pesar demais.”, diz. “Matei a minha mulher há cinquenta anos. Matei-a por dentro, entende? Ela era feliz, um ser radioso. Desde que a matei, nunca mais falou. Anda pela casa em silêncio, com a alma presa por um fio. Está no limbo... nem morta nem viva. Não vive, existe.” , o velho continua de voz embargada, “Todos os dias lhe escrevo um bilhete a pedir desculpa por a ter morto. Há cinquenta anos que lhe escrevo... estão todos aqui, neste pacote. Ela nunca os leu. Recusa-se. Recusa-se porque não me quer perdoar.”. O rapaz cala no fundo da garganta as mil perguntas que quer fazer ao velho. Vê-o a afagar o pacote, de lágrimas nos olhos e sente uma terrível vontade de o abraçar.<br />
“Há quanto tempo nos encontramos aqui?”, perguntou pensativo. “Há alguns meses.”, respondeu-lhe o rapaz, sentindo um nó que lhe começava a estrangular o estômago. O velho leva a mão ao bolso da lapela e tira um pequeno cartão. “Esta é a minha morada. Importava-se de entregar este pacote à minha mulher?”, pergunta calmamente. “Claro, sim... claro.”. “Obrigado.”. O velho levanta-se e dirige-se à ponte. Caminha devagar, com o peso da culpa a vergar-lhe os ombros. O rapaz vê-o trepar com bastante esforço o pequeno gradeamento de ferro enferrujado. Por um instante sustem-se equilibrado no ar, o tempo suficiente para gritar “Obrigada pela tarte de groselha e boa sorte com o livro!”, e deixa-se cair na corrente violenta. O rapaz fica parado, a olhar, incapaz de se mover. Leva a mão ao bolso e tira um pacote de tabaco e mortalhas. Enrola um cigarro muito devagar . Acende-o e dá um bafo longo. Olha para a morada no pequeno cartão acinzentado. Pega no pesado embrulho do velho e no seu envelope amarelo e afasta-se, com os dois embrulhos debaixo do braço e cigarro na boca.</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com19tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-62635038953515807492010-03-07T14:55:00.000-08:002011-03-12T05:20:59.745-08:00A casa dos rouxinóis<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqn2f9L99gO6qdGlf8OM2Eo1CuewRqo9nHodLgyf_YElqJc3TEHzlYsOb7ddqzdiKY4AshUYVL9wZaeu9wksrvVrhmajUP8L5KYdJbYCqK8t2XSdjQ_BMKNmfLCGwISt5joGRZwzVQVCQ/s1600-h/Frieseke_FRF003.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqn2f9L99gO6qdGlf8OM2Eo1CuewRqo9nHodLgyf_YElqJc3TEHzlYsOb7ddqzdiKY4AshUYVL9wZaeu9wksrvVrhmajUP8L5KYdJbYCqK8t2XSdjQ_BMKNmfLCGwISt5joGRZwzVQVCQ/s320/Frieseke_FRF003.jpg" /></a> </div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br />
</div><div style="text-align: justify;">As várias centenas de rouxinóis acordavam o senhor Justino, como sempre, por volta das cinco horas da manhã. A musicalidade das pequenas aves perdia-se na quantidade de pios que tornavam o som insuportável. A passarada era a paixão da esposa, Dona Carlota Maria que, desde o primeiro dia de casada os começou a coleccionar, desalmadamente, em inúmeras gaiolas estrategicamente colocadas em todas as varandas e terraços da casa. Havia gaiolas em finas ripas de madeira simples, mas também gaiolas em arame trabalhado, madeira branca cheia de rendilhados, ou pintadas de dourado. Todos os Domingos aparecia uma romaria de gente para ver o espectáculo, incluindo estranhos de vilas e aldeias vizinhas que, tendo ouvido falar na “Casa dos Rouxinóis”, o queriam comprovar com os seus próprio olhos, visto ser certo e sabido que a língua que espalhava uma história normalmente exagerava na magnitude da mesma. Nunca ninguém saiu daquela casa desapontado. Dona Carlota Maria inchava de vaidade enquanto o marido se refugiava no quarto à beira de um colapso nervoso, a tremer e a roer almofadas.<br />
A mulher, tal como os rouxinóis, começava os seus monólogos por volta das cinco da manhã e só se calava para dormir, ou durante os breves instantes em que parava para tomar fôlego.<br />
“Levanta-te homem que o sol já vai alto! Mandei a criada comprar mais cera para o teu bigode, mas ela esqueceu-se. Eu até lhe escrevia uma lista de compras, mas de que lhe serviria se a desgraçada não sabe ler? Já pensei em perder algum tempo e ensiná-la, mas logo alguém a resgataria com um salário mais alto. Já não há lealdade nos serventes como antigamente. Não sei o que se passou com o colete do teu fato preto, tem uma mancha que não sai. Como é que fizeste aquilo? Não tens cuidado nenhum, é o que é! O que seria de ti sem mim, gostava eu de saber… sempre atrás de ti a emendar os teus disparates. Se não te acordasse eras bem capaz de dormir até morrer! És um preguiçoso, é o que é! A preguiça é o instrumento do Diabo! E os meus joelhos que há três dias não me dão descanso… aproxima-se uma tormenta, e das grandes! Escreve o que eu te digo. Nunca me enganaram, estes meus joelhos. E que desgastados que estão por causa do raio da escadaria em caracol que te lembraste de fazer nesta casa! Devias-me trazer ao colo até ao andar de cima! Isso sim. É o que merecias! Sabes quantos degraus tem? Aposto que não sabes. O que é que isso te interessa, se não és tu que tens problemas de joelhos, não é? Pois eu te digo que tem cento e cinquenta e três degraus! Achas bem que eu tenha de, até ao final dos meus dias, trepar cento e cinquenta e três degraus cerca de dez vezes por dia? É que para descer, todos os santos ajudam, mas e para subir? Oh suplicio! Deus me leve para o Paraíso, que no Inferno já eu estou há quinze anos! Amanhã é o baile dos fidalgos do Monte Branco. Como raio vou conseguir tirar a mancha do teu colete até lá? Imagina a nossa figura, tu de colete com uma nódoa, sem cera no bigode e eu a crepitar dos joelhos! É nisto que nos tornamos! As mais importantes famílias da região vão lá estar, e tu com uma nódoa no colete! Que vergonha! Oh tivesse eu ido para noviça! Teria mais animação num convento que com este casamento desgraçado! E larga esse cachimbo homem, que o cheiro me mete os pulmões numa aflição! ”<br />
E assim continuava Dona Carlota Maria desde que o sol nascia até que o sol se punha. Aos seus monólogos torturantes juntava-se o incessante chilrear dos rouxinóis. O senhor Justino não sabia o que tinha acontecido à antiga Dona Carlota Maria, que nos tempos de noivado mal abria a boca, mas que após a noite de núpcias a abriu para não mais a fechar.<br />
Os bailes dados pelos fidalgos do Monte Branco já não eram novidade, mas causavam sempre uma alegria quase infantil ao senhor Justino, pois Dona Carlota Maria assim que lá chegava começava e espalhar a sua torturante verborreia pelos restantes convidados dando-lhe umas boas quatro horas de sossego. Ficava numa das poltronas a fumar cachimbo, deliciado, acenando cordialmente a este e àquele conviva. Contemplava com alguma tristeza as mulheres dos outros, que com uma delicadeza quase angelical mantinham conversas alegres e risinhos escondidos por leques. Este sossego terminava assim que subiam para o coche e voltavam para casa. Naquela noite, entrar para o coche custou-lhe mais do que costume. Olhou aquele objecto negro à sua espera… A caixa de madeira arredondada e escura parecia ganhar a vida de um sarcófago. Entrou relutante, olhando por cima do ombro para as janelas iluminadas do palacete, de onde ainda se ouviam as risadas dos últimos convidados. <br />
“Viste o vestido da mulher do corregedor? Escarlate! Que desenvergonhada! E como se atreveu a vir de cabelo solto? Uma mulher casada e daquela idade, de cabelo solto! Oh que vergonha! Já nem estes bailes são o que eram antigamente! Sabes porquê? As pessoas já não têm valores! E o comendador que de braço dado à esposa, andava a piscar os olhos à amante? Toda a gente sabe e ninguém diz nada! Toda a gente menos a sonsa da mulher dele… e daí não sei. Se calhar sabe e não se importa! É neste estado que está o mundo! Aquele champanhe vai-me fazer dor de cabeça. Que triste a ganância dos fidalgos que faz servir aos convidados champanhe reles! Onde andaste a noite toda que nem uma única moda dançaste comigo? Os meus joelhos podem já não estar muito bons graças a ti e aos teus cento e cinquenta e três degraus, mas garanto-te que ainda gostam de dançar uma moda. A orquestra desafinava como se tivesse o diabo à solta dentro dos instrumentos, mas mesmo assim, gostaria de ter dançado uma moda. Antes de casarmos tu gostavas de dançar. Não sei o que te aconteceu! Oh que miserável eu sou! Só Deus sabe o que te aturo!”<br />
Os primeiros raios de sol despertaram os rouxinóis que imediatamente iniciaram a zoeira do costume. Dona Carlota Maria levantou-se imediatamente, começando a sua cantilena asfixiante assim que colocou o primeiro pé no chão. <br />
O senhor Justino ficou mais algum tempo deitado na cama, olhando o vazio do tecto e analisando matematicamente aqueles quinze anos de casamento.<br />
Quando se levantou dirigiu-se ao suporte de ferro num dos cantos do quarto que tinha um espelho, uma bacia em esmalte cheia de água fresca e uma toalha. Olhou-se no espelho e os seus olhos riram. Pegou na lâmina de barbear, e com dois gestos rápidos cortou o bigode repenicado e teso da cera. Afagou a pele macia e sorriu. Com passos calmos e gestos lentos, correu todas as varandas abrindo as gaiolas uma a uma, deixando fugir os rouxinóis. Alguns permaneciam estáticos nos poleiros. A esses, pegava-os com as mãos e arremessava-os ao ar com uma gargalhada. Muitos caíam atordoados no jardim por não conseguirem voar.<br />
À falta de ocupantes, as gaiolas foram-se silenciando aos poucos. Não tardou que Dona Carlota Maria desatasse a subir as escadas em caracol, aos guinchos, para ver o que se passava com os seus rouxinóis. <br />
O senhor Justino esperou por ela ao cimo das escadas apenas de calças e suspensórios. O seu peito desnudo e forte batia desalmadamente, como uma criança que sem qualquer arrependimento que está prestes a sofrer as consequências de uma travessura.<br />
A urgência da subida fazia a esposa arfar mais que o normal.<br />
“Malditas escadas! Os meus rouxinóis! Onde estão os meus rouxinóis, que não os ouço? Os meus rouxinóis, oh os meus queridos rouxinóis! Que fizeste tu? O que fizeste homem? Oh, o teu bigode! O teu lindo bigode! A única coisa de jeito que tinhas! E que preparos são esses? Porque não estás vestido, homem desavergonhado e preguiçoso? Ai o bigode! Porque o rapaste? Enlouqueceste? O que se passa com os rouxinóis?”<br />
O senhor Justino esperou que a mulher chegasse ao último degrau, e deixou-se ficar estático, barrando-lhe a passagem. <br />
“Sai-me da frente homem! O que fizeste aos meus rouxinóis? Deixa-me passar alma do demo!”. E foi então, que com uma calma subaquática, o senhor Justino espetou o dedo indicador no peito da mulher. Ela desequilibrou-se e com um “Oh!”, foi rebolando pela escadaria abaixo, sentido no corpo cada um dos cento e cinquenta e três degraus.<br />
Imobilizou-se ao fundo das escadas, de pescoço partido, pernas torcidas, coluna estilhaçada e olhos abertos num espanto.<br />
O senhor Justino vai até uma das varandas cheia de gaiolas vazias e senta-se numa cadeira de balouço. Tira o cachimbo do bolso das calças e acende-o. Fecha os olhos calmamente enquanto o fumo lhe inunda os pulmões. Oscila a cadeira para trás e para a frente, serenamente, numa dança muda, apreciando pela primeira vez em muitos anos o mais profundo dos silêncios.</div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"><i><br />
</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-small;"><i>oil painting por Frieseke </i></span></div><div style="text-align: justify;"><br />
</div><div style="text-align: justify;"><br />
</div></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com17tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-27638806104521851652010-02-23T08:55:00.001-08:002010-09-14T02:39:06.400-07:00A longa espera...<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigOX6M1RACp49I9XAgEU0_bdtLaue3E2XnFtkjbCgseE4LRDwzbeINI9q9NZzgQYo-rur_p1lzK1s-d_vbV7zFa90WBemNrBHeGqJlXqQpW5_ka_bZtvt4IEE-LLP2UuSTtjWragO7w-4/s1600-h/velha.jpg" onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5441473850870031794" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEigOX6M1RACp49I9XAgEU0_bdtLaue3E2XnFtkjbCgseE4LRDwzbeINI9q9NZzgQYo-rur_p1lzK1s-d_vbV7zFa90WBemNrBHeGqJlXqQpW5_ka_bZtvt4IEE-LLP2UuSTtjWragO7w-4/s400/velha.jpg" style="cursor: pointer; display: block; height: 400px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 295px;" /></a>Finalmente estava velha! Tinha esperado muitos anos pelo momento exacto em que sentiria mais para lá do que para cá, e quando esse momento chegou aceitou-o com júbilo e excitação.<br />
<div style="text-align: justify;">Espreitou a manhã radiosa pela janela do quarto e sorriu com os poucos dentes que lhe restavam. Olhou para o penico debaixo da cama e pela primeira vez desde que se conhecia, deixou-o ficar em vez de o ir despejar à latrina. Tomou essa decisão de forma travessa e triunfante.<br />
Foi buscar uma pá à arrecadação e dirigiu-se para o quintal. Caminhou pesadamente, com a dificuldade da idade até chegar ao pé de nove enormes vasos de roseiras alinhados em fila, que tinha coleccionado ao longo de mais de sessenta anos de trabalho árduo. Tentou mover um mas não conseguiu. Já não tinha forças para tanto. Empurrou-o até que tombasse para o chão em mil cacos. Começou a cavar no lugar do vaso até que a pá começou a fazer um som seco. Puxa um pesado pote para fora do buraco. Abre-o ali e mergulha as mãos velhas em centenas de moedas de ouro. Dá uma sonora gargalhada que culmina em risinhos nervosos. Olhou para os restantes vasos de rosas por uns momentos com visível satisfação.<br />
Voltou para casa e encheu a sua malinha de domingo de moedas. Guardou as restantes num buraco do soalho e com o seu melhor xaile aos ombros caminhou com os seus passinhos lentos de velha até à casa do ferreiro. Não se sabia porque chamavam ferreiro ao ferreiro, já que ninguém jamais o tinha visto a moldar o que quer que fosse, no entanto todos iam ter com ele quando precisavam de coisas mais complicadas de obter. A velha em breves minutos disse-lhe tudo o que pretendia. O homem olhava-a embasbacado à medida que ela ia falando. No final lança-lhe um olhar de dúvida, que a velha apagou ao virar a malinha cheia de moedas em cima da mesa. Apenas soltou um "Oh Deus!" enquanto a velha lhe piscou um olho, satisfeita.<br />
Na semana seguinte começa a chegar a enorme encomenda feita. Cria-se um enorme alvoroço em frente à casa da velha, enquanto de carroças, homens suados descarregam as mais variadas coisas. Uma enorme banheira de porcelana branca com pés em metal dourado, metros e metros de tecido de estampados garridos, caixas de madeira cheias de copos de cristal acomodados em palha, um piano de cauda, enormes braseiros de cobre, carpetes fofas enroladas e presas por um cordel, muitas caixas de conteúdo desconhecido e até objectos apenas cobertos por panos brancos mas sempre carregados com o maior dos cuidados.<br />
A noticia espalha-se por toda a vila até chegar a casa das filhas da velha. Eram sete no total, todas idênticas de aparência mas não de humores. Caminham esbaforidas para casa da mãe, perplexas, surpresas, comentando umas com as outras a notícia e questionando a sua veracidade.<br />
As filhas passaram por caixas e mais caixas largadas no jardim da mãe e entraram na casa aos tropeções.<br />
"Minha mãe!", disse a mais velha, "Que se passa aqui? O que é tudo o isto? Enlouqueceu, minha mãe?". As outras acompanharam-na num coro lamuriento, "Enlouqueceu minha mãe?". A velha que já tinha previsto esta reacção, e que até tinha um pequeno discurso improvisado, exaltou-se e deixou o discurso entalado na garganta. "Como ousam?", grita subitamente. "Como se atrevem? Criaturas ingratas! Criei sete filhas e trinta e um netos, tantos netos que nem sei o nome de todos! Vivi para vocês mais de sessenta anos sem nunca soltar um único "ai"! Esperei toda a vida por isto. Finalmente o descanso! Agora é a minha vez de ser servida! Acabaram-se as couves da minha horta e os ovos dos meus poleiros. Acabaram-se os almoços de Domingo em minha casa! Até almoços de Páscoa e as Ceias de Natal!", pára arfando e de olhos a sair das órbitas. Aponta o dedo indicador à filha mais velha, "Este Domingo o almoço é em tua casa. No Domingo a seguir é em casa da segunda mais velha e assim sucessivamente e até chegarmos à mais nova. E depois começa-se do princípio. Estamos entendidas?". Responderam em forma de grunhidos surpresos enquanto olhavam umas para as outras virando a cabeça em seis direcções. "Mas mãezinha, onde arranjou dinheiro para comprar tudo isto?", pergunta a mais velha aflita, na sua qualidade de porta-voz. "Poupei-o!", gritou a mãe num guincho rouco e gutural que as fez fugir em debandada.<br />
Nessa tarde a velha recebeu uma procissão de raparigas candidatas a um emprego de copeira, e quem diz copeira diz cozinheira, jardineira, caseira e tudo o mais que houvesse para fazer naquela casa. As moças iam-se apresentando à sua frente com uma pequena vénia. Amaldiçoava o cadeirão de pele novo extremamente desconfortável em que estava sentada, ao mesmo tempo que ia declinando as moças umas atrás da outra. "És muito baixa, não chegas aos sítios mais altos!", "És muito alta, deves ser muito desengonçada e trapalhona!", "És demasiado branca, nunca deves ter trabalhado na vida!", "És vesga, não quero morrer a olhar para uma vesga!". A velha achou que com a sua idade já não seria preciso estar com cortesias e de certo também não lhe restava muito tempo para simpatias, desta forma vomitava assim as verdades com enorme satisfação. Chegou a vez de uma rapariga de tronco caparrudo e sobrancelhas unidas. "Caramba! Que feia que és! Feia que nem um trovão! Caramba, caramba!". A rapariga olhou para a velha sem surpresa e olhos inexpressivos. "Gosto de ti, sabes? Pareces forte! Aposto que nunca adoeceste na vida. Como te chamas minha filha?", "Lúcia, minha senhora.", disse a rapariga sem convicção, como se aquele nome não significasse nada."Lúcia... Muito bem! Dou-te este trabalho se te puder chamar Feia." riu a velha com uma ponta de malvadez. "Aceito o trabalho se lhe puder chamar Velha.". A velha soltou uma sonora gargalhada e quando deram por si, ambas riam como umas perdidas, a Velha e a Feia. "Feia, a primeira coisa que vais fazer, é levar este cadeirão para o quintal e pegar-lhe fogo.".<br />
Feia veio mudar completamente a vida da velha. Fazia o trabalho pesado de cinco homens com a mesma destreza com que enchia de rosas todas as jarras da casa. Tinha um dom especial para os doces, o que fazia com que a velha passasse as tardes a empanturrar-se de barrigas de freira e creme de ovos.<br />
Todas as noites, quando Feia a despia para lhe dar um banho, dizia-lhe ,"Feia, ouve o que te digo, poupa as moedas de ouro que te dou, guarda-as como se disso dependesse a tua vida, e se tiveres a sorte de chegar à minha idade, esbanja-o como se não passassem de moedas de latão, ouviste?", "Sim minha Velha.", dizia sempre Feia na sua voz sem expressão, de joelhos ao pé banheira de porcelana, enquanto espremia um paninho embebido em água de rosas pelas costas da Velha. Aquela anciã tinha-lhe ocupado no coração o lugar que pertencia à mãe que nunca tivera.<br />
Aos Domingos, a filha designada de dar o almoço à família toda, recebia a mãe à porta, acomodada numa carroça forrada de almofadas fofas, puxada por um burro com uma colar de cetim vermelho cheio de guizos pendurados. Tinha jurado a si mesma que até morrer não voltaria a dar um passo, a menos que fosse estritamente necessário.<br />
Sentavam a mãe sempre no topo da mesa, de onde ela, qual rainha no trono, ia lançando comentários agrestes em todas a direcções. "Que decote é esse? Pareces uma rameira, valha-me Deus!", "Como estás velha e acabada minha filha. Esse desleixo também não ajuda!", "Venha cá meu genro. Que é isso no colarinho? Se se lavasse como deve de ser, não teria a camisa nesse estado!", "Que arroz é este? Parece borracha. Oh valha-me Deus, que me querem matar!", "Como estão travessas estas crianças! Não lhes metam a mão agora, não... que ficam perdidas!". A ladainha durava toda a refeição e ia-se aperfeiçoando de Domingo para Domingo, levando ao desespero as filhas, os genros e os netos.<br />
Feia não largava a velha nem por um momento, fazendo questão de que nada lhe faltasse, mesmo quando lhe apetecia chá de jasmim a meio da noite, e tivesse de ir apanhar as folhas ao quintal debaixo do maior dos temporais.<br />
Os anos passavam lentos e tépidos. A velha habituara-se a fazer longos monólogos todas as tardes, enquanto Feia lhe escovava os finos cabelos prateados por puro entretenimento. Contou a Feia como tinha ficado viúva logo após o nascimento da sétima filha, da herança deixada pelo marido que ela com juízo tinha conseguido multiplicar muitas vezes, do desgosto que tinha por nem uma única filha ter escolhido um noivo decente... e por fim, quando a sua confiança em Feia era inabalável, contou-lhe dos oito restantes vasos de roseiras no quintal que marcavam o lugar onde estava enterrada o resto da sua fortuna. "Quando eu morrer, vais lá e tiras um para ti. O resto é para as minhas filhas. São uma lorpas, mas o que é que se há-de fazer...? Entendeste Feia?", "Sim minha Velha", respondeu-lhe Feia agradecida, com um travo de tristeza na voz.<br />
Numa manhã de sol invernal, a velha não acordou. Feia encontrou-a com um chá de jasmim frio na cabeceira da cama e um pratinho de barrigas de freira intacto. Tinha uma expressão suave e serena, de uma paz imensa.<br />
Depois do funeral, Feia chamou as filhas a casa da velha. Na pequena mesa da sala de jantar tinha alinhados os oito potes cheios de moedas que tinha desenterrado no quintal. Explicou perante o ar assombrado das sete mulheres, que a cada uma estava destinado um pote. Enquanto elas olhavam em silêncio e de mão sobre a boca a enorme fortuna sem saber o que dizer, Feia pegou numa pequena trouxa de serapilheira com os seus poucos pertences e encaminhou-se para a porta. "Espere! Há um pote a mais!", gritou-lhe a filha mais velha. "Esse a sua mãe deu-mo a mim.", disse às sete cabeças viradas para ela. "E não o leva?", perguntaram surpreendidas sete vozes em simultâneo. "Não, obrigada. A vossa mãe já me deu mais do que eu alguma vez pude imaginar.", disse na sua voz sem expressão enquanto girava a maçaneta da porta."Mas espere! A nossa mãezinha, que falava tanto consigo... nunca lhe disse nada sobre nós?", perguntou esperançada a filha do meio. "Sim... dizia muitas vezes que não sabe o que fez a Deus para que lhe tivesse calhado umas filhas tão lorpas.". E saiu porta fora.</div><br />
<span style="font-size: 85%;"><span style="font-style: italic;">oil painting por Gerrit Dou<br />
</span><span style="font-style: italic;"><span style="font-weight: bold;">Para </span><a href="http://fabricadeletrasepalavras.blogspot.com/" style="font-weight: bold;">Fábrica de Letras</a><span style="font-weight: bold;"> - "Velhice"</span></span><span style="font-style: italic;"><br />
</span></span>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com16tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-53504406396860602862010-01-19T01:25:00.000-08:002010-01-30T01:35:43.301-08:00Gustava<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXdCS6nPL6BHw1DtE1A9n1TSGSq4yATXxXaxOcq39Iba9jTqr1pJZV6SkAXgQlMz31NSXli1Utz_2pHMbXKwDs7TXMEJuOA408Ve8CRZXYjiAea2qWVG_kBQbJP6XxetdUtvS-ccKbwsI/s1600-h/pintura_%C3%B3leo_Alexej+Harlamo.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 258px; height: 400px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjXdCS6nPL6BHw1DtE1A9n1TSGSq4yATXxXaxOcq39Iba9jTqr1pJZV6SkAXgQlMz31NSXli1Utz_2pHMbXKwDs7TXMEJuOA408Ve8CRZXYjiAea2qWVG_kBQbJP6XxetdUtvS-ccKbwsI/s400/pintura_%C3%B3leo_Alexej+Harlamo.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5432233773728641298" border="0" /></a>Caminha descalça por entre os estábulos e os currais vazios. As pedras magoam-lhe os pés. De alguns dedos escorre sangue vivo e quente, noutros vêm-se crostas secas de outros dias.<br /><div style="text-align: justify;">A sineta lá em baixo continua a tocar insistentemente. Está a tocar há já cinco minutos, calcula ela. É uma estupidez ser a única servente daquela família de loucos. Como podiam pensar que ela sozinha conseguia fazer tudo? Limpar, cozinhar, tratar da horta...! “Um dia vou-me embora daqui!”, prometia ela muitas vezes. Nem sequer lhe pagavam, de que lhe valia servir naquela casa? Aos trinta anos estava acabada. A juventude tinha-se esfumado no meio de tantos trabalhos pesados... às vezes pensava que nunca tinha sido jovem, que tinha tido sempre as mãos gretadas e a tez queimada do sol.<br />A sineta continua imparável. Acelera o passo ao ver o vulto do jovem montado numa bicicleta, com uma enorme cesta de verga com rodas atada de atrelado.<br />Ela pára, do lado de dentro do portão, de olhar furioso e cabelo em desalinho.<br />- Tanta pressa!! Não estás farto de saber que trabalho sozinha aqui? – atira-lhe ela, mais em tom de afirmação que de pergunta.<br />Ele olha para ela, chocado com o quanto aquela rapariga se degradava de mês para mês. Ainda se lembrava dela a correr pela quinta com um vestido de linho branco, lançando gargalhadas ao vento. Sente um nó de tristeza que lhe aperta o estômago e o coração a ficar um pouco mais vazio.<br />- O que foi? Porque olhas assim para mim? Endoideceste, tu? Se me pagassem eu comprava umas tamancas novas, mas dinheiro nem vê-lo! Nem vê-lo! As que tinha partiram-se há uns dias. O merceeiro paga-te? – Pergunta mirando-o com um profundo interesse na resposta. Ele acena que sim ao mesmo tempo que lhe estende um pacotinho de caramelos.<br />- Oh, trazes-me sempre um doce. Até parece que estás apaixonado por mim! - Ri-se ela deliciada, mostrando os dentes que outrora tinham sido da cor da porcelana.<br />Ele cora e crava os olhos na terra. Sempre sem articular palavra, entra pelo portão e puxa até ao casarão, no topo do monte, a cesta carregada de pacotes de açúcar e arroz, frascos de café, pacotinhos de especiarias e farinha, destinadas a abastecer os móveis da cozinha. Fazia esta visita todos os meses. Ninguém daquela casa ia à vila há já muitos anos.<br />O Conde, que nunca tivera cabeça para os negócios nem para o jogo, era apaixonado por essas duas actividades. Assim sendo, perdeu tudo o que tinha na roleta e nas cartas e em investimentos desastrosos na capital.<br />Herdara o título aquando da morte de seu pai, que, completamente louco, costumava correr pelos campos a tentar apanhar borboletas, tropeçando em tudo quanto era pedra. É que se a paixão do filho eram os negócios e o jogo, a paixão do pai era a entomologia. Uma das pedras tinha sido fatal... e lá ficou o conde, estendido no chão com o crânio rachado ao meio. O filho assumiu o titulo com um ar pomposo... a primeira coisa que fez foi casar com uma prima abastada, afim de não dispersar fortuna. Infelizmente o gene da loucura corria pelas veias da família há muitas gerações... depois de perder tudo enlouqueceu, a seguir enlouqueceu a mulher e logo depois foram os filhos.<br />Viviam então alienados do mundo, naquela mansão decrépita, levando vidas de faz-de-conta, como se vivessem num gigantesco palco de teatro.<br />Está o rapaz a pousar as mercearias na mesa de mármore da gigantesca cozinha, quando o Conde entra, de bigode repenicado a fumar cachimbo.<br />-Gustava! Ainda bem que a encontro! Olhe, queria pedir-lhe que sirva veado ao jantar... há imenso tempo que me anda a apetecer veado. Bem tenrinho! Tome providências! – diz de modo afectado, e de postura rígida que nem um cepo, enquanto uma traça lhe pousa na lapela do casaco. Sai da cozinha apressadamente, deixando um rasto de cheiro bafiento, e sem prestar a mínima atenção ao rapaz.<br />- Veado! Oh... Veado! Eu lhe digo o veado! – Atira ela num grito rouco – Veado! Já me viste isto? Não tem onde cair morto e pede-me veado! Eu dou-lhe o veado! Desde que esta família enlouqueceu que eu me desdobro para que eles não morram à fome. Às vezes tenho de tirar da minha própria boca para lhes dar a eles! Um dia desapareço daqui! Nem me pagam... de que me serve? - Continuava ela na ladainha do costume.<br />O rapaz regressa à mercearia, pedalando velozmente, agora com a ligeireza do cesto vazio. O vento que lhe bate na cara lava-lhe as lágrimas.<br />O patrão olha para ele apreensivo.<br />- Como está ela? - pergunta preocupado. Mas o rapaz não responde, e num acesso de raiva começa a empilhar enormes sacos de farinha como se de plumas se tratassem.<br />Nessa tarde Gustava passeou-se demoradamente pela horta à procura de algo para o jantar. Os pés descalços enterravam-se na lama fria. Entre as alfaces roídas pelos coelhos e uns feijões verdes retorcidos e meio secos, encontra alguns tomates. Leva-os para a cozinha no regaço do avental sujo e corta-os em tiras muito finas. Coloca-os artisticamente numa bandeja de prata enquanto resmunga "Veado, bah, eu dou-lhes o veado.". Solta um sonoro espirro e é percorrida por um calafrio gelado. "Vou adoecer por não ter um raio de uns tamancos! Maldição!". Do salão começa a ouvir o habitual sininho de cobre que a condessa costumava agitar quando já estavam todos à mesa.<br />Entra na outrora sumptuosa sala de jantar iluminada apenas com três velas de sebo e pela lareira que crepitava baixinho. Leva nas mãos sujas a travessa cheia de tomate salpicado com oregãos frescos.<br />A família estava toda ali. A condessa tinha um vestido amarelo canário em veludo surrado. As rendas dos punhos estão desfeitas e arrastam-se lambendo a toalha de linho coberta de manchas amareladas. O cabelo está apanhado num penteado cheio de rococós que Gustava compunha religiosamente todas as manhãs, durante cerca de uma hora. Das orelhas caem-lhe uns pendentes de diamante, os únicos que se tinham salvado às penhoras. Gabava como sempre a beleza da filha com uma voz inchada de orgulho enquanto dava pequenas palmadinhas satisfeitas. A filha, sentada e de corpo estendido de forma lânguida sobre a mesa, segurava um pequeno espelho de prata, com que se mirava demoradamente, sempre sem dizer palavra. Na outra ponta da mesa, a quatro metros da esposa, está sentado o conde, de luneta posta, a ler nada. Fala animadamente com o filho, vestido com o velho uniforme de soldado do bisavô que tresandava a naftalina.<br />- Pois meu pai, garanto-lhe que combaterei com ousadia, destreza e valentia! O inimigo saberá do que é feito o sangue que nos corre nas veias! - diz numa voz teatral e aguda, como se estivesse a representar num palco. O pai ouve, assentindo orgulhoso com pequenos acenos de cabeça.<br />Gustava, de travessa na mão, vai servindo os pratos com pedacinhos de tomate.<br />- Este veado está uma delícia! Não está minha esposa?<br />- De facto querido... Gustava, deixa-me que te diga, cozinhas melhor a cada dia que passa. - Diz a condessa com um risinho histérico.<br />- Está extremamente suculento.<br />- De facto.<br />- Sublime!<br />Gustava dá uma fungadela mal disposta e fica de plantão ao lado da mesa.<br />Todas as noites o espectáculo era o mesmo. O filho dos condes de uniforme militar, pronto para partir para a guerra na manhã seguinte, o conde que acenava com a cabeça aguardando as glórias do filho, a condessa sempre com o mesmo vestido amarelo canário enaltecendo a entusiasticamente a beleza da filha, que por sua vez não largava o espelhinho de mão, nem enquanto comia.<br />A sala tinha quase todas as vidraças partidas, e os cortinados pendiam esfarrapados das janelas altas. Os castiçais de lustre jaziam por todo o lado, despidos de velas.<br />No meio da penumbra, Gustava começa a tremer de frio. Os pés descalços estão gelados. Olha para eles de forma abstracta, como se não fossem seus. Não sabe como irá sobreviver ao Inverno sem tamancas. "Maldição!".<br />Depois de servir a sobremesa, que a família devorou julgando ser profiteroles de chocolate, mas que não passava, obviamente, de pedaços de tomate, retira-se para um dos antigos currais, há muito abandonados. Mergulha na palha fofa e adormece num sono pesado. Tal como em todas as noites, sonha que anda pelos jardins vestida com um vestido linho branco e uma fita azul atada à cintura. Nos seus sonhos vivia na casa com os condes, num dos enormes quartos com cama de dossel. Quando os primeiros raios de sol a acordam, sente a febre a queimar-lhe a testa. Sacode a febre e os sonhos e vai para a horta, amanhando o sustendo daquela família de gente doida.<br />Na próxima ida do merceeiro a sineta é tocada suavemente. Está ansioso por ver a rapariga, e faz um esforço imenso para não saltar os portões e ir à procura dela.<br />Gustava chega passado um pouco, visivelmente doente. Tosse violentamente e arde em febre. Ele olha aflito para os pés descalços dela... havia lama seca à volta dos tornozelos e estavam cobertos de chagas purulentas.<br />- Estou doente. Maldição! Não olhes assim para mim. Fecha essa boca! Não preciso da pena de ninguém. - Rosna com os modos do costume. Ele estende-lhe um pacotinho de chocolates recheados de creme, arrependido por não ter trazido antes umas tamancas. Ela aceita, mas desta vez não o acusa de estar apaixonado por ela, nem tão pouco sorri. Leva-o em silêncio até à cozinha, e espera que ele vá embora, sempre sem uma palavra. Continua a tossir, envolta num xaile de lã à medida que o vê desaparecer na sua bicicleta.<br />O rapaz volta para a mercearia envolto num desespero que lhe fechava os pulmões e o fazia respirar estrangulado.<br />- Preciso de comprar umas tamancas para a Gustava. Anda descalça com este tempo... – Diz alto, apesar de estar a falar para si próprio<br />- Desgraçada da rapariga! – diz o merceeiro aflito.- Voltas lá amanhã e levas-lhe umas. Coitada, ao que ela chegou...<br />Amanheceu a chover torrencialmente. Um vento furioso varria tudo, tombando os vasos nas varandas e partindo os galhos das árvores. O rapaz tentava pedalar a bicicleta. Sentia uma urgência sufocante em entregar a Gustava as tamancas que levava penduradas às costas dentro de um velho saco de farinha, como se aquelas tamancas pudessem acabar com todas as desgraças do mundo, e, principalmente, como se pudessem fazer o tempo recuar.<br />Demora três vezes mais a chegar à casa do Conde do que o habitual. A chuva era tanta que ele não conseguia distinguir o palacete no alto do monte. Salta da bicicleta e atira-a para o chão. Corre para o portão e desata a tocar a sineta, mas o som é abafado pelo som ensurdecedor da tempestade. Tal como temia, ninguém aparece e começa então a tentar trepar o portão, mas a grades escorregadias e altas depressa o fazem desistir.<br />- Gustava! – Chama por ela, apesar de saber que ninguém o ouve. – Gustava!<br />Vê um vulto especado a olhar para ele de uma das janelas. Não consegue distinguir quem é, e começa a bracejar e a gritar, tentando chamar a atenção. O vulto faz um sinal de continência e desaparece. O rapaz continua agarrado ao portão, com as tamancas no ar. Pela porta da entrada vê sai o vulto, que não passava do filho do conde, vestido de soldado e de carabina ao ombro. Marchou, tal qual soldado no pelotão até ao rapaz.<br />- Que desejeis aqui? – Pergunta desconfiado. – Sois inimigo?<br />- Não, não… venho só trazer estes tamancos para a Gustava. – Diz levantando os tamancos à altura da cara.<br />- Lamento, mas a Gustava finou-se.<br />- Finou-se? Como assim, finou-se? – Grita o rapaz desesperado.<br />- Finou-se, então… morreu. Entende? Finou-se. Primeiro ficou doente, tossia muito, principalmente para cima da nossa comida… muito desagradável, muito desagradável… e hoje de manhã finou-se.<br />- E onde é que ela está? – Pergunta entre lágrimas, olhando para os tamancos, como se ainda fosse possível salvar a rapariga.<br />- O meu pai enterrou-a hoje de manhã no jardim das traseiras. Um bom homem o meu pai… mesmo com aquelas dores de costas, ainda conseguiu abrir um buraco para enterrar a moça. – Diz sem abandonar o tom monocórdico de um soldado a prestar contas ao general.<br />- Sem missa? Não houve missa, nada? Nem caixão? Nada? O que vai ser da sua pobre alma? – Grita-lhe enfurecido no auge do desespero.<br />-Alma? Os pobres não têm alma. Ainda mais ela, que nos tossia para cima da comida!<br />Voltou para a mercearia, mal pedalando, deixando que o vento o levasse. Foi com a cabeça livre de pensamentos e de coração vazio.<br />- Morreu. - Disse, deixando cair os tamancos no chão com um baque surdo.<br />- Quem morreu? - Perguntou aflito o merceeiro, enquanto entregava o troco à sobrinha do padre.<br />- Morreu... morreu a Gustava. - Disse em palavras despidas de entoação.<br />- Gustava? - Gritaram ambos.<br />- Quem morreu? - Perguntou uma velha que acabava de entrar, e que, tal como todos os velhos, tinha uma curiosidade acrescida a respeito de quem morria naquela terra.<br />- A Gustava.<br />-A filha mais velha do conde? - Perguntou espantada. - Pobre rapariga! Daquela família de loucos, foi a mais desgraçada.<br />E naquele momento a chuva parou. Um sol radioso abriu caminho por entre as vidraças da janela, iluminando com uma luz ténue o par de tamancas que jazia no chão.<br /><br /><span style="font-size:85%;"><span style="font-style: italic; color: rgb(102, 0, 0);">oil paiting by Alexej Harlamo</span></span></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-9673569215421071232009-12-02T08:44:00.001-08:002011-03-11T10:40:57.344-08:00O velho e o Chopin<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirNpT7U5wBlQa21sj7rnquBwOCzHjDDady3_NVW7x9KxmxTyFr-sMc2GGezfPQE28GRT192uAqeqFYF7mAiH2Ae_l9lAqe6ZSvZ5kptO7ogOVx8sJ6pLONbeaJ1T2XJNSqII01GEA0Q_s/s1600/old-man-rembrandt.jpg" onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5408559287799981490" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEirNpT7U5wBlQa21sj7rnquBwOCzHjDDady3_NVW7x9KxmxTyFr-sMc2GGezfPQE28GRT192uAqeqFYF7mAiH2Ae_l9lAqe6ZSvZ5kptO7ogOVx8sJ6pLONbeaJ1T2XJNSqII01GEA0Q_s/s400/old-man-rembrandt.jpg" style="cursor: pointer; display: block; height: 369px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 300px;" /></a><br />
<div style="text-align: justify;">- Esta vila é muito bonita, não é Chopin? – Perguntou enquanto esfregava as mãos uma na outra, tentando aquecer-se.<br />
Chopin olhou para ele e deitou-se no chão, com o estômago colado às costas, de tanta fome.<br />
- Dantes, quando eu trabalhava aos fins-de-semana, e chegava cansado, a minha mulher tinha sempre à minha espera uma ceia de faisão. Já te tinha dito isto Chopin? – Disse, em jeito de afirmação vaga, enquanto olhava em volta com os olhos perdidos. Tosse de forma dolorosa durante um minuto e depois pára, de peito cansado.<br />
O banco de jardim estava gelado e húmido. O velho sentia o frio a atravessar-lhe a pele, a carne e por fim a chegar aos ossos gastos, onde doía como se lhe estivessem a espetar facas. Afaga os joelhos cansados… o tecido das calças, surrado e roto, ameaçava desfazer-se a qualquer momento, desprendendo-se daquele corpo humano, como fuligem que se solta de uma chaminé.<br />
- Vem Chopin, vamos tentar comer qualquer coisa. – Tosse novamente, em agonia… leva um lenço à boca para se limpar, e fica por uns momentos a olhar para o sangue. Suspira e volta a enfiar o lenço sujo num bolso ainda mais sujo. Caminham lado a lado, lentamente, ao ritmo da velhice e da doença que lhe corroía a carne. Passam por uma árvore de Natal da altura de dois homens, coberta de laços vermelhos e bolas de vidro coloridas. Por baixo, repousava um presépio, de estatuetas toscas esculpidas em madeira e de cores sumidas pela idade.<br />
A padaria estava envolta numa nuvem de fumo que cheirava a bolos e a pão quente. Na porta estava pendurada uma coroa de azevinho, carregada de bagas vermelho vivo.<br />
- Bom dia minha menina! Não me arranja nada com que entreter os dentes? A mim e ao Chopin… que ainda está com mais fome que eu. – Os seus olhos de raios cinzentos salpicados de verde, sorriem de forma amena, reflectindo uma bondade latente. A rapariga por detrás do balcão sorri-lhe com franqueza.<br />
- Ontem apanhei uma descompostura do meu pai! Não lhe posso dar comida todos os dias, senhor. Olhe, posso dar-lhe um pãozinho de leite com queijo e uma chávena de café quente, pode ser? – Ouviu a própria voz sair da garganta, carregada de culpa e pena.<br />
- E para o Chopin? – Perguntou com desalento e rugas tristes.<br />
Chopin, olhava ora para um, ora para outro, impávido.<br />
- Não posso, só lhe posso dar a si. Ao seu cão não pode ser… tenho muita pena. – Disse, enquanto preparava o pão-de-leite e chávena de café a ferver.<br />
O velho dividiu a preciosa iguaria em três partes iguais. Deu duas ao cão e comeu a outra lentamente, enquanto beberricava o café.<br />
- Onde vai passar a Consoada, senhor? – Perguntou a menina com tristeza. – Não pode ficar na rua na noite de Natal. Alguém tem de fazer alguma coisa!<br />
- A cabana abandonada ao pé do rio até que nem é má, se não me cair em cima antes – riu-se o homem - Eu fico bem, não se preocupe. Acha que me arranja dois pãezinhos-de-leite para Consoada, menina?<br />
- Oh, claro que sim! Passe aqui amanhã ao fim da tarde, que eu dou-lhe os pães-de-leite e um frasco de compota. Tenho algumas moedas guardadas. Se eu pagar, o meu pai não pode refilar… - disse algo divertida com a travessura. – Eu até o convidava para passar a consoada lá em casa, mas vamos passar o Natal a casa de uns primos, numa vila aqui perto.<br />
O velhote anui com um gesto lento da cabeça e volta para o frio da rua, sempre com o cão ao lado, que o olhava com gratidão por os dois terços de pão-de-leite que tinha no estômago.<br />
- Não há cão como tu, Chopin! Nunca te esqueças disso. – Disse emocionado, por entre mais um ataque de tosse violenta.<br />
Parou em frente à ourivesaria a apreciar os relógios de cordões de ouro reluzente que se exibiam na vitrina. O ourives saiu à rua, e acendeu um cachimbo.<br />
- Bom dia meu caro! Ainda por cá? Está a gostar disto, <span style="background-color: white;">hein</span>? – Perguntou o homem de fato engomado e barriga de frade, com um sorriso prazenteiro.<br />
- Oh sim. São todos muito simpáticos por estes lados! – Respondeu o velho com gratidão.<br />
- E diga-me… onde é que vai passar a Consoada? É já amanhã. – Perguntou, engasgando-se numa nuvem de fumo.<br />
- Na cabana ao pé do rio.<br />
- Ah! Isso é que não pode ser! Não pode ficar na rua na noite de Natal! - indignou-se -Alguém tem de fazer alguma coisa! – Gritou o ourives enquanto consultava as horas no seu relógio preso por uma corrente de ouro. Franziu o sobrolho a fim de focar os ponteiros e voltou a guardar o relógio no bolsinho do colete. – Eu teria muito gosto em recebe-lo em minha casa, mas vem uma prima da minha mulher da capital, com o seu rancho de filhos, e íamos acabar por ficar todos muitos apertados. Olha, passe por cá amanhã à tardinha, antes de fecharmos. Digo à minha mulher para lhe trazer umas fatias de peru.<br />
- Muito obrigado senhor! Não como peru há muitos anos. Muitos anos! – O velho irradiava gratidão. – Ouviste Chopin? Peru! Peru, Chopin! Ouviste bem?<br />
Estava a atravessar a rua, quando o dono da garrafeira o chamou. - Hei! Chegue aqui! Como anda? Ainda por cá? – Perguntou o homem muito rapidamente num grito alegre.<br />
- Ainda. Devo de ir embora para a semana. – Disse o velho entre um ataque de tosse.<br />
- E onde é que vai passar o Natal, meu caro?<br />
- Na velha cabana ao pé do rio… consegui juntar um pouco de lenha seca, o suficiente para fazer uma pequena fogueira. A menina da padaria vai dar-me uns pãezinhos-de-leite e compota, e o ourives umas fatias de peru. Há muitos anos que não tenho um Natal tão farto! – disse o velhote quase rindo.<br />
- Oh, não pode ficar naquela barraca na noite de Natal! Alguém tem de fazer alguma coisa! Escute, passe por cá amanhã antes de fechar aqui a loja, que eu dou-lhe uma garrafa de tinto! Que lhe parece? – Disse o homem piscando o olho. – Eu até o convidava para passar o Natal connosco, mas vai lá estar o meu irmão… o médico, sabe, e ele tem a mania que é muito fino. Não se dá com toda a gente, sabe?<br />
- Não faz mal. Mas muito obrigado pelo vinho, é muita bondade da sua parte. Vinho para acompanhar o peru! Muito obrigado senhor… Deus lhe pague.<br />
O velhote afasta-se com lágrimas nos olhos, agradecido pela generosidade daqueles desconhecidos.<br />
- Sabes Chopin, antes, no Natal, a minha mulher fazia sempre um grande banquete. Punha a toalha vermelha na mesa, tirava a louça de porcelana dos armários, os copos de cristal, e fazia uma fogueira de labaredas altas. E depois trocávamos presentes embrulhados em papel de seda colorido. Já te tinha dito isto, Chopin?<br />
O Chopin lambeu-lhe a mão e o velho afagou-lhe a cabeça morna. – Não há cão como tu, Chopin. – disse com a voz embargada por entre mais um violento ataque de tosse. Olha para a mão que levou à boca, velha e ensanguentada e fecha os olhos num instante de reflexão.<br />
Custa-lhe cada vez mais andar… uma nuvem de bafo quente e fraca sai-lhe da boca. A neve caía como farinha peneirada, e cobria tudo como uma mantinha de croché fofo.<br />
A florista, de avental de couro, está atarefada a mudar vasos e jarras de flores de sítio em frente à loja.<br />
- Bom dia! Ainda por cá? Como vai o senhor? – Pergunta ela alegremente ao velho indigente.<br />
- Vai-se andando, muito devagarinho. – Diz ele bem disposto. Encosta-se a um poste e começa a tossir violentamente.<br />
- O senhor não me parece nada bem. Precisa de uma cama macia para dormir e um lume forte para o aquecer! – Recomendou preocupada a florista.<br />
- Pois… é como diz a senhora. Mas terei de me contentar com a cabana abandonada ao pé do rio. – Diz um velho com um sorriso terno, resignado e sem mágoa.<br />
- É lá que vai passar o Natal? – Pergunta, indignada. – Isso é que não pode ser! Não, não! Alguém tem de fazer alguma coisa! Ouça, passe por aqui amanhã, à horinha de fechar, que eu dou-lhe uma cestinha de frutas e um pacotinho de nozes.<br />
- Oh, muito obrigado! Como lhe agradeço! - Diz o velho emocionado.<br />
- Não agradeça… afinal de contas, é Natal. Não pode é dormir naquele casebre. Alguém tem de fazer alguma coisa. Eu até o chamava lá para passar o Natal connosco, mas o meu marido é muito avesso a ter desconhecidos em casa. Se não fosse isso…<br />
- Não tem importância. Eu fico bem… tenho lenha seca, pães-de-leite, compota, peru, vinho e frutas! Vai ser um regalo, este Natal. – Diz o velho rindo, visivelmente contente e agradecido.<br />
O velho volta para o casebre. Não tem porta nem janelas. Vêem-se as vigas de madeira, descarnadas dos tijolos de barro envelhecido. Olha para o monte de lenha a um canto e sente-se tentado a acende-la. – Não pode ser Chopin… é para a noite de Natal.<br />
O dia amanheceu cinzento e gelado. A neve, furiosa, voava vinda de todas direcções. O velho tremia a um canto, a invadido de frio e de febre. Não se consegue mexer com as dores que lhe massacram o corpo e com a tosse que lhe sacudia a alma em convulsões violentas. Balbucia palavras sem nexo e chama por Chopin. O cão, que ainda não tinha saído da sua beira, lambe-lhe as faces com ternura e deita-se em cima das pernas velhas e cansadas para o aquecer.<br />
O tempo lá fora, passa lento e o velho recompõe-se um pouco. – A fome aperta, não é Chopin? O que vale, é que hoje vamos ter um banquete digno de um rei! Essa é que é essa!<br />
Olha pela janela e calcula que a tarde já deva ir a meio. – Temos de nos apressar Chopin. – Diz o velho. O cão agita a cauda, contente por ver o dono de pé e pousa-lhe a pata numa perna. – Não há cão como tu Chopin, nunca te esqueças disso.<br />
Caminham, velho e cão lado a lado. Os ataques de tosse são cada vez mais violentos e longos. Começa a cair uma chuva miudinha e fria. – Depressa Chopin! Vamos acabar ensopados.<br />
Chega à vila silenciosa e escura. A árvore de Natal, de pé no meio da praça, olha para eles, triste. A chuva miudinha que entretanto se tinha tornado de uma tormenta de ventos fortes e gotas pesadas, tinha arrancado mais de metade das bolas e laços que enfeitavam a árvore, e estavam agora espalhados pelo chão, rodopiando ao sabor da tempestade.<br />
O velho acelera o passo e dirige-se à padaria. Fecha as mãos em concha e espreita pelas janelas escuras – Oh Chopin! Chegamos tarde Chopin! Oxalá a ourivesaria ainda esteja aberta…<br />
Caminham apressados. A ourivesaria apresentava-se também de janelas escuras e sem vida. O velhote, num acto desesperado, bate à porta com força… mas apenas lhe responde um silêncio frio. – Oh Chopin, nem pães-de-leite nem peru. A culpa é minha, que não consegui vir mais cedo.<br />
Chegaram à garrafeira. A porta fechada de madeira negra e ferrolhos pesados, condizia com o desalento das janelas de cortinas corridas. O velho engole em seco e deixa cair uma lágrima, apenas uma. A fome triturava-lhe o estômago, impiedosa e cruel. A chuva já lhe tinha trespassado o casacão pesado e a velha camisola esburacada de lã. Uma das solas desprende-se das botas e ele fica com um pé descalço no chão.<br />
Numa última chama de esperança, corre para a florista. Queda-se à entrada fechada. As mãos caem-lhe ao lado do corpo num desalento gritante. As lágrimas, agora soltas e abundantes, preenchem-lhe as rugas desenhadas pela idade e pelas amarguras da vida…<br />
- Vamos embora Chopin. Desculpa, oh, porque não vim mais cedo? Desculpa amigo, que noite bonita e farta poderíamos ter tido…<br />
Caminham de volta ao casebre, ensopados e a tremer, com uma fome que consumia cada célula dos seus corpos. O velho tossia sem parar, com uma violência que lhe despedaçava os pulmões. Quando se aproxima do casebre, verifica horrorizado e em pânico, que metade tinha ruído com a força da tormenta. Num dos cantos, o telhado permanecia intacto, mas no lado onde ele tinha guardado a lenha, jazia agora um monte de escombros ensopados. O velho, de lábios trementes e gelados, deixa-se cair de joelhos e chora. Chora a vida que teve, chora a vida que poderia ter tido, chora os seus sonhos e a suas esperanças. Chora tudo o que não chorou durante anos e anos de vida solitária e errante. Agacha-se a um canto e deixa-se ficar a tremer e a chorar. – Desculpa Chopin… merecias melhor que isto na Consoada. – O cão gane baixinho e deita-se em cima do velho, que o afaga com os dedos magros e débeis. E é então, que sob um trovão ensurdecedor, a terra tremeu e o resto da cabana ruiu.<br />
No dia de Natal, um sol frio mas radioso, penetra pelas janelas e acorda a vila adormecida. Alegres e agasalhados, de barrigas ainda cheias da noite anterior, dirigem-se à Igreja para assistir à missa de Natal. Conversam alegres. Falam na tempestade da noite passada, na alegria que era ter a família junta, nos presentes trocados…<br />
A florista pergunta se alguém sabia do velho indigente. Mas ninguém sabia, ninguém o tinha visto. Ele não tinha aparecido para ir buscar os pães-de-leite, o peru, o vinho e a fruta. Ouvem-se vozes desconsertadas, embaraçadas, culpadas.<br />
- Meu Deus, pobre desgraçado! Não me digam que passou a Consoada sozinho naquele casebre a cair aos bocados! – Gritou incrédulo e chocado, o dono da garrafeira. – Não chegou a vir buscar a garrafa de vinho… - murmurou para si próprio.<br />
Um pequeno grupo forma-se. Apressam-se à cabana junto ao rio. A menina da padaria ia em ultimo, a chorar baixinho, - ele não veio buscar os pães-de-leite e a compota… devia ter ido à procura dele… oh – Repetia para si própria. Quando lá chegam, só encontram um monte de tijolos velhos e vigas de madeira podres. Avista-se por baixo dos escombros, uma mão branca e sem vida. Velha, triste, coberta pelo desamparo da morte.<br />
As pessoas, de tez carregada de angustia, começam a remover o entulho apressadamente. – Rápido! Rápido! – grita o ourives.<br />
Conseguem chegar ao velho, que nunca ninguém chegou a saber o nome ou a conhecer a história. O cão, jazia em cima da sua barriga, como se tivesse feito um derradeiro esforço para aquecer o dono.<br />
- Pobre desgraçado! Ninguém merecer partir deste mundo assim… - diz o ourives tristemente, carregado de culpa, rodando o anel de rubi no indicador.<br />
- Merece um enterro condigno. – Levantam-se algumas vozes.<br />
- Alguém tem de fazer alguma coisa. – Dizem.<br />
- Sim… alguém tem de fazer alguma coisa.<br />
<br />
<span style="font-size: 85%;"><span style="color: #660000; font-style: italic;">oil painting por Rembrandt</span></span><br />
</div></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com29tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-37677263497227567042009-11-15T03:51:00.000-08:002011-03-11T11:18:01.522-08:00A Menina Preta e a Menina Branca<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicw7s1Vz8uFD0Fzlfx_qOfCCPwX_WbZxfk5TWdfTK3R-86dTqtqT5lwFYwF0R7J8O4knNcam__rgSaqQwI_0Qm9RC4eNpiAtmux9qcfA7zyjjmadG7IgUMZLS2Vm-RM4L-TfQ0sJdcdIo/s1600-h/White_And_Black_by_david_plus_1.jpg" onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5402471290209014818" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEicw7s1Vz8uFD0Fzlfx_qOfCCPwX_WbZxfk5TWdfTK3R-86dTqtqT5lwFYwF0R7J8O4knNcam__rgSaqQwI_0Qm9RC4eNpiAtmux9qcfA7zyjjmadG7IgUMZLS2Vm-RM4L-TfQ0sJdcdIo/s400/White_And_Black_by_david_plus_1.jpg" style="cursor: pointer; display: block; height: 270px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 300px;" /></a><br />
<div style="text-align: justify;">As gémeas nasceram no dia treze de um mês chuvoso.<br />
Aquele parto provocou na vila um reboliço sem precedentes. O choque da parteira foi igual ao choque de todas as outras pessoas. Uma das meninas era branca, como a cal viva... a outra negra como carvão. Não havia diferenças de tonalidade entre os cabelos, a pele, e nem mesmo nos olhos. Eram ambas como uma faixa compacta de uma só cor.<br />
Tinham uma beleza serena, que era ao mesmo tempo tão assustadora quanto hipnotizante.<br />
O pai pediu satisfações à mãe, e a mãe não lhas soube dar. O médico interveio, dizendo que aquilo era uma fenómeno que ultrapassava os limites da ciência. O pai aceitou a explicação, algo relutante, mas a verdade é que a sua relação com a esposa nunca mais foi a mesma.<br />
Perante a incapacidade dos pais em lhes dar um nome, ficaram apenas conhecidas por Menina Branca e Menina Preta, o que causou uma grande dor de cabeça na hora de registar as crianças.<br />
As meninas foram criadas num isolamento quase total, e das poucas vezes que as levavam à rua, não podiam deixar de ser alvo de olhares embasbacados. <span style="font-style: italic;">"Olha para elas... têm menina do olho? Não dá para perceber..."</span>, <span style="font-style: italic;">"É negra, mas não tem feições de africana... é como se tivesse sido tingida, apenas..."</span>. As meninas eram imperturbáveis a estes comentários sussurrados, e continuavam, calmas, sempre de mãos dadas. Eram absolutamente normais em tudo o resto, mas a mãe às vezes apanhava-as a olhar uma para a outra... silenciosas, como se estivessem a falar telepaticamente.<br />
Ambas insistiam em vestir-se de acordo com o tom de pele, o que fazia com que parecessem, uma, uma sombra e a outra uma aparição.<br />
No dia em que fizeram quatro anos, a mãe levou-as ao parque, para uma volta de carrossel. Foram as três comprar os bilhetes, ao mesmo tempo que se deixavam deslumbrar pelos cavalinhos de madeira colorida, que rodopiavam embalados ao som da música alegre. O senhor da bilheteira, carrancudo e cansado, preparava-se para aceitar as moedas e entregar em troca os papelinhos rectangulares e coloridos, quando, sem aviso, a Menina Preta disse: "O senhor salvou um menino de morrer afogado num poço... e nunca contou a ninguém.". A Menina Branca disse de seguida: "Mas deixou morrer a sua mãe à fome e ao frio."<br />
O homem ficou a olhar para ambas... petrificado. Ora olhava para a Menina Branca, ora olhava para a Menina Preta, confuso, quase em choque. A mãe olhava também atónita, ora para uma, ora para a outra, acompanhando em sintonia a cabeça do vendedor de bilhetes. "Vão, esta volta é por minha conta, vão, vão." - disse o homem confuso. "Comportem-se!" - rosnou-lhes a mãe exasperada, e mandou-as subir no carrossel, enquanto o vendedor de bilhetes continuava a olhar para elas de boca aberta.<br />
Do céu começou a cair uma chuvinha peneirada e morna, que as deixou cobertas de um pó brilhante e húmido. A mãe levou-as à pastelaria, para que bebessem um chá quente e comessem uns pasteis recheados de creme de baunilha.<br />
Espreitaram a doçaria exposta numa vitrina, e entraram as três a salivar. A senhora atrás do balcão tinha uma beleza altiva. Uns óculos minúsculos, equilibravam-se precários na ponta do seu nariz, "Boa tarde, o que desejam as meninas?" - Perguntou delicadamente enquanto acomodava uns pastéis de creme ao lado de uma torta de chocolate e tentava fingir que as aquelas duas crianças tinham uma aparência normal. "A senhora todas as noites deixa comida à porta de uma viúva pobre com cinco filhos... e nunca disse a ninguém." - disse-lhe a Menina Preta, calmamente, numa voz neutra. "Mas foi a senhora que empurrou o seu irmão das escadas quando era pequena. Ele partiu o pescoço e morreu."-disse-lhe a Menina Branca fixamente. A senhora olhou para elas, agora menos bonita e menos altiva, de olhos marejados de lágrimas e de lábios a trementes. "Levem os vossos pastéis... vão... sentem-se numa mesa, já lhes levo o chá... é por conta da casa, sentem-se, sentem-se." - disse numa voz convulsa, enquanto se perdia fixando o vazio.<br />
"O que é que se passa com vocês?? O que vos deu para estarem com essas mentiras? Em casa vamos ter uma conversinha minhas meninas!!" - A mãe estava furiosa, mas algo estupefacta por nem o senhor dos bilhetes ou a senhora da pastelaria se terem mostrado ofendidos... apenas em choque. "Mas mamã... o que eu disse é verdade." - diz a Menina Branca calmamente enquanto enfiava o narizito dentro do pastel. "O que eu disse também é verdade." - diz a Menina Preta, mergulhando também no folhado de creme. A mãe olhava para elas... não as sentido como carne da sua carne, mas apenas como dois seres que lhe caíram no regaço para expiar os seus pecados e testar os limites da sua bondade.<br />
Caminharam para o eléctrico apressadamente, tentando fugir ao frio da noite que começava a invadir as ruas. A Menina Preta ainda ia a lamber o açúcar em pó dos cantos da boca, quando sobem os degraus daquele gigante de madeira e metal, e dão de caras com o condutor. "Quantos bilhetes?" - pergunta o homem com um sorriso nervoso, ao olhar para aquelas duas meninas tão estranhas. "O senhor costuma deitar uma nota na caixa de correio da prostituta velha e louca que vive na rua ao pé do parque... sem a sua ajuda já teria morrido à fome." - disse a Menina Preta com um sopro. O homem fica petrificado, pois nunca tinha contado aquilo a ninguém, e tinha sempre muito cuidado para não ser visto. "Mas antes de casar, matou o filho que a sua mulher carregava no ventre com um ferro enferrujado. Ela nunca mais conseguiu engravidar novamente." - disse a Menina Branca, olhando-o quase com ternura.<br />
As pessoas sentadas nos bancos duros de eléctrico julgaram que o condutor ia ter uma ataque qualquer, pela forma como revirou os olhos e ficou coberto de um tom amarelo deslavado. "Sentem-se, esta pago eu... sentem-se"- gaguejou, coberto de suores frios. A irmãs sentaram-se, e a mãe, que já nem se atrevia a dizer uma palavra, pensou que Deus talvez estivesse demasiado duro com ela e que isto já eram provações a mais.<br />
A noticia espalhou-se pela vila, como fogo em mato seco. A Menina Preta conseguia ler nos olhos das pessoas acções de extrema bondade, enquanto que e a Menina Branca, qual anjo vingador, encontrava o que de mais odioso e condenável havia na alma.<br />
A meio da noite, formou-se um motim à porta da casa das meninas. A multidão não queria que andassem à solta dois seres com aqueles poderes. Ninguém sabia quem seria o próximo contemplado, e no auge da raiva, queriam acabar ali com assunto ali mesmo, à paulada.<br />
Cada pessoa sabe intrinsecamente se é maioritariamente boa ou má... visto que ninguém é completamente bom, ou completamente mau, mas não queriam ninguém a apontar-lhes as faltas. Isso estava guardado para o dia do julgamento final.<br />
Os pais, desesperados perante aquele tumulto que lhe ameaçava entrar pela casa a dentro e levar as filhas, que por mais estranhas que fossem, eram suas filhas, faziam os possíveis para acalmar aquela massa de gente em fúria.<br />
As meninas assistiam das janelas envidraças à multidão a espumar raiva, que agitava paus no ar e gritos de ódio. Tremeram e abraçaram-se... enroladas uma na outra, pareciam uma espiral preta e branca de tecido pulsante. Olharam-se nos olhos, toldados pelo medo e encostaram a testa uma na outra. E foi então que do céu começaram a cair gotas brancas e pretas de uma substancia macia, como tinta. As gotas caíam e misturavam-se no chão, deixando rios cinzentos nas pedras da calçada.<br />
A multidão calou-se, contemplando o espectáculo, que pela sua grandiosidade só poderia ser obra de Deus ou do Diabo.<br />
Resignaram-se ali mesmo. Resignaram-se às meninas e ao julgamento publico. Por mais bondade que tivessem dentro de si, a vergonha das suas negritudes suplantava tudo o resto. Uma boa acção de um homem, era sempre ofuscada por uma sua má acção.<br />
A vida continuou como dantes... como se aquela noite de raiva nunca tivesse acontecido, mas já ninguém fazia uma maldade ou actos mais impuros. As pessoas policiavam-se a si próprias... até nos pensamentos.<br />
A partir dali, todos se afastavam à passagem das duas meninas, e estas nunca mais foram importunadas... nem nunca mais precisaram de pagar bilhete para o carrossel, bilhete de eléctrico ou pasteis de creme... nunca mais precisaram de pagar nada.<br />
</div></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com46tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-47589426341537081902009-10-01T03:44:00.000-07:002010-04-30T07:25:44.152-07:00O magarefe<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjhdfeNdf-mwoSea2Z5TFqz0tsu140rAnUzFZ-X5QJHqKed9KwI8hVRmrzzonL1Bdj9EV4tq2BAbHBW5HvlnBgclCYA0E0ouj_uVu7dP2-4sR5brJU4NU55arc6-p_yAo3Rup0ZA6ELwuA/s1600-h/Landscape-With-Snow.jpg" onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5387282380255089602" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjhdfeNdf-mwoSea2Z5TFqz0tsu140rAnUzFZ-X5QJHqKed9KwI8hVRmrzzonL1Bdj9EV4tq2BAbHBW5HvlnBgclCYA0E0ouj_uVu7dP2-4sR5brJU4NU55arc6-p_yAo3Rup0ZA6ELwuA/s400/Landscape-With-Snow.jpg" style="cursor: pointer; display: block; height: 267px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 400px;" /></a> <br />
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</style>Três crianças jogam ao berlinde na rua poeirenta. Riem alto enquanto dão saltinhos agachados. Ouvem passos pesados e viram-se, ainda com um resto de gargalhada na ponta da língua. Ao verem o homem calam-se, e divertidas fogem para trás de um enorme carvalho à beira da estrada. <br />
Esperam de respiração suspensa e entre risinhos nervosos que ele passe. <br />
O homem já está habituado a esta reacção. Não o incomoda, na medida em que muita pouca coisa o incomodava e ainda menos coisas lhe mereciam uma segunda reflexão. <br />
Era mais alto e entroncado que qualquer outro homem da aldeia. Nunca ninguém lhe tinha ouvido a voz... talvez apenas um grunhido numa ou outra rara ocasião. <br />
Volta a casa depois de mais um dia de trabalho no matadouro. Tem as calças salpicadas com o sangue dos borregos que tinha desmanchado naquela tarde... nas mãos traz um saco de serapilheira com aparas de borrego que o patrão lhe dispensou. O saco está húmido e pinga, deixando pequenos pontinhos vermelho vivo decorando as pedras e fazendo-as parecer joaninhas gigantes secas ao sol. Talvez a mulher pudesse fazer um estufado para o jantar. As botas de cabedal mal curtido arranham o chão áspero e o peso de um dia de trabalho verga-lhe as costas. <br />
Passa por três raparigas que regam uma sementeira... elas calam-se à sua passagem, num misto de embaraço e risos contidos. "Olha, é o magarefe!" - diz a mais nova, sufocando uma gargalhada com a mão. Acotovelam-se umas às outras na tontice própria da juventude. <br />
- Magarefe! Doem-me tanto as costas... podes ajudar-nos a trazer baldes de água? - Grita-lhe uma delas, divertida. <br />
Ele pára e vai ter com elas. Nunca dizia "não" a um pedido de ajuda... e naquela aldeia os pedidos de ajuda que lhe faziam era uma constante. Pega no pesado balde feito de ripas de madeira inchada e até ao pôr-do-sol faz incontáveis viagens entre a horta e o poço. <br />
Quando pára por falta de luz, repara que as meninas há muito que tinham ido embora. Não pensa sequer nisso. <br />
Antes de chegar a casa, ainda ajuda uma vizinha a guardar as galinhas no galinheiro. Toda a aldeia vivia dos favores daquele homem. Chegavam a acorda-lo a meio da noite para ir procurar cavalos fugidos e a maioria das vezes nem se lembravam de lhe agradecer a ajuda. No entanto ele era um homem genuinamente bom e ingénuo. Normalmente apelidavam-no de otário, pois é certo que a natureza humana tem destas crueldades injustificadas. <br />
Ele continua, exausto. O saco de serapilheira já não pinga. Como qualquer homem que aspira pelo final do dia para poder descansar, ver os filhos, ou fumar um mísero cigarro enrolado... também ele percorria todos os minutos do dia com um único propósito, voltar para a mulher. Ela não o sabia, mas não abandonava o pensamento do marido por um segundo sequer. <br />
A vila era tão no fim do mundo, que a expressão “fim do mundo” ganhava uma nova força quando se falava daquele lugar. Chegava a suceder o fenómeno de chover em toda a província, menos ali. No entanto ninguém estranhava o facto e compreendiam que Deus se tenha esquecido daquele lugar. <br />
Entra em casa, e o cheiro a sopa de feijão leva-o à cozinha. A mulher cirandava numa azáfama de um lado para o outro cantarolando. Uma das pontas da bainha da saia estava presa na cintura, deixando ver as coxas morenas e cheias. O cabelo mal apanhado em desalinho, as faces rosadas e a respiração ofegante. <br />
Olha-a com devoção... ela vira-se e ele baixa o olhar, tossicando... disfarçando a fraqueza. <br />
“Chegaste!”, cantarola ela alegremente, “Tens fome?”, e antes que ele respondesse, encheu um prato de sopa e colocou-o na mesa. <br />
Os longos dez anos de vida em comum com aquele homem que o pai lhe tinha arranjado, ensinaram-lhe que não valia a pena fazer perguntas. Ele raramente respondia e quase nunca proferia palavra. Estar casada com ele era o mesmo que estar casada com um muro de tijolos e ela já há muito que aprendera que a única forma de combater a solidão era ter amantes esporádicos que a faziam guinchar de prazer no meio das cearas de trigo. <br />
Olha para ele de soslaio... é tão grande que parece entalado naquela cozinha minúscula. A colher desaparece algures naquelas mãos imensas e ela tem um arrepio nervoso. <br />
Toda a aldeia sabia dos acessos de luxúria daquela mulher. A população assistia divertida aquela novela, rindo-se perante a ingenuidade patética daquele marido bruto e cego de amor. Chamavam-lhe “o magarefe chifrudo”, e verdade seja dita, tirando as tropelias deste caricato casal e as missas ao Domingo de manhã, pouco mais havia para fazer naquele lugar que nem o diabo se dignava a visitar. Talvez por não falar, quase não o tomavam por humano, mas sim como um monte de membros que se movimentavam como por magia, e que serviam apenas para os ajudar a levantar cercas ou a fazer telhados. <br />
Ultimamente a mulher do magarefe andava a rebolar-se pelos campos com um dos trabalhadores dos caminhos-de-ferro. Enquanto houvessem carris para assentar, ela estaria servida, e por isso, descansada. <br />
Acaso do destino (e como a vida é feita não do esperado, mas sim dos desvios do dia a dia), numa tarde quente de sexta-feira, ele é dispensado do matadouro antes da hora habitual. A sua perícia em desmanchar porcos tinha-o levado a acabar o serviço uma hora antes do tempo... o que acabaria por trazer à sua vida um novo rumo e bastantes dissabores para o resto da aldeia, como mais tarde se veio a verificar. <br />
Vinha extremamente bem-disposto, o que no caso dele, não se traduzia em qualquer aspecto exterior visível a olho nu. O calor abrasador fazia-o transpirar em bica. Pensou que talvez fosse boa ideia dar um mergulho no rio antes de ir para casa... chegaria fresco e rejuvenescido e talvez até a levasse a mulher até à taberna da praça depois do jantar... e depois quem sabe, talvez ela o deixasse fundir na sua pele quente e morena. <br />
Embalado pela boa disposição, começa a assobiar, o que sucedeu pela primeira e ultima vez na sua vida. <br />
Soltava uma melodia improvisada e alegre por entre os lábios, enquanto as suas mãos fortes mergulhavam na água fresca que chilreava como pardais. Preparava-se para despir a camisa quando começou a ouvir um reboliço contido por entre o canavial. Risos, gemidos e palavras sussurradas e urgentes. Avança silencioso, atraído por aqueles sons que lhe eram estranhamente familiares. Os ossos arregalam-se quando se aproxima o suficiente para reconhecer as costas nuas da mulher, que cavalgava em cima de um rapaz com metade da sua idade. Arfava como uma gata com cio e parecia que toda a fornicação deste mundo seria insuficiente para apagar aquele fogo. <br />
Ele afasta-se, atarantado e vagueia pelos campos sem tino... sem consciência. O choque da descoberta não o deixa reagir, e quando dá por si, está na praça da vila, mesmo em frente à taberna. Ouve muitas vozes de entoações diferentes e muitos risos. Resolve entrar e pedir um whisky para beber de um trago só. Talvez lhe atenuasse um pouco o choque. <br />
As frases voam para rua, abafadas. "Não teve sorte com a mulher, de facto! Puta mais puta não há! As putas ao menos ainda cobram pelos serviços, mas esta é que pagaria pelos serviços de um macho se assim tivesse de ser!" - risos e mais risos - "Coitado do chifrudo do magarefe!" - uma gargalhada geral levanta-se ensurdecedora. <br />
Ele fica lívido ao aperceber-se de que todos sabiam a vida que a mulher levava. <br />
Alguém se vira para trás, ainda a meio de uma gargalhada e vê aquele gigante ali parado na ombreira da porta, lívido e inexpressivo, se é que uma combinação dessas fosse sequer possível. <br />
Aos poucos calam-se e chegam umas cadeiras às outras, como se isso de alguma forma os protegesse. As mãos pendiam ao lado das ancas. Por algum motivo todos olham para as suas mãos. São tão grandes e fortes que podiam separar a cabeça do tronco de qualquer homem que ali se encontrava... corriam aliás rumores de que muita vezes o magarefe matava vacas não com um punhal, mas com uma torcidela de pescoço. <br />
Ele não diz nada, apenas os olha fixamente. Naquele olhar lêem tristeza, desapontamento e sobretudo a dor da traição... não só da mulher, mas de toda a vila. <br />
Ele volta para trás e corre para a igreja. Agora já não chora lágrimas de tristeza, mas sim de raiva. <br />
Corre tudo à procura do padre. Encontra-o na sacristia e implora-lhe que o confesse. <br />
Pela primeira vez fala... fala muito. Pronuncia palavras que nunca tinha usado na vida. <br />
- "Tem de perdoar... sabe, a sua mulher tem uma natureza muito errante. Ninguém lhe contou porque tinham medo que sofresse". - O padre fala calmamente, contendo o riso miudinho de uma criança a fazer uma travessura. <br />
O magarefe, atónito, lança-lhe a pergunta com o olhar. <br />
- "Sim... eu também sabia." - Diz o padre agora pouco à vontade. - "Perdoe-lhes... perdoe todos. Jesus assim o faria." <br />
- "Perdoar?" - Diz o magarefe com uma voz inexpressiva. <br />
- "Sim... pague a todos uma rodada na taberna, ou convide-os para uma matança de porco. Perdoe meu filho." <br />
O gigante traído balbucia um "sim" e sai da Igreja aos ziguezagues. <br />
No dia seguinte não se fala de outra coisa da vila, e ninguém escondia um certo receio do magarefe, principalmente depois da mulher do padeiro ter dito que tinha sonhado que ele lhe tinha entrado em casa e a estrangulado durante o sono, cego pela vingança. <br />
Na taberna todos falam em surdina, comentando o sucedido quando ouvem uma voz estridente vinda da ombreira da porta. <br />
- "Boas!" - diz o magarefe com um sorriso estampado nos lábios. <br />
Ainda estavam todos em estado de choque com o "Boas", visto que nunca ninguém lhe tinha ouvido a voz, quando ele remata - "Amanhã é domingo. Estão todos convidados para um churrasco em minha casa!". <br />
Olham uns para os outros, perplexos, sem saber o que achar do convite, sem saber o que achar daquela mudança tão radical de comportamento, sem saber o que achar de nada. <br />
Na noite de Sábado, a vila inteira sonhou que o magarefe lhes entrava pela casa a dentro e os estrangulava durante o sono. </div><br />
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhW_OgG7eqTRWLstljyCIv6cFmWJJXwUWT5WXzbY1EzzD3UWbf-UFVorJh1yw_nZevh98hVbvmssd8NTbQorqCyhEH6Iy0fgImRm72MDTRpz48_tEPamadGIWb0Y4I9W0Nj_s8to87B0Qo/s1600-h/Peter+Severin+Kroyer.jpg" onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5371770842670958978" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhW_OgG7eqTRWLstljyCIv6cFmWJJXwUWT5WXzbY1EzzD3UWbf-UFVorJh1yw_nZevh98hVbvmssd8NTbQorqCyhEH6Iy0fgImRm72MDTRpz48_tEPamadGIWb0Y4I9W0Nj_s8to87B0Qo/s400/Peter+Severin+Kroyer.jpg" style="cursor: pointer; display: block; height: 326px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 400px;" /></a> <br />
<div style="text-align: justify;">No Domingo, depois da missa, seguiram em fila, ansiosos e ensopados em nervoso miudinho, para casa do cornudo. Alguns iam em coches, outros a cavalo e os mais humildes caminhavam a pé. <br />
O magarefe tinha improvisado várias mesas vestidas de toalhas brancas no jardim. <br />
Cumprimentava todos, sorridente, falando pelos cotovelos. Grelhava a carne ele mesmo, e depois distribuía-a pelas mesas. Não deixava um copo ficar sem vinho, ou um prato sem pão. A carne estava tenra e suculenta, e em passado um bocado, já todos riam, aquecidos pelo deus Baco e maravilhados com o sabor da carne. <br />
- "A sua esposa?" - pergunta a mulher do sapateiro. - "Ah, anda por aí" - disse ele abrindo os braços em jeito de vénia, abrangendo todo o jardim - "Ela já vem... comam, comam" - dizia rindo. <br />
A filha do calceteiro, uma menina de cinco anos, na inquietude própria da idade, começa numa correria desenfreada pelo jardim, pelo quintal... entra e sai da casa, dos currais, do celeiro, até que entra na casa de desmanche dos porcos e carneiros. O local é gelado e escuro e ela franze as sobrancelhas a fim de adaptar os olhos à escuridão. E é então, que o seu coraçãozinho de cinco anos quase pára com o choque. Em dois ganchos da parede, estão a cabeça da mulher do magarefe e de um jovem rapaz. A mesa do desmanche, em pedra, tem esquecidas algumas tiras de carne, atiradas ao acaso e que pingavam sangue para o chão. <br />
Ela corre dali para fora, espavorida, aos guinchos e soluços. "Cabeças! Estão ali cabeças! Mamã!". A mãe volta-se para ela com um naco de carne suculento pendurado num dos cantos da boca. "O que foi meu amor?". O magarefe tem um sorriso gelado desenhado nos lábios. Toda a gente corre a verificar a veracidade da história. <br />
Entram aos encontrões naquele pequeno matadouro e dão de caras com o horror. Começam a vomitar pelos cantos, enojados, agarrados ao estômago. Percebem então, quase todos em simultâneo, que o magarefe tinha morto a mulher e o amante. A seguir esventrou-os, sangrou-os, cortou-os em postas e ofereceu-os em forma de banquete à vila inteira. A vingança é um prato que se serve frio, mas ele serviu-o grelhado e acompanhado com puré de batata e salada de tomate. <br />
O horror fez toda a gente fugir em debandada, como um bando de pássaros assustados. <br />
O medo apoderou-se da aldeia, e ninguém chamou as autoridades, pois demoravam mais um mês a vir da capital, e quando lá chegassem, já o magarefe os teria transformado a todos em febras. <br />
A partir daquele dia já ninguém pedia favores ao homem... mas sim o inverso. E foi assim, que em menos de um mês, pintaram a casa ao magarefe, trocaram-lhes as janelas, refizeram todo o jardim, e as senhoras revezavam-se para lhe levar o jantar todas as noites. Nunca mais se comentou o sucedido... nem quando se mudou para a vila o novo farmacêutico viúvo com a sua filha solteirona, impetuosa e refilona. <br />
Quando o farmacêutico conheceu o magarefe, simpatizou imediatamente com ele, pois sabia-o também viúvo, e é muito triste um homem viver sem uma mulher. Após breves conversas, ambos acordaram que se casasse com a moça, que já tinha vinte e oito anos e por isso já algo acabada e em dificuldades em encontrar marido. <br />
O casamento durou dois anos sem percalços, até ao dia em que a mulher se apaixonou perdidamente pelo cabreiro. A vila assistia ao romance com o coração nas mãos... sem terem coragem para avisar a rapariga e muito menos o magarefe. <br />
Infelizmente para todos, depois do desaire que foi o seu primeiro casamento, o homem ficou com os sentidos muito mais apurados... esperteza de raposa, olfacto de javali e olhos de falcão. <br />
Numa noite de Sábado, estava a taberna cheia, quando o magarefe apareceu à soleira da porta com um sorriso estampado nos lábios. <br />
- "Boas! Amanhã é domingo. Estão todos convidados para um churrasco em minha casa!". <br />
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</div><br />
<span style="color: #990000; font-size: 85%;"><span style="font-style: italic;">oil painting 1 Vincent Van Gogh <br />
</span><span style="font-style: italic;">oil painting 2 Peter Severin Kroyer</span></span> <br />
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Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com13tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-90717472302259673692009-08-17T07:25:00.000-07:002009-11-30T10:07:02.810-08:00A menina que tinha medo de morrer<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibcgYLxRQGMDHqWKjJqEEsBRSuHjcSaNiH8aQTiMQXxedvIcmPiH-q12Ei2-_EXcc4UlEe1eb1p6E03JRAlghJSFIz8V_NiTsaq3gdSP59idZSRzUpLi7ZI1JZ_xowjX3dxIUFM4wXcOA/s1600-h/beauty+in+dead.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 267px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEibcgYLxRQGMDHqWKjJqEEsBRSuHjcSaNiH8aQTiMQXxedvIcmPiH-q12Ei2-_EXcc4UlEe1eb1p6E03JRAlghJSFIz8V_NiTsaq3gdSP59idZSRzUpLi7ZI1JZ_xowjX3dxIUFM4wXcOA/s400/beauty+in+dead.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5357308023017676914" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">Leva a ultima garfada de bolo de mel à boca com as mãos trementes pela antecipação da angustia que a espera. A sobremesa era a ante câmara dos horrores que marcava a sua iminente ida para a cama.<br />Depois do jantar, o pai retirava-se para o salão onde fumava charutos e bebia brandy à lareira. A mãe sentava-se ao lado dele bordando paninhos e mais paninhos de linho, destinados ao esquecimento no fundo de baús que se iam empilhando no sótão.<br />A governanta escoltava-a ao quarto. Caminhava à sua frente rasgando as trevas com uma pequena lamparina de azeite.<br />Amortalhada nos lençóis rendados, ficava inerte, noites a fio, olhando as sombras das árvores que a lua projectava na janela.<br />Há três anos que não dormia. Lembrava-se da noite em que tinha deixado de dormir. Costumava perder-se em devaneios antes de adormecer e naquela noite em particular, lembrou-se do enterro da bisavó, e como lhe obrigaram a depositar um derradeiro beijo na testa da defunta. Lembrava-se ainda da textura enrugada da sua testa, da pele gélida... do cheiro a corpo morto.<br />Por um momento, aquela recordação permaneceu-lhe na boca, ganhando um travo amargo... e de um momento para outro, algo dentro de si enfrentou a certeza da efemeridade da vida, a certeza de que iria um dia iria ser engolida pelo solo húmido e frio e servir de alimento aos bichos que habitavam no solo. E foi assim, que com apenas treze anos, na escuridão do quarto, tomou consciência da sua própria mortalidade, o nada, o vazio, o fim. O estômago contorceu-se, as suas entranhas reviraram-se enlaçaram-se em nós impossíveis de desfazer... fisicamente, sentia que todos os seus órgãos se embrulhavam numa espiral de agonia. Começou com suores frios que lhe empapavam a camisa de dormir de algodão e toda ela tremia de medo. Aquele pensamento forrado de agulhas ácidas penetrou em todo o seu corpo, em cada célula, em cada centímetro de pele. Envolveu-lhe cada fio de cabelo, entrou-lhe pela boca forrando a língua de uma camada pastosa e acre.<br />Na manhã seguinte encontraram-na a arder em febre, delirando, balbuciando palavras sem nexo... e assim passou seis meses.<br />O médico não conseguiu encontrar razão física para o estado da menina, declarando por fim que ela deveria ter demónios no corpo e deveria ser exorcizada. Na manhã em que é esperada a vinda do padre, ela melhora inesperadamente. Levanta-se da cama, e pergunta se há pão-de-ló. Os pais perplexos, tomam o acontecimento como um milagre, e como agradecimento, doam à paróquia cinco hectares de terras férteis.<br />Numa análise mais desatenta, ela parecia curada... mas ninguém reparou que não havia vida nos seus olhos e que parte dela está já morta.<br />Não volta a dormir. Passa as noites a pensar na morte... esses pensamentos, apesar de estarem já sempre presentes durante o dia, ganhavam uma nova vida na escuridão do quarto. Ela pressentia a chegada daquela sensação de mortalidade que lhe revirava as entranhas e que quase lhe parava o coração com o choque. O baque que esses pensamentos lhe provocavam era sempre violento e intenso como no primeiro dia. Às vezes tentava afasta-los, mas eles voltavam com ainda mais força e ela acabou por desistir, entregando-se... completa, nas trevas.<br />E desta forma, ela vivia o dia, temendo o cair da noite.<br />As noites de lua cheia eram gentis para ela... a luz tépida do luar que penetrava os cortinados de organza brancos, quase lhe dava a sensação de que era dia, e nessas noites ela chegava a dormitar um pouco, entre pestanejos leves.<br />Nas tardes de verão, o cheiro a rosas inundava todo jardim, em vagas de cheiro quase palpáveis. Ela adorava dar pequenos passeios, envolta naquele perfume das rosas e por entre a sombra fresca dos ciprestes centenários. Numa dessas tardes, enquanto observava o seu próprio reflexo nas margens do lago, é atingida pelo baque de pensamentos funestos que só tinha à noite. Fica perplexa, ofegando violentamente, de corpo hirto e braços caídos. Os punhos cerrados traduziam a sua raiva.<br />Como podia isto estar a acontecer durante o dia? Era à noite! Sempre à noite! Como é que aquela sensação horrenda tinha encontrado o caminho por entre a luz do sol e chegado até ela? Ela não ia aguentar... como podia? Dia e noite, até ao dia em que morresse... a certeza da morte iria persegui-la, para onde quer que fosse. Sempre.<br />Não consegue jantar... tem o estômago em agonia e transpira entre tremores violentos. Os pais mandam-na para o quarto, julgando que ela devia ter apanhado uma gripe, ou uma outra qualquer febre de Verão. Caminha com passos lentos e hesitantes... a maçaneta de porcelana gelada, dá-lhe uma sensação agradável quando a agarra e a gira.<br />A escuridão do quarto engole-a, implacável.<br />Deita-se na cama, como que se deitando num caixão... de braços cruzados no peito. O luar entra doce pela janela... mas isso já de nada lhe serve. O medo tinha conseguido abrir caminho por entre a luz.<br />A claridade morna da manhã encontra-a morta, de rosto contorcido, petrificado pela angustia.<br />Tinha morrido de medo, a menina que tinha medo de morrer.<br /></div><span style="color: rgb(204, 0, 0);font-size:85%;" ><br /><span style="font-style: italic;font-size:78%;" >pic in deviantART</span></span>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com21tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-14037366768800690322009-07-14T16:11:00.000-07:002009-10-12T15:29:08.632-07:00A morte estúpida do Sr. Jarvas<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRzMZQUd8b9hzQJTVz-NOLxSsHPaTi8gg2KUHNdTkQwE_93V93gmFyEq7NJkNZbg74HtUE7ggJz8X6ksMV4fJ2vqmVh_U-OjQMa5PvJQi71YkSEfBf6sU4Bq-9qeOKDPjGkQPWENkS5Io/s1600-h/vintage___couple_by_Meltys.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 254px; height: 400px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiRzMZQUd8b9hzQJTVz-NOLxSsHPaTi8gg2KUHNdTkQwE_93V93gmFyEq7NJkNZbg74HtUE7ggJz8X6ksMV4fJ2vqmVh_U-OjQMa5PvJQi71YkSEfBf6sU4Bq-9qeOKDPjGkQPWENkS5Io/s400/vintage___couple_by_Meltys.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5390264865703019922" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">O Sr. Jarvas teve uma morte estúpida.<br />O enterro, em vez de ter sido uma manifestação de pesar, tinha-se tornado num boca a boca de comentários sorrateiros e irónicos a respeito de quão estúpida tinha sido a morte do homem.<br />O Sr. Jarvas tinha morrido no Domingo de manhã ao tentar queimar um vespeiro que tinha encontrado ao pé da estufa do jardim. A morte tinha ocorrido, por volta do meio dia, quando, ignorando os conselhos de Dona Antonieta, para que estivesse quieto e que esperasse que os empregados voltassem do casamento da filha da cozinheira, tinha resolvido, ele mesmo tratar do assunto. “Pára Jarvas! Os empregados depois tratam disso! Está muito alto... não chegas lá!”. Dona Antonieta exasperava-se e implorava que ele descesse do escadote. “Sou homem muito homem, mulher! Não me achas capaz de tão simples tarefa?”, perguntou-lhe ele quase com o orgulho ferido. “Não sejas tolo, sai daí! Ainda te picam!”, gritava a mulher de mãos unidas em punho, apertando o estômago, com o corpo rígido, antecipando a angústia de ver o vespeiro ganhar vida. “Homem que é homem não tem medo de umas picadazinhas, e eu sou muito homem!”. “Eu adoro-te Jarvas... sabes que te adoro, mas tu dás comigo em doida! Em doida!”<br />Ordena então à mulher que se despache a ir buscar álcool e fósforos e que pare com a rezinguice, porque eram quase horas de almoço e ele estava a começar a ter fome... e homem que é homem não pode estar de barriga vazia.<br />E é então que se dá a cadeia de acontecimentos estúpidos e fatídicos, que transformam o Sr. Jarvas num defunto.<br />No topo das escadas, de frente a frente com o vespeiro adormecido, uma libelinha passa-lhe rente ao nariz o que o faz dar um sonoro e potente espirro. Um espirro tão forte que quase o faz perder o equilíbrio. Depois de alguns malabarismos, lá consegue manter-se no topo da escada, mas as vespas estavam agora acordadas. Começam a sair, atarantadas, procurando intrusos. O Sr. Jarvas leva com cinco picadas na testa, enquanto esbraceja apenas com um braço, como um pássaro com uma asa partida, mas que mesmo assim tenta voar. Com o choque do inesperado e a testa em fogo, desequilibra-se e cai de cabeça dentro de um balde meio de água que estava esquecido no chão. Tenta levantar-se, mas uma das vigas de madeira, que estavam apoiadas na parede, destinadas a fazer uma nova vedação para os cavalos, lhe cai em cima e o faz perder os sentidos.<br />E é assim que D. Antonieta encontra o marido um minuto depois... de buços, com a cabeça enfiada dentro de um balde e afogado num palmo e meio de água.<br />Findo o serviço fúnebre, (em que D. Antonieta jura ter ouvido rizadinhas contidas), volta para casa, numa carruagem abafada, abanando o leque vigorosamente, contendo a raiva e amaldiçoando o teimoso do marido, cuja azelhice e teimosia a tinham atirado para a condição de viúva.<br />O calor apertava mais do que nunca, como se o sol tivesse decidido, sem dó nem piedade, incinerar a Terra naquela tarde. Entra em casa, desgostosa, furiosa, chispando raiva, e começa a arremessar<span style="font-style: italic;"> bibelots</span> de porcelana e jarrinhas de cristal para tudo quanto era lado. Os empregados fogem espavoridos, abrigando-se da patroa nos lugares mais recondidos da casa.<br />Sobe para o quarto em passadas largas e iradas, fazendo a casa estremecer com os tacões do sapatos. Quando abre a porta, é atingida por um baque gelado que lhe tira a respiração. O quarto parece coberto de gelo... ela consegue mesmo ver uma névoa gelada a pairar, e vê sair da sua boca um bafo quente.<br />Fica atónita, parada no meio do quarto, sem perceber o fenómeno. Vai até à janela para ver se as estações se tinham trocado repentinamente, tendo o Verão dado lugar ao Inverno. Mas não... lá fora o calor continua impiedoso.<br />É então que se volta e dá de caras com o marido, sentado num pequeno sofá, com o cabelo a pingar água e com cinco hematomas inchados de picadas de vespa na testa. Leva a mão à boca e solta um grito rouco, “Jarvas!”. Mas o marido não lhe responde... afinal, havia mortos que falavam, mas este não era o caso. Lança-lhe apenas um olhar pesaroso de mágoa e vergonha e baixa os olhos.<br />O choque inicial dá lugar à raiva. “Jarvas!! Seu estúpido! Que estás aqui a fazer? Estás morto! Não deverias estar a voar em direcção ao Céu, ou ao Inferno?... Vai-te embora, deixa-me! Não podias ter deixado o vespeiro em paz? Tinhas que te armar em valente, não era? Sempre foste um gabarola patético!”. O Sr. Jarvas mantinha-se em silencio, mas mostrava agora um ar ofendido com as palavras da mulher. E é então que dentro da sua cabeça, a Dona Antonieta ouve a voz do marido, “Não me trates assim... olha em que estado eu estou.”. Dona Antonieta engole em seco... “Em que estado tu estás? Estás morto! É esse o estado em que estás!”, continuava ela, e cada palavra hostil que lhe saia da boca, alimentava mais palavras hostis, numa espiral imparável de insultos e impropérios.<br />O marido fica cabisbaixo e triste, ouvindo tudo aquilo... até que não aguenta mais e começa a chorar... “Pronto, pronto... desculpa. Não fiques assim. Estou muito aborrecida, sabes...?”. Dona Antonieta quebra perante a visão do marido, de cabelo molhado, coroado por picadas de vespa e de olhar triste. O quarto gélido obriga-a a vestir um vestido de lã e a colocar uma mantinha nos ombros. “Trouxeste contigo os ventos da Sibéria? Credo homem! Mais um pouco e começa a nevar aqui dentro. Vais ficar por cá?”... dentro da sua cabeça, ouve-o dizer que não sabe... que apenas está ali... um morto caminhando no mundo dos vivos. “Isto é aborrecido, sabes? É aborrecido. Vai estar sempre assim tanto frio?”... mas isso ele também não sabe.<br />Começa a tocar a sineta energicamente, chamando uma empregada. Precisa de um chá quente imediatamente, antes que morra de frio. “Jarvas, fica aí quietinho, nada de gestos bruscos... não quero que a rapariga se assuste.”... ele acena concordante.<br />A empregada entra ofegante, com o suor a escorrer-lhe da testa e do pescoço, amaldiçoando o calor abrasador. Pára atónita, olhando para a patroa vestida com pesados trajes de Inverno e mantinha nos ombros... “Minha senhora...sente-se bem?” pergunta timidamente, quase muda de espanto .”Pareço-lhe bem? O meu marido morreu e agora aparece-me aqui assim, neste estado! Como posso estar bem?”, cospe Dona Antonieta enquanto aponta para o marido sentado a um canto. A empregada olha para o sofá vazio, sem perceber. O seu olhar transparece incompreensão. “Não o vês? Não o vês ali sentado? O idiota do meu marido... não o vês?” ... mas a rapariga não via nada. “Jarvas, ela não te consegue ver?”, pergunta irritada... Mas ele não sabia. “Não sabes nada, tu! És um inútil! Um inútil e um imbecil!! Oh... desculpa, desculpa! Meu amor... desculpa. Isto é tudo tão aborrecido...”, vai ela dizendo com gestos exasperados.<br />O médico é chamado com urgência e declara que a senhora está com um esgotamento nervoso provocado pela morte do marido, mas que irá com certeza melhorar. Até lá, não deveria ser contrariada para que não ficasse ainda mais perturbada.<br />Os empregados vão sobrevivendo como podem aos ataques de raiva da patroa. Dona Antonieta não percebe como é a única a conseguir ver o marido, com a agravante de ser a única a morrer de frio por aqueles lados. Chega a pedir, numa das tórridas noites de Verão, que lhe acendam a lareira da sala... o que fez com que uma empregada desmaiasse de calor enquanto lhe servia a sopa ao jantar.<br />Os dias passam e a senhora não melhora. O médico é novamente chamado, mas desta vez abandona a casa com um semblante pesado e triste.<br />No pequeno quartinho, Dona Antonieta, de luvas e gorro de lã, está sentada numa mesinha com o marido. “Queres jogar xadrez, Jarvas?”, ele responde que não... que prefere damas. “Damas é para idiotas Jarvas!! Como me irritas, homem! Eu adoro-te, juro que te adoro, mas tu dás comigo em doida. Em doida!”.<br />Entra uma mulher e pousa um tabuleiro de chá a ferver na mesa, “O seu chá, senhora...”, diz ela gentilmente. “Ah! Obrigada! Muito obrigada! Sempre aqueço um pouco... está a ver o idiota do meu marido? Queria jogar damas... é porque sabe que jogo muito melhor xadrez que ele... homens! Toda a gente sabe que damas é para burros!”, resmunga Dona Antonieta com um ar de desprezo. O Sr. Jarvas, baixa a cabeça, envergonhado, exibindo a testa forrada de picadas de vespa. A mulher sorri e assente, divertida. Sai, a porta fecha-se e uma chave gira.<br />Passados vinte minutos, ressoa o riso de D. Antonieta por todo o manicómio. “Ah Jarvas! Nunca me consegues ganhar! És um péssimo estratega Jarvas! Péssimo! Meu adorável tolo...”.<br /></div><span style="font-size:78%;"><br /><span style="font-style: italic;">pic by Meltys</span></span>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com32tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-4189278135869726512009-06-15T03:22:00.000-07:002009-10-12T15:29:48.775-07:00A viúva<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgByVTc8S0tUb0Hg-zzCk4NaGU0b4Yl-FLbGkGzd8H211HJodS-YdbE5HmXcFqqH1DMAGOkxy_rlT34ex7YbT8lL8kGNSzvZEdXM-AoYdhJp_113vcR7kXbbB5zkMkaWpbDlQ-WB-dzng8/s1600-h/Lucia__s_Walk_to_Heaven_by_phatpuppy.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 302px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgByVTc8S0tUb0Hg-zzCk4NaGU0b4Yl-FLbGkGzd8H211HJodS-YdbE5HmXcFqqH1DMAGOkxy_rlT34ex7YbT8lL8kGNSzvZEdXM-AoYdhJp_113vcR7kXbbB5zkMkaWpbDlQ-WB-dzng8/s400/Lucia__s_Walk_to_Heaven_by_phatpuppy.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5347196941096205698" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">Os passos são imprecisos e sem pressas, a dor tirou-lhes a precisão e a falta de vontade de viver tirou-lhes a pressa.<br />O marido deixara de existir... a dor era-lhe insuportável. A cada minuto ela esperava que o coração cedesse e parasse... mas o coração continuava a bater, e os minutos iam passando, cruéis e intermináveis, uns atrás dos outros, e ela continuava viva também. O coração não parava, por mais que ela o desejasse.<br />Os filhos já crescidos viviam longe, na cidade. As visitas eram raras devido à distancia. Via os netos apenas no Verão, quando todos vinham passar o quente mês de Agosto à casa da sua infância, e as tardes se passavam a nadar no lago, a beber limonadas e a comer bolo de groselha.<br />Não queria alarmar os filhos com a notícia, nem queria que chegassem precocemente. Mandaria um telegrama a informa-los da morte, e eles chegariam no dia a seguir. Tinha previsto tudo até ao mais ínfimo pormenor, e queria tratar de tudo sozinha para evitar dar trabalhos aos filhos.<br />Continua a caminhar, evitando as estradas e cruzando os bosques... queria contornar a vila, onde todos a conheciam, e seguir até à vila seguinte.<br />No dia anterior tinha despedido todos os empregados, entregando a cada um uma generosa porção de dinheiro, o que os deixou surdos de espanto, e ordenou-lhes que partissem. Queria estar só. Não queria ouvir um som. Abriu as portas das capoeiras, dos estábulos, a cancela da cerca das ovelhas e foi-os enxotando para fora da propriedade. O que mais ambicionava era o silencio total e amaldiçoava as aves que das árvores continuavam o seu alegre chilrear.<br />Caminhava vagarosamente, deixando que as ervas selvagens lhe rasgassem as bainhas rendadas do vestido. A viagem acumulou pó no seu cabelo, no seu vestido, na sua na sua cara... duas linhas de lágrimas abriram caminho por entre o pó das faces, como pequenos ribeiros nascidos da mesma nascente, e que seguiram caminhos opostos.<br />Os sapatos forrados de cetim revelaram-se muito pouco apropriados para a caminhada, pelo que os tirou e continuou de pés descalços.<br />Avistou o vilarejo com um alivio agradecido... o seu corpo dizia-lhe que ela não conseguiria andar mais uma passo.<br />Voltou a calçar os sapatinhos e penetrou nas ruas sinuosas. Quem passava olhava de soslaio para aquela estranha, de aparência burguesa. O vestido de renda inglesa marcava-lhe o corpo esguio que a idade não tinha atraiçoado.<br />Era bonita a senhora.<br />Não tinha mais de quarenta e cinco anos, a senhora.<br />Tinha um ar perdido, a senhora.<br />Caiam lágrimas silenciosas dos olhos da senhora.<br />Perguntou onde era a casa funerária e uma mão confusa apontou-lhe uma rua.<br />Seguiu na direcção que a mão lhe apontou, de cabeça erguida, enquanto mordia os lábios tentando controlar a dor.<br />Empurrou uma porta adornada com arabescos de ferro enferrujado, que por sua vez fez tocar uma sineta algures nas entranhas da casa.<br />Surgiu um senhor, vestido com um fato negro, como se estivesse preparado para partir para um funeral a qualquer momento. Deixou cair um aceno cordial e a sua boca desenhou um sorriso breve, frio e profissional.<br />- Queria tratar de todos os aspectos que envolvem um funeral. - atirou ela de rompante sem sequer dizer boa tarde.<br />- Com certeza minha senhora... deixe-me desde já dizer-lhe o quanto lamento a sua perda. - Disse ele num tom de quem já tinha repetido esta frase centenas de vezes, carregada com a certeza de que a iria repetir centenas de vezes mais.<br />- Obrigada. - disse exausta, deixando-se cair num pequeno sofá forrado a veludo verde musgo. - É a primeira pessoa com quem falo... espero que possa tratar de tudo sozinho. Não tenho forças para mais. Pago-lhe tudo em avançado, e já. Acha que tem capacidades para isso?<br />O homem de negro, que cheirava a morte, a falso pesar e a ganância, assentiu com um brilho nos olhos.<br />- Posso saber quem perdeu?<br />- O meu marido. Perdi o meu marido... não tenho mais nada, sabe... não tenho mais nada.<br />O homem de negro tinha um pequeno discurso adequado a estas situações, um discurso que pretendia dar algum alento aos familiares do defunto... mas algo nesta mulher lhe disse que o melhor era guardar silencio.<br />Escolheram então o caixão, as flores, os cânticos para a missa fúnebre, os bilhetes de aviso para os familiares e amigos a respeito do velório e um pequeno texto a ser publicado no obituário dos jornais da vila e das terras vizinhas... se bem que ela disse que talvez fossem preciso fazer algumas alterações de ultima hora, mas que confiava no seu bom senso e profissionalismo, já que ela queria ser deixada em paz depois de todos os preparativos. Entregou-lhe por fim a morada do médico que era suposto declarar o óbito.<br />- Mas o médico ainda não foi avisado? - admirou-se o homem.<br />- Trate você disso, e de qualquer das formas detesto aquele velho metediço. Acho que não tenho de lidar com quem não queira neste momento... não lhe parece? Já me basta... - parou, contendo as lágrimas.<br />- Mas... sim, claro. Eu informo o médico.<br />- Entregue tudo nesta casa amanhã de manhã. - disse de voz sumida, entregando-lhe um papelinho com a morada.<br />- Ainda é longe! - admirou-se -A senhora veio de muito longe! - a afirmação carregava uma pergunta.<br />- Não queria enfrentar os meus amigos, sabe... os olhares de pena, as manifestações de pesar. Só quero que tudo acabe de uma vez por todas. Vir aqui foi mais simples... sabe...<br />O homem não sabia, mas assentiu com um ar grave. Normalmente as pessoas que perdiam alguém procuravam conforto nos braços de familiares e amigos... mas este não era um caso normal, assim como não o eram a determinação e a força desta senhora.<br />Ela pegou na bolsinha e tirou dinheiro suficiente para pagar aquele funeral dez vezes. Ele admirou-se e estava prestes a recusar - Não me serve de nada, sabe... o dinheiro, não me serve para mais nada... o meu marido morreu... nada mais faz sentido. E o meu coração ás vezes parece que vai parar com a dor, sabe... mas não pára. Eu fico quieta à espera que pare, mas não pára... se ao menos parasse...<br />Ele ficou imóvel, hirto ao som daquelas palavras inesperadas, tomando agora a verdadeira consciência da dor daquela mulher, e calculou que tivesse ficado um pouco louca com a morte do marido.<br />Ela sai pela porta forrada de arabescos, fazendo a campainha tocar novamente. Volta por onde veio, sem se despedir, ignorando os olhares curiosos que atraia pelas ruas. Encontra uma estação de correios e envia um telegrama a cada filho... o corpo treme-lhe ao antever a dor que aquelas simples palavras vão causar.<br />Volta a entrar nos bosques, e novamente de sapatos na mão, percorre todo o caminho até casa, demorando várias horas.<br />Chega ao final da tarde, com os pés a sangrar, mas com um alívio imenso. Estava tudo tratado. Agora poderia finalmente descansar.<br />Atravessa o jardim que a leva a casa, desvia-se para as traseiras e fica parada em frente uma estufa de conteúdo luxurioso. Era do marido... ele tinha-a construído sozinho durante meses de dedicação obsessiva. Cada roldana, cada prateleira, cada telha de vidro, tinham sido cautelosamente montadas, dando a possibilidade de se entregar à sua grande paixão... a botânica. Desde então coleccionava flores e ervas raras de todo o mundo e passava grande parte do seu dia contemplando a sua obra, regando e falando com as plantas como se fossem seres humanos, e, jurava-lhe ele, elas falavam com ele também. Ela ria-se e chamava-lhe velho tolo.<br />Entra na estufa e sente de imediato um perfume inebriante que lhe enche os pulmões e lhe atordoa os sentidos... passa com mãos por aquelas pétalas aveludadas, da mesma forma que viu o marido fazer tanta vez.<br />A esta hora os filhos deveriam estar prestes a receber os telegramas. Suspira.<br />Caminha até ao final da estufa e pega num ramo de um pequeno arbusto carregado de bagas negras... o marido tinha-lhe explicado que era beladona... uma planta rara e extremamente venenosa. Pergunta-se porque teria aquele adorável velho tolo dado abrigo a algo assim tão letal. Mas além das bagas venenosas, a planta produzia uma flor linda que sempre a tinha fascinado. Arranca um ramo e entra em casa... faria um bonito arranjo floral na jarra de cristal que estava vazia na sala.<br />Toma um longo banho, limpando a poeira da longa caminhada e veste-se de negro integral. A cor do luto, a cor da morte...<br />Recosta-se numa poltrona e beberrica delicadamente um copo de licor. Pensa no carro funerário que chegará na manhã seguinte, no caixão, nas coroas de flores e finalmente nos seus filhos... esboça um derradeiro sorriso. Estende o braço para uma mesinha redonda ao lado do sofá e pega numa moldura de prata com uma foto do marido. Chega a moldura aos lábios e repousa-lhe um beijo... <span style="font-style: italic;">"Dois anos... já partiste há dois anos, dois anos que bem podiam ser dois séculos..."</span>.<br />Pega no ramo de beladona e arranca uma das bagas negras... enfia-a na boca e engole-a com um trago de licor... depois outra, e mais outra, e mais outra...<br /><br /></div><span style="font-style: italic;"><br />pic in devianArt</span>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com30tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-91759890774495664972009-04-21T13:10:00.001-07:002009-10-12T15:36:10.779-07:00Marie<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6o56TM4TfToXaP0_ovCm7pU7Dh76LB7yQvGxKqex6aoJAy_BTcoLM6BtfjMhUAMd4fpJZfOnBwBQD_Ee4n5Gc5FRFTxiCdcki5HkRm9e5zgdW6ZDEeKEEATgySBUWHIywElNFBbr63h4/s1600-h/Lady_sombra.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 242px; height: 370px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6o56TM4TfToXaP0_ovCm7pU7Dh76LB7yQvGxKqex6aoJAy_BTcoLM6BtfjMhUAMd4fpJZfOnBwBQD_Ee4n5Gc5FRFTxiCdcki5HkRm9e5zgdW6ZDEeKEEATgySBUWHIywElNFBbr63h4/s400/Lady_sombra.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5327122425601927042" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">A cadeira de baloiço dança suavemente para trás e para a frente enquanto Marie bordava, com gestos delicados, pequenas flores em fio de prata no decote de um vestido de seda preto. O seu olhar pousa enfastiado no tecido negro e sente saudades do tempo em que apenas vestia roupas garridas e cheias de vida. Esse tempo, o tempo em que colocava flores vermelhas no cabelo e corria à beira das falésias pelas praias da Normandia, não voltaria mais. A morte do marido ditou-lhe um luto eterno e regrado. Além do preto, também se permita ao branco, mas apenas aos Domingos. Tinha lido algures, que em certas culturas o branco era usado em sinal de luto... por isso achava que não era desrespeitoso vestir-se de branco uma vez por semana.<br />Marie Godard sabia que não passava de apenas mais uma viúva de guerra igual a tantas outras... não se julgava especial ou mais infeliz, nem sequer pensava nisso. Não tinha chorado muitas lágrimas pela morte do marido, pois já conhecia aquela fatalidade de antemão. Aos doze anos, enquanto cirandava pela feira da vila, uma velha cigana sem dentes e enfeitada de inúmeras moedinhas de ouro, pegou-lhe na mão, sem que Marie se tivesse sequer apercebido da sua presença, e de olhos semi cerrados como em transe de pitonisa grega, lhe sibilou que iria casar cedo com um homem que não amava, que teria apenas um filho menino e que iria enviuvar cedo devido a um grande tumulto... ia para acrescentar mais qualquer coisa... mas a visão que se apoderou da cigana parece ter sido tão aterradora que esta apenas esbugalhou os olhos chocados de horror e disse apenas num murmúrio "Oh... oh minha menina...". Foi então que o pai de Marie se apercebeu daquela velha que agarrava a mão da filha, e furioso deu um empurrão à velhota atirando-a ao chão. "Ciganos malditos!!".<br />Marie nunca mais esqueceu a cigana e o futuro que ela lhe leu nas linhas da mão. Acabou de facto por casar com o seu amigo de infância Pierre, o qual não amava, mas que era um bom homem e um bom marido. Daquela união nasceu de facto apenas um menino, Maurice. Na manhã em que o marido partiu para a guerra, ela já sabia que aquela seria a ultima vez que o veria e de facto, dois meses depois, chega a noticia de que Pierre tinha sido crivado para além do reconhecimento por uma <span style="font-style: italic;">mg42</span> alemã... Marie apenas soltou um suspiro de resignada tristeza.<br />Voltou então para casa dos pais, uma bonita <span style="font-style: italic;">cottage</span> no litoral da Normandia... passando o tempo a cozinhar compotas com a mãe, ler, bordar ou simplesmente deliciando-se com os risos do filho que brincava no jardim.<br />O pai de Marie, Eugénie Godard, era um homem robusto e de ar prazenteiro... o facto de ter nascido no seio de família abonada e com negócios enraizados já há gerações, deu-lhe a despreocupação suficiente para se dedicar ao que mais amava... pintura, musica e escrita. Quando a França foi ocupada pelos nazis, Eugénie tornou-se num homem sisudo e calado... costumava sentar-se na biblioteca depois de jantar a saborear um<span style="font-style: italic;"> brandy</span> com um olhar carregado e pensativo. Não dirigia a palavra a ninguém, abrindo apenas uma excepção ao neto por quem nutria um amor que ele próprio não conseguia explicar. No ultimo ano tinha começado a receber estranhos a altas horas da noite com quem mantinhas breves conversas em surdina, e que partiam tão depressa quanto tinham chegado. Ás vezes ausentava-se durante dias seguidos, e quando lhe perguntavam onde tinha estado, ele apenas atirava ao ar uma breve justificação... "Negócios... fui a negócios..."<br />As tropas alemãs, lideradas pelo monstruoso General Karl Heydrick, tinham tomado controlo de toda a Normandia... os ventos furiosos que anunciavam o Inverno espalhavam em todas as direcções terror e medo. Havia pessoas detidas para interrogatórios que nunca mais voltavam, casas eram pilhadas, assim como quintas e lojas. As SS chegavam por vezes a fazer execuções à luz do dia em frente do máximo numero de pessoas possível, tentando desmotivar os rebeldes da<span style="font-style: italic;"> La Resistance</span> , e todos os opositores do regime.<br />O General Karl Heydrick era um homem cruel e sádico. Dizia-se que tinha sido em tempos um homem bondoso e gentil... mas o facto de a mulher que amava nunca lhe ter conseguido dar um filho, tornou-o num furacão de frustração e rancor. Ter-se alistado nas<span style="font-style: italic;"> SS</span> deu-lhe a oportunidade de libertar o ódio que lhe envenenava o sangue. Um homem sem um filho varão nunca poderia ser um verdadeiro homem! Um homem sem descendência não tinha propósito sobre a terra.<br />Vivia assim aguardando o mês em que a esposa não lhe mostrasse tristemente a roupa interior manchada de sangue... mas esse mês não chegava nunca, e passados alguns anos já nada restava do bondoso e gentil Karl Heydrick. O seu lugar tinha sido ocupado por um monstro protegido e alimentado pelo governo nazi, sendo as suas políticas extremistas o perfeito refúgio para descarregar a sua frustração, e acabou assim por se tornar um dos mais temidos generais do regime.<br />Marie ouvia tudo isto pela boca dos criados... descreviam-lhe um homem de cabelo louro, quase branco e de olhos azuis sem vida, e tão alto que havia portas em que ele tinha de se inclinar para passar. Diziam que era tão cruel que já tinha executado homens em frente dos próprios filhos, sempre com um sorriso de satisfação nos lábios. Ela encolhia-se e tremia perante a ante visão de tamanha monstruosidade.<br />Sabia que a segurança que sentia em casa dos pais era apenas ilusória e que podia ser quebrada a qualquer momento. Tentava alienar-se desse medo e levar uma vida normal... refugiava-se no pequeno Maurice de quatro anos... uma réplica do pai. Olhos ternos e sorriso fácil e doce. O cabelo negro caía-lhe em pequenas madeixas grossas que ele afastava dos olhos constantemente.<br />A certa altura, Eugénie Godard começou a andar animadamente agitado. Parecia uma criança nervosa a quem tinham prometido um presente. Conferenciou a Marie, no meio de enorme sigilo, que havia rumores que estava previsto uma invasão das tropas aliadas para breve. Sabia que que estava a ser reunido um contingente de muitos milhares de soldados. O domínio nazi sobre a França tem os dias contados, dizia Eugénie de olhos vidrados e irrequietos. "Vão desembarcar aqui filha... aqui na Normandia! A liberdade está próxima... quem me dera ter a honra de executar eu mesmo aquela besta do Karl Heydrick!" - Marie escutava, nervosa enquanto abraçava o filho e o apertava contra si.<br /></div><br /><a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh3cDRgXQtlMJ1rSX9EKgh4yupJkX8EKjRtTRu6wpxXoxX1V8qle0Sk1SExXL0iizb4_NttKsKbk_h7GTgyD2PnzdA80948s1KffbBciTonzOhBkeiZokz2z0tDMLy9nz1njr8EvXi81WE/s1600-h/Normandia_palavras.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh3cDRgXQtlMJ1rSX9EKgh4yupJkX8EKjRtTRu6wpxXoxX1V8qle0Sk1SExXL0iizb4_NttKsKbk_h7GTgyD2PnzdA80948s1KffbBciTonzOhBkeiZokz2z0tDMLy9nz1njr8EvXi81WE/s400/Normandia_palavras.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5327121989512310114" border="0" /></a><br /><br /><div style="text-align: justify;">Os dias passavam lentos e doces... Marie não se interessava pela ocupação nazi, Marie não se interessava por guerras e por soldados. Protegida pelos altos muros que rodeavam os jardins da casa de seus pais, vivia alienada de tudo isso. Apenas Maurice lhe interessava. Começava a achar os devaneios de seu pai aborrecidos e irreais, saídos da boca de um velho demente e fanático.<br />As mais altas patentes do exército alemão conheciam já os planos dos Aliados. Mas a Normandia tinha uma costa imensa e ninguém sabia onde ou quando se iria dar o ataque. O General Heydrick passava horas por detrás da sua secretária de carvalho e de olhos semicerrados, enquanto desconfiava em silencio de tudo e de todos... Dava ordens atrás de ordens e fazia questão de verificar ele próprio se eram ou não cumpridas. Ao mínimo incumprimento ou desvio do plano original, o General levava a cabo um sumário tribunal de guerra que constituía basicamente num tiro à queima roupa na têmpora do soldado faltoso.<br />São construídos bunkers ao longo de toda a costa da Normandia... vedações de arame farpado são erguidas ao longo de muitos km de praia... milhares de minas são enterradas. O exército alemão andava nervoso... a expectativa era enlouquecedora...<br />É no seu escritório, no meio de um caos de mapas, planos e listagens que o General recebe a notícia delatora de que um tal Eugénie Godard andava a apoiar a Resistência com dinheiro, armas e recrutamento de novos membros. Ergue os olhos e arreganha a boca num sorriso.<br />Marie cortava uma maçã em pedacinhos quer ia pondo na boca de Maurice, que os mastigava com os seus minúsculos dentes de leite. A cada dentada fingia que ia morder a mão da mãe, e ambos riam em pequenas gargalhadas de felicidade pura ... os almoços de Domingo eram sempre muito agradáveis em casa dos Godard. Havia sempre um prato mais elaborado que de costume e várias sobremesas. Normalmente após a refeição, Marie tocava uma ou duas árias de piano, o que deliciava os os pais e os empregados que a ouviam na cozinha, e depois disto iam todos dar um passeio até à praia pelo que Maurice trazia invariavelmente os bolsos cheios de conchas e pedrinhas que ele ia encontrando pelo areal, as quais achava de uma beleza extraordinária e única.<br />Mas nesse Domingo não houve sobremesas, árias de piano ou passeios à beira-mar...<br />Eugénie Godard preparava-se para trinchar o faisão quando se começaram a ouvir carros a entrar pelo caminho de terra batida que atravessava a propriedade.<br />Portas de carro a bater e gritos em alemão... botas pesadas que atravessam o <i>hall</i>. Reconhecem o grito de uma das empregadas e ouvem o tiro que o silencia. Marie aperta Maurice contra si... ambos tremem de medo. O Sr. Godard levanta-se calmamente da cadeira quando a porta da sala é arrombada com um estrondo. A sra. Godard começa a gritar com o histerismo do desespero. Vários soldados de cabelo louro e olhos azul aço entram de armas em punho e param repentinamente, em sentido, como que esculpidos em mármore.<br />Ouvem-se mais passos pesados... mas desta vez lentos, calculados.<br />O General Heydrick entra calmamente, de porte possante e majestoso. Pareceu a Marie mil vezes mais assustador do que o tinham descrito. Era extremamente alto e de peito largo... tinha uma boca e um nariz perfeitos. O seu cabelo era de um louro quase platinado e as faces estavam imaculadamente barbeadas. Constatou sem sombra de dúvida, que aquele era o homem mais bonito que já tinha visto na vida. Todavia quando o olhou nos olhos, soube que aquele corpo servia apenas de invólucro para um ser morto por dentro. Nada havia de humano naquele homem.<br />O General pergunta a Eugénie, com um tom de voz neutro e despropositadamente calmo, onde guarda as armas com que anda a abastecer os rebeldes.<br />- Armas? Que armas? Não sei do que fala! Nada sei de rebeldes! Que armas? - tenta manter a compostura mas a voz treme-lhe.<br />- Nada sabe de armas ou de rebeldes? - o General quase que sorri ao mesmo tempo que aponta a arma à cabeça da sra. Godard, que ainda não tinha parado de gritar e dispara. Um repuxo de sangue salpica o vestido domingueiro de Marie mas ela apenas solta um som rouco e incrédulo.<br />O pequeno Maurice solta-se da mãe e deita-se abraçando a avó estendida no chão. Chora baixinho, chamando pela avó, pedindo para ela abrir os olhos.<br />- As armas! Já!- o General Heydrick começa a dar mostras de alguma impaciência.<br />Eugénie Godard olha para o corpo da esposa caído no chão... tem de fazer com que aquela morte valha. Num acto de coragem volta a repetir que não tem armas em casa... que não está a ajudar a Resistência... que deve haver ali algum engano.<br />O General olha para o pequeno Maurice e sorri - "Tem a certeza?" diz simplesmente enquanto aponta para a criança e puxa o gatilho.<br />Marie solta um grito rouco, enquanto o sangue do seu filho lhe atinge a cara. Eugénie olha para o neto sem vida, tombado em cima do peito da avó - "Mas... era uma criança... era apenas uma criança..." balbucia enquanto leva uma mão ao coração. Cambaleia e cai em cima da mesa, com as mãos a agarrar o peito, sem conseguir respirar. Depois de mais uns segundos de agonia, escorrega para o chão, inerte, arrastando atrás de si pratos e talheres.<br />Heydrick olha para o corpo do velhote no chão e faz cálculos do inconveniente de ele ter morrido sem antes ter revelado onde tinha o depósito de armas.<br />Marie treme violentamente... o sangue do filho mancha-lhe a cara, o sangue da mãe mancha-lhe o vestido, o pai está morto no chão. Por uns segundos o mundo torna-se num buraco fundo de silêncio sepulcral e o tempo pára. Nesse preciso momento, o Inverno chega à Normandia.<br />E General contempla longamente aquela jovem mulher de cabelos negros e olhos cor de mel. Dá ordem aos soldados para que percorressem toda a propriedade em busca das armas e fecha a porta da sala... lentamente.<br />Fica parado, olhando para Marie que ainda não tinha parado de tremer convulsivamente, enquanto da sua garganta apenas saem uns sons roucos de perplexidade e horror, quase desumanos, primitivos.<br />Ele vai até junto dela e lança-lhe um olhar quase zombeteiro enquanto a agarra pelos ombros. Ela acorda do transe com o toque frio daquelas mãos enormes. Tenta soltar-se, mas ele não deixa. É grande e forte e Marie percebe que não vale a pena gritar por ajuda... todos os que a podiam ajudar estão mortos... todos os que ama estão mortos. Mas ela grita, solta gritos selvagens... não para ser ouvida, mas apenas para si, grita para ter a certeza de que continua viva.<br />O General Heydrick tenta tapar-lhe a boca, mais por os gritos o estarem a incomodar do que por outra coisa qualquer. Marie morde-lhe uma mão, o que o enfurece. Um estalo voa violentamente e abre-lhe um lábio... o sangue escorre-lhe pelo vestido, juntando-se ao sangue do filho e da mãe.<br />Marie desiste e a sua mente abandona o corpo enquanto aquele estranho lhe rasga o vestido e a atira para o sofá... ofegante, aperta-lhe os seios irascível, beija-lhe o pescoço e sente o perfume daqueles cabelos negros e brilhantes. Ela não se mexe, não solta um som... o homem pára por um segundo, assegurando-se de que ela não estaria desmaiada. Olha dentro dos seus olhos vazios, fixos no filho morto no chão e então sem hesitação, entra nela. Entra nela violentamente, imparável, impiedoso.<br />Quando acaba, levanta-se e aponta-lhe descontraidamente a arma à cabeça... mas Marie nem olha para ele... a sua alma ainda não tinha regressado ao corpo. Jamais regressaria. Ele hesita, por um momento, olhando para aquela bela mulher e acaba por guardar a arma.<br />Marie sente-o partir... a ele e aos outros soldados. Estavam irritados. Não tinham conseguido encontrar armas em lado nenhum. Ouve-os gritar na rua, como se fizessem parte de um sonho e as suas vozes ecoassem debaixo de água.<br />Rasteja pela sala, com o vestido em farrapos e agacha-se num canto durante dois dias, de mãos em volta das pernas oscilando o corpo para trás e para a frente.<br />Quando finalmente sai daquele entorpecimento, já não é a Marie. Da mulher que fora, já nada restava, assim como já nada restava do homem bondoso que o Gerenal Heydrick tinha sido um dia.<br />Percorre os corredores, os quartos, as salas... olhando para uma casa que já não era a sua. Fecha as portas da sala onde estão os corpos da mãe, do pai e do filho que tanto tinha amado. Fecha-a à chave e barrica-a com todos os móveis que consegue arrastar. Fecha todas as janelas e corre todos os cortinados. Vive semanas arrastando-se pela escuridão... comendo os restos que encontra na cozinha e as conservas que encontra na adega. Nunca mais despiu o vestido branco esfarrapado e manchado de sangue. Não vive. Existe apenas.<br />Nunca mais chorou... porque para chorar é preciso ter um coração vivo, um coração que sinta e palpite... e o dela apenas jazia morto e apodrecido dentro do peito.<br />Um dia, sentada no chão da adega, com os olhos fixos na escuridão e enquanto ia mastigando pequenos pepinos conservados num pote de vinagre, pousa a mão sobre o ventre e sente uma pequena protuberância que antes não tinha.<br />O Inverno tinha chegado e partido e Marie não se recordava de ter tido as regras durante todos aqueles meses. Mergulhada na doce demência a que se tinha entregue, todos esses pormenores lhe haviam passado ao lado.<br />"Grávida!" - grita - "Grávida!! Não! Não, não não! Grávida de um monstro!". A leoa ferida dentro dela, acorda. Ruge e bate com os punhos na barriga, na parede, nas portas, nos barris do vinho... pontapeia tudo o que apanha pela frente num acesso de agonia desesperada. Os cabelos que não eram penteados há meses ganham vida de medusa enraivecida.<br />No meio do rebuliço, não sabe exactamente em que local bateu, mas uma parede falsa abre-se com um <span style="font-style: italic;">clic</span>. Marie pára ofegante, olhando embasbacada para uma divisão que desconhecia. As armas que os alemães tinham acusado o seu pai de traficar... estavam todas ali. Marie sente um enjoo e vomita os pepinos envinagrados. Todos, tinham morrido todos por causa daquilo! Algo nela acorda... o coração ilumina-se debilmente, como se uma réstia de acendalha que ainda residia dentro dele tivesse sido soprada por uma leve brisa.<br />Entra naquela pequena divisão bafienta e encontra todo o tipo de armas... nunca tinha manuseado nenhuma, não fazia ideia de como funcionavam. Concentrou-se nas granadas. Essas eram simples de utilizar. E então sorri... sorri o mesmo breve sorriso zombeteiro que lhe tinha lançado o general Heydrick.<br />Enfia uma dezena de granadas num velho saco de serapilheira e corre pelas escadas acima.<br />Ouve sons de metralhadoras ao longe... tiros, explosões. Não sabe há quanto tempo aquilo dura, pois não saía adega há mais de uma semana.<br />Vai até aos aposentos do falecido jardineiro e enfia umas velhas calças rasgadas, uma camisa coçada e umas botas velhas ainda emlameadas. Com uma tesoura enferrujada, corta curtos os longos cabelos emaranhados e enfia na cabeça um chapéu de palha que lhe cobre os olhos.<br />Abre a porta da entrada pela primeira vez desde que a sua vida lhe havia sido roubada, e vê ao longe, a cair dos céus, pára-quedistas que deixavam de se ver quando chegavam ao solo e se fundiam com o arvoredo.<br />Era o ataque dos aliados! O pai tinha razão... nada havia de senil nas suas atitudes ou devaneios. Finalmente as tropas libertadoras tinham chegado à Normandia.<br />Marie volta para dentro, e fica toda a noite acordada, com o saco de granadas junto ao peito... e a pensar.<br />O ruído das armas não pára um minuto, nem durante a noite, e antes do nascer do sol, Marie,vestida com roupas de homem e sem largar nunca o saco de granadas, corre o mais rápido que pode na direcção da batalha. Encontra corpos de soldados um pouco por todo o lado, mergulhados na densa vegetação da Primavera. Reconhece uniformes americanos, ingleses e canadianos... mas nenhum destes lhe serve. Continua sem parar... agachada, até que tropeça e cai em cima de um corpo de um soldado alemão. Nada restava da cabeça do homem. Faz um sorriso de triunfo e despe-o, vestindo o uniforme em seguida. Toca com os dedos sujos no tronco do homem, usando o sangue para pintar a cara.<br />Continua sem parar, dirigindo-se à falésia. Já conseguia ouvir os gritos dos soldados de ambas as partes. Gritos de raiva, de surpresa, de dor, de desespero. Engole em seco e continua em frente. Começa a ver os bunkers alemães que protegem as falésias. Não pára nunca...<br />A sua atenção é captada por os gritos de um soldado ferido a alguns metros de distancia. Corre até ele e reconhece um uniforme alemão manchado de sangue.<br />- General Heydrick. - diz inquisidoramente, fingindo uma voz grossa com sotaque alemão. O soldado olha para ela... para aqueles olhos emoldurados por uma cara ensanguentada e vira-se para o lado cuspindo sangue.<br />- General Heydrick!! - Marie grita-lhe e pega-o pelo colarinho sacudindo-o furiosamente. Ele levanta o braço ligeiramente e aponta com o dedo para o terceiro bunker visível na linha da falésia.<br />- <span style="font-style: italic;">Merci</span> - diz docemente em francês enquanto lhe deposita um beijo na testa.<br />Corre para o bunker. O som das metralhadoras e das explosões é ensurdecedor. Olha para a praia e vê um mar vermelho de sangue... centenas de corpos boiavam na agua. Os soldados que não morriam no desembarque dos navios, acabavam despedaçados no areal ao pisarem minas anti-pessoal ou presos em arame farpado. Os que conseguiam ultrapassar esses obstáculos tinham ainda de sobreviver ás metralhadoras imparáveis protegidas dentro dos bunkers.<br />Marie olhou aterrada ao que julgou ser uma verdadeira visão dos infernos.<br />O seu corpo fica hirto e a tez sombria.<br />Entra no bunker e vê o General sozinho... metralhando imparável toda a praia. Era demasiado sedento de sangue para ficar nos bastidores a dar ordens, e Marie sabia disso.<br />- <span style="font-style: italic;">Mein General</span>! - Grita.<br />Heydrick volta-se para aquele soldado coberto de sangue e mais baixo que o normal com um olhar inquisidor e impaciente. Olha-o nos olhos... e reconhece-a! Aquele olhar... jamais poderia esquecer aquele olhar.<br />Marie apercebe-se de que ele sabe quem ela é... e sorri. Devagar, tira o casaco do uniforme e depois a camisa. Fica em frente dele, semi-desnuda, de ventre saliente e peitos cheios.<br />- <span style="font-style: italic;">Regardez... voici votre bebe</span>. - O seu tom de voz é neutro e sem vida... mas os seus olhos sorriem.<br />O General demora uns segundos a perceber... olha para a barriga dilatada daquela mulher, depois para os seus olhos... depois novamente para a barriga. E então o seu olhar ilumina-se. Um filho! O filho que sempre quis! Não lhe importava que lhe fosse trazido por aquela estranha. Nada lhe importava, apenas o bebé.<br />Sorri. Sorri com uma felicidade genuína... o General não se lembrava da ultima vez que se tinha sentido feliz.<br />Marie sorri também enquanto despeja no chão o saco de granadas. Pega numa e ergue-a no ar... calma, sorrindo sempre, parecendo quase divertida.<br />O General Heydrick apercebe-se então... olha nos olhos da mulher e lê-lhe os pensamentos. Não tem tempo de sentir medo ou pânico. A ultima coisa que vê, é Marie de braços erguidos a puxar a cavilha de uma granada.</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com16tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-70630051644726386982009-03-21T08:11:00.000-07:002009-10-12T15:36:47.120-07:00Abegayle<div style="text-align: center;"><a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtgUrBWsdj6uq4x1XTDHpsMD1wTGNeGcUXpEnvaYidv7FkNfwbo9uWmRfI0fsyGf95l0F6iH0gV_jGEvueZtCXuip-qbg09KP_o5k1e-Iy0PDhNkt-y4bvdkf3cd4jUM_feWsvUqaBl0Y/s1600-h/Penot_Sabbat.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 328px; height: 400px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhtgUrBWsdj6uq4x1XTDHpsMD1wTGNeGcUXpEnvaYidv7FkNfwbo9uWmRfI0fsyGf95l0F6iH0gV_jGEvueZtCXuip-qbg09KP_o5k1e-Iy0PDhNkt-y4bvdkf3cd4jUM_feWsvUqaBl0Y/s400/Penot_Sabbat.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5312270982402520002" border="0" /></a></div><div style="text-align: justify;"><br /><div style="text-align: justify;">Abegayle corria descalça por um campo de margaridas... não porque estivesse apressada em chegar a algum lado, mas apenas porque lhe sabia bem. Leve, sem preocupações, aceitava o sol que lhe acariciava as faces e lhe beijava a boca. Pára, arranca da terra quente um raminho de hortelã e leva-o ao nariz... inspira profundamente e fecha os olhos durante uns momentos, enquanto uma brisa leve faz os seus cabelos negros ganharem vida... Do alto do monte, contempla por momentos o vilarejo que se erguia em baixo e solta um suspiro de tédio.<br />Continua a correr em direcção a casa. Não tem pai nem mãe à sua espera, apenas um velho casal de caseiros que já lá trabalhavam desde muito antes de ela nascer, três jardineiros e uma empregada quarentona e bem disposta.<br />Aos vinte e dois anos, ainda não tinha casado. Não por ser feia ou por falta de dote, mas devido ao seu feitio tão peculiar. Por vezes saía de casa de manhã e só voltava à noite quando a fome se tornava insustentável. Os homens queriam uma mulher que os servisse e fosse a mãe dos seus filhos e não uma mulher assim, com espírito de criança rebelde, tola e mal comportada.<br />Mas Abegayle era feliz mesmo sem homem, principalmente sem homem... pensava ela algumas vezes, não muitas vezes, pois não era dada a este género de devaneios.<br />Entra pelos portões saltitando e cumprimenta quem encontra com sorrisos travessos.<br />-Trouxe-te flores, Margareth!! - estende um ramo de margaridas à velha governanta com um sorriso carregado de apreço e ternura.<br />-Oh menina... descalça outra vez!! - abana a cabeça tentando parecer zangada- Obrigada pelas margaridas... mas com as mais belas flores de Inglaterra a crescer no seu jardim, porque me tráz essas apanhadas nos montes?<br />-Porque são livres Margareth... são selvagens. Têm outro encanto - pisca-lhe um olho e sorri.<br />A brisa que lhes trazia o cheiro a bosques frescos e a flores do campo, começa a trazer-lhes um cheiro a queimado... a carne queimada.<br />Os outros empregados reúnem-se-lhes silenciosos, todos de olhos voltados na direcção da vila.<br />- Quem foi desta vez? - pergunta de voz neutra e olhar triste, o que nela era uma raridade. <br />-Mary Atkins... a esposa do pastor. Acusaram-na de ter provocado a morte de todos os rebanhos dos outros pastores, de ter feito apodrecer os milheirais e de ter sido vista numa noite de nevoeiro cerrado, a pairar nua, montada numa vassoura numa clareira dos bosques. Disseram-me ontem, que desde que foi condenada, ninguém na vila consegue beber leite, pois ele azeda antes de chegar à boca. - Margareth diz tudo isto com um tom de voz monocórdico e pesaroso.<br />-Ás vezes penso que estaríamos todos melhor fora deste país maldito! - diz Thomas, o marido de Margareth - fala baixinho e com uma voz inexpressiva - A Santa Inquisição tomou conta de Essex. Ninguém pode apanhar um raminho de ervas sem se tornar suspeito.<br /></div> -Pobres almas, pobre Mary... oh Deus. - diz Margareth de voz desfeita.<br /><div style="text-align: justify;">A menina-mulher solta um grito de entusiasmo, completamente despropositado e pergunta o que é o almoço. A velha governanta dá-lhe um sermão para que se contenha porque o momento é de pesar.<br />-Oh... pela pobre Mary nada podemos fazer... mais vale então almoçarmos, não lhe parece? Não seja assim. Estou esfomeada! - finge um beicinho e inclina-se sobre a velha anciã, dando-lhe um beijo na face seguido de uma risada.<br />Corre para dentro de casa, aos saltinhos e pinotes, fazendo lembrar uma cabrita endiabrada.<br /><br />Todos na pequena vila sabiam que Abegayle era meio tola... após o terrível incidente há quinze anos atrás, a sua capacidade de amadurecer tinha secado. Perdeu o tino e o seu corpo foi crescendo, mas nunca acompanhado da razão.<br />Os seus pais tinham-se tornado burgueses prósperos ao comercializarem inteligentemente todo o género de produtos, desde tecidos a leite de cabra. Em poucos anos fizeram uma verdadeira fortuna. Quando as pessoas na vila se aperceberam do quanto o seu negócio crescia, consumidos pela inveja, deixaram de frequentar o armazém da família, mas eles imediatamente criaram uma rede de abastecimento pelas vilas vizinhas, crescendo assim mais que nunca.<br />Quando tinha sete anos a sua mãe foi acusada por uma vizinha de ter sido vista nos bosques a fornicar com o diabo numa noite de lua cheia por livre vontade vendendo assim a sua alma em troca de riquezas. Havia também rumores de que tinha ressuscitado uma criança. A quinta dos Okley's foi revistada e foram encontrados vários ungentos, potes com ervas venenosas e várias bonequinhas feitas de camisas de milho.<br />A sra. Okley foi acusada de bruxaria em alto grau, de manter relações sexuais com o próprio demo, de ter ressuscitado uma pessoa, algo apenas permitido a um santo e a Deus, e de conduta social perniciosa. Torturada durante meses, negou berrando de desespero as acusações até ao momento em que a amarraram a um poste e lhe acenderam uma pilha de lenha por debaixo dos pés, em plena praça publica e perante o olhar horrorizado da filha e do marido.<br />A menina foi então também submetida a intensos interrogatórios para se tentar saber se a mãe lhe tinha passado ensinamentos heréticos ou qualquer outro tipo de poderes, pois era óbvio que ela podia perfeitamente ter herdado os genes de bruxa da mãe. Acorrentada numa pequena cela de pedra imunda, totalmente despida, mal alimentada e coberta com os seus próprios excrementos, Abegayle chorava dia e noite. Chorava pela mãe que tinha visto ser consumida pelas chamas à sua frente, chorava pelos abraços quentes de seu pai e chorava principalmente de incompreensão.<br />É por fim libertada, quando a vizinha que tinha acusado a mãe, ao ser atirada para o leito da morte por tuberculose, num ataque de remorsos confessa que tinha sido tudo invenção sua e pede a Deus o perdão supremo pela sua redenção.<br />Quando regressa à quinta da família descobre que o seu pai tinha morrido de desgosto e que em casa apenas a esperavam os caseiros e alguns fiéis empregados.<br />A fortuna arduamente acumulada por seus pais permitem-na viver sem preocupações e manter a bonita quinta e os seus frondosos jardins que eram na verdade, a sua verdadeira paixão.<br />A partir do dia que regressou ao lar, a menina não voltou a derramar única lágrima, e tornou-se no mais alegre ser da região. Tola, portanto. Todos se habituaram a vê-la correr pela praça, descalça e a cumprimentar alegremente todos por quem passava pelo nome.<br /><br /></div><br /><a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFg_xlLJK3hl5NLSpWrKjnBI6tcrBkBlbTuhrxe4LLcXqDG47Rq1xXfcT3DOhDp_aGkj9kgL0XqLBb4eTjiWG9HC03qQabfZx7YBrLYzjV_HqXzHKQ7R2izGIJIm8zuzhv_PWHs4_qa8s/s1600-h/amazing_trees..jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 300px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFg_xlLJK3hl5NLSpWrKjnBI6tcrBkBlbTuhrxe4LLcXqDG47Rq1xXfcT3DOhDp_aGkj9kgL0XqLBb4eTjiWG9HC03qQabfZx7YBrLYzjV_HqXzHKQ7R2izGIJIm8zuzhv_PWHs4_qa8s/s400/amazing_trees..jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5314156937730688418" border="0" /></a><br /><br /><div style="text-align: justify;">Numa certa manhã de calor intenso, um rapaz recém chegado à vila, e à procura de um emprego que lhe desse um tecto e duas malgas de sopa por dia e um tecto para dormir, tenta a sua sorte na quinta dos Okley's.<br />Margareth estava já a dizer ao moço que não tinham trabalho para ele, quando surge Abegayle a correr ofegante, com uma coroa de rosas na cabeça e com um vestido branco quase translúcido. Parou estática, com os olhos fixos nos do rapaz enquanto o vento lhe empurrava de frente a roupa, fazendo-a colar ao corpo e vincando todas as suas formas de menina-mulher. No seu peito repousava presa por uma corrente de ouro, uma pequena medalha tosca em forma de sol.<br />Enamoram-se ali, sem aviso, sem terem tempo de tomarem fôlego e sem vergonhas.<br />- Pode ficar com o trabalho sim. – toda ela é chocolate derretido, toda ela é mel, toda ela arde de desejo.<br />Margareth sobressalta-se em pânico. – Menina, não! Não temos trabalho para ele! Desculpe moço, mas vai ter de ir embora... não há nada para si aqui.<br />- Sim! Pode ficar sim! Precisamos de mais um jardineiro Margareth.– pela primeira vez em quinze anos Abegayle usa a sua autoridade de patroa e impõe-se sobre a velha e boa caseira que a tinha tomado como filha. – Não há motivo para receios querida Margareth – diz tentando tranquilizar a velhota.<br />- Se a menina o diz... – diz ressentida e preocupada – Seja bem vindo então.<br />- John, o meu nome é John.- diz ele algo envergonhado sem tirar os olhos toldados de ardor, daquela estranha jovem de coroa de rosas na cabeça.<br />- Venha, eu mostro-lhe a quinta! – segura-o pela mão e, de sorriso aberto, puxa-o atrás de si.<br />John fica maravilhado com a quinta. Todo o local está imaculadamente jardinado... e<br />para além dos fantásticos jardins vê uma vedação com cavalos e terras cultivadas. A sua atenção é captada para um pequeno bosque que sobressaia do resto do arvoredo. Era composto de árvores centenárias, gigantescas... muitas delas com raízes expostas como músculos descarnados, e entre as árvores, a vegetação era tão densa que ele acho improvável que alguém conseguisse entrar ali. Achou estranho o facto de numa propriedade tão bem cuidada, tivessem deixado as silvas e as urtigas tomarem conta daquele cantinho em particular que se tinha provavelmente tornado num ninho de cobras.<br />-Tem de se fazer alguma coisa a respeito daquilo, não lhe parece senhora? - diz ele apontando para o matagal que engolia as árvores.<br />-Não - diz simplesmente Abegayle com um plácido sorriso.<br />Duas horas depois, vencidos pelo cansaço e pelo calor do meio da tarde, ela convida-o para lanchar. De faces ruborizadas e entre risadinhas tontas, típicas dos enamorados, conversam durante horas acompanhados de biscoitos de mel e limonada fresca que Margareth lhes ia trazendo sob um olhar de pesada censura. Ela fala-lhe sobre a família. Sobre a morte agonizante da mãe atirada injustamente para os braços da Inquisição quando acusada por uma vizinha invejosa e mesquinha , sobre o seu pai do qual nunca teve oportunidade de se despedir, Deus tenha em paz a sua alma. Falou-lhe do cativeiro a que foi confinada durante semanas e aos banhos de água gelada que lhe davam, alternados com banhos de água a escaldar.<br />-Mas a sua mãe... se não era bruxa, como ressuscitou uma menina? – John estava verdadeiramente curioso com aquela historia tão tristemente grotesca.<br />-Ela não ressuscitou menina nenhuma – diz distraidamente- A criança estava apenas inanimada. A minha mãe... – cala-se – Já viu que pôr do sol tão magnífico?? - diz, dando um salto em direcção à janela, contemplando o horizonte com um sorriso rasgado.<br />Ele olha para ela divertido. Nunca tinha conhecido criatura tão extraordinária.<br />Os dias vão passando... lentos, enternecidos pelo amor inesperado daquelas duas almas...<br />Tudo lhes era indiferente. Não se importavam se chovia ou fazia sol, se a égua tinha parido, se as sementeiras precisavam de ser escavadas... viviam um para o outro, no limite que o decoro permitia.<br />O rapaz constata, durante uma pausa no trabalho, que o pequeno bosque deixado ao abandono é pura e simplesmente intransponível. Não havia forma de passar por entre aquele emaranhado de silvas e arbustos selvagens. Mesmo que o quisesse desbastar, nem saberia por onde começar. Falou sobre isso a Margareth, ao que ela replicou com um sorriso gélido, que o bosque era para ficar assim mesmo. Remata a conversa lançando-lhe um olhar velado.<br /><br />Por mais duas vezes o cheiro a carne queimada inundou a quinta... e se por um lado John ficava extremamente incomodado e se benzia sem parar durante uma hora seguida, Abegayle por sua vez nem reparava e continuava com os seus saltinhos despreocupados que destruíam canteiros de roseiras e hortênsias e que colocavam Margareth à beira de um ataque de nervos.<br /><br />Num dos anexos da quinta especialmente preparado para ele, Jonh passava as noites em desassossego na cama sem conseguir dormir, e quando finalmente adormecia, os seus sonhos eram invadidos por imagens de Abegayle a correr em seu encontro com apenas uma túnica translucida sob a pele. Agarrava-o, abraça-o, puxava-o para dentro dela... sem hesitações nem pudores... Acordava em sobressalto, húmido de suor e com as mãos a tremer.<br />Numa dessas noites de insónia resolve sair do seu quarto e passear um pouco pelo jardim, deixando que a brisa fresca lhe enchesse os pulmões. A claridade da lua cheia e fecunda inundava tudo com a sua hipnotizante luz de prata.<br />Ouve um som de passos a pisar as ervas secas e tem um sobressalto. Olha na direcção da casa e vê um vulto vestido com uma capa preta com capuz que se dirige para o pequeno bosque impenetrável. Algo na figura o assusta e resolve observar em silencio. Quem quer que fosse, caminhava com passos seguros e apressados. Na mão levava um saco preto de tecido grosso que parecia algo pesado.<br />Jonh não percebe porque a pessoa se dirige ao bosque como se o fosse trespassar, visto que era nitidamente impossível entrar ali. Mesmo a um palmo das silvas, o busto pára e leva a mão ao pescoço, tirando uma pequena chave presa num fio. A mão branca do desconhecido estende-se e afasta uma pequena área coberta de arbustos... e então, como por artes mágicas, o vulto entra pelo bosque adentro como um fantasma atravessando uma parede. Jonh leva a mão à boca, sufocando um grito de espanto. Não sabe que forças invisíveis lhe fizeram os pés mover-se, mas quando dá por si, já ele próprio se encontra à entrada do pequeno bosque. Apercebe-se que por detrás de vegetação se encontra uma porta de grades de ferro tosca, impossível de encontrar a menos que se soubesse onde procurar. Aterrorizado, mas movido por uma curiosidade irrefreável decide entrar.<br />Lá dentro, vê uma enorme clareira iluminada pela lua cheia. Aparentemente, o bosque apenas servia para abrigar de forma segura aquele local.<br />Agacha-se a um canto, protegido pelo tronco de uma árvore e observa o vulto de negro. Fosse quem fosse, movimentava-se com destreza... tinha pegado numa vassoura feita com um emaranhado de ramos atados numa das extremidades e varria a clareira lentamente em movimentos circulares enquanto entoava uma cântico sussurrado. Do saco começa a tirar artefactos estranhos que ele nunca tinha visto. Símbolos esculpidos em madeira, pequenas pedrinhas com gravações,um pequeno caldeirão em ferro, velas de várias cores, uma garrafa de vinho, frasquinhos de ervas e um boneco tosco feito de serapilheira.<br />Jonh olha abismado tomando aos poucos a consciência de que estava perante actos heréticos avessos ás leis do Senhor. Benze-se repetidamente, completamente em pânico, esperando que a qualquer momento o vulto se voltasse para si. Mas quem quer que fosse, continua abstraído naquele ritual diabólico. Acende várias velas, depois de as untar com azeite e coloca uma mistura de ervas no pequeno caldeirão, pegando-lhes fogo de seguida... ajoelha-se no chão e segura o boneco de serapilheira de encontro ao peito... começa a bambalear-se para trás e para a frente enquanto lhe continuam a sair dos lábios palavras imperceptíveis e ininterruptas. Passados alguns minutos pára e levanta-se. Leva uma das mãos ao peito e desfaz o laço que lhe apertava a capa. Primeiro desliza o capuz, mostrando uns sedosos cabelos pretos e depois a capa cai-lhe aos pés... revelando a nudez integral de uma jovem mulher. Levanta os braços, levando o boneco em direcção aos céus e espeta-lhe um alfinete no coração e pousa-o no chão. Pega num punhal de cabo negro e ergue-o por sua vez no ar... e é então que ainda em transe se vira lentamente.<br />- Abegayle!! - Jonh não consegue conter o grito de espanto e horror.<br />Ela abre os olhos, e apanhada de surpresa e deixa cair o punhal no chão, mas sorri-lhe, complacente.<br />- Jonh... meu querido.<br />- Cale-se!! Bruxa!! Herege amante do demo!! Sois um ser malvado!! Afastai-vos de mim!!- Jonh chora de desgosto e berra palavras de ódio aquela bruxa traiçoeira. - A sua mãe era bruxa também!! É uma família de bruxas!! Que ardam todas na fogueira!<br />Abegayle avança para ele calmamente... agora já sem sorrir. Tinha perdido todo o ar de menina tola. Falou com uma voz dura e magoada.<br />- A minha mãe era bruxa sim... nunca o confessou pensando que de alguma forma me protegia. Deu a sua vida por mim. Ironicamente era inocente de todos os crimes de que foi acusada.<br />- Não, oh por Deus, não!- o rapaz era personificação da desilusão, confuso e com uma dor crescente no peito que parecia devora-lo vivo. - Que boneco era esse?? Que boneco era esse?<br />- Matas-me!<br />- Não Jonh... apenas protejo o nosso amor... - Abegayle sorri-lhe com ternura.<br />- Afastai-vos de mim! Vou embora! Vou à vila!! Vou contar a todos quem sois!! Ajuda!! Alguém me ajude!!<br />Ouvem-se passos atraídos pela gritaria... ele vira-se e vê os caseiros e os restantes empregados atrás de si... todos de capas negras que lhes cobrem os pés. Gagueja, em pânico... aterrado. - Todos vós, oh meu Deus, todos vós!!<br />- Menina, eu avisei-a - Margareth parece algo aborrecida.<br />O rapaz, enlouquecido pelo desgosto e pelo sentimento de traição, pega no punhal caído no chão e começa a correr em direcção a Abegayle. Ela pega na vassoura e montando-a, ergue-se a dois metros do chão, ficando fora do alcance do rapaz, sempre calma... sempre sorrindo.<br />- Ser demoníaco! - diz Jonh num sufoco, de boca aberta, olhando petrificado para a amada... julgando já estar a viver dentro de um pesadelo.<br />Larga a faca no chão e foge aos gritos em direcção da vila.<br />- Menina... -Margareth lança um olhar inquiridor a Abegayle.<br />- Deixem-no ir... - diz calmamente enquanto uma lágrima lhe escorre pela face.<br />- Mas...<br />- Deixem-no ir! - grita Abegayle com um olhar duro.<br />Jonh corre o mais rápido que pode... mas tropeça nos próprios pés tantas vezes que demora dez vezes mais a chegar à vila do que seria necessário. Chega à alvorada e começa a bater em todas as portas, aos murros e aos gritos - A Quinta dos Okley's!! São todos bruxos!! Todos! A Quinta dos Okley's! Abegayle é uma bruxa!! Quer matar-me! Todos querem matar-me!! Todos eles!!<br />A vila vai acordando aos poucos... passos vêm à rua... alvoroço... tochas... forquilhas... gritos de ódio, gritos de ordem, gritos de morte.<br />Uma pequena multidão dirige-se para a antiga quinta... todos tropeçando pelo caminho inexplicavelmente, demorando assim dez vezes mais o tempo necessário para lá chegar.<br />Já o sol do meio-dia vai alto no céu quando os gritos chegam aos portões da propriedade.<br />Arrombam as portas e caminham por todas as divisões procurando os traidores hereges... mas os passos ecoam... tudo está vazio... cada quarto, cada sala, cada armário. Os animais tinham sido libertos e caminhavam livremente pela quinta... apenas os cavalos tinham desaparecido também.<br /></div></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com22tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-2726922801047826592009-03-01T07:13:00.000-08:002009-10-13T02:52:46.449-07:00O porquê da Sombra<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEharAg7GRamiZkRv76ZJKpkgWWMhUgzCPopCpKOajeWX5k3Z4GJbU1ka6UzMo_A26MMCyY3Xp6PTZLoLK6yhaXik36-6pBv-4WLQT21KXEVyWA8IKNU5-UDTjzaMdTnlZwexL1yuQ1kGV0/s1600-h/Outono.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 250px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEharAg7GRamiZkRv76ZJKpkgWWMhUgzCPopCpKOajeWX5k3Z4GJbU1ka6UzMo_A26MMCyY3Xp6PTZLoLK6yhaXik36-6pBv-4WLQT21KXEVyWA8IKNU5-UDTjzaMdTnlZwexL1yuQ1kGV0/s400/Outono.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5308220234465864562" border="0" /></a><br /><br /><div style="text-align: justify;">Pretendo criar aqui um cantinho para os meus contos... mesmo que fique à sombra.<br />Por não achar que faz muito sentido ver as historias ou pequenos textos que escrevo misturadas com as trivialidades e devaneios do meu dia a dia...<br />Por achar que ficam melhor aqui, todos juntos...<br />Os posts abaixo vêm do <a href="http://www.blogger.com/www.gatasemtelhado.blogspot.com">Gatas em Telhado de Zinco Quente</a>.<br />Continuo assim no meu <a href="http://www.blogger.com/www.gatasemtelhado.blospot.com">telhado</a>, mas agora abrigada à sombra das palavras.<br />Posto isto... quero agradecer a <span style="font-weight: bold;">ele</span> por ter tirado a foto ás minhas tralhas e por a ter editado vezes sem conta até atingir o resultado pretendido.<br />Quero agradecer à Weee por me ter ajudado aqui com as "cenas". Para trás e prá frente, pra trás e prá frente.<br />Quero agradecer ao RIP por me ter ajudado a escolher o titulo para o blog.<br />Quero agradecer à Pi por me ter dito que o nome <span style="font-style: italic;">Contos de Uma Gata Vadia</span> aqui para o blog mais parecia coisa de rameira.<br />E finalmente, quero agradecer ao Kosh (jaZuze) pela sua infinita paciência de Jó, pois sem ele este blog mais pareceria um acidente nuclear.<br />A todos vós... obrigado, obrigado, obrigado.<br />Quantos aos textos antigos aqui em baixo... vou deixar os coments em aberto, caso se dê a situação improvável de alguém os ler e querer opinar.<br />Posto isto... até ao meu próximo conto...</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-60753099995822749922009-03-01T07:11:00.001-08:002009-10-13T02:57:25.054-07:00<div></div><br /><div style="text-align: center;"><span style="font-size:130%;"><span style="font-weight: bold;">Vestido de Cetim Branco e Meia de Seda</span><br /></span></div><br /><div><br /><center><a href="http://s451.photobucket.com/albums/qq231/Lempika_album/Ladies/?action=view&current=2.jpg" target="_blank"></a><a href="http://s451.photobucket.com/albums/qq231/Lempika_album/Ladies/?action=view&current=2.jpg" target="_blank"><img alt="Photobucket" src="http://i451.photobucket.com/albums/qq231/Lempika_album/Ladies/2.jpg" border="0" /></a></center></div><br /><br /><div style="text-align: justify;">No salão de chá do hotel ouve-se o som de um carro a chegar. Os olhares voltam-se. Ver um carro é ainda tão raro como pérolas negras. Olham abismados para aquela máquina estranha e barulhenta que só poderia ter sido inventada por um cérebro demente com um pacto com o demo.<br />O carro faz uma travagem e pára bruscamente ao lado de várias carruagens puxadas a cavalo.<br />Uma porta abre-se e uma perna de senhora envolta em meia de seda espreita para fora... aos olhares curiosos juntam-se sons incrédulos. Era estranho ver um carro... mas ainda mais estranho era ver uma mulher a conduzir um. Os sons incrédulos ganham nuances de reprovação.<br />Dirige-se à recepção e pede um quarto. Pergunta onde pode tomar uma bebida. Caminha como uma pantera... elegante, sinuosa, altiva de cabelo curto orgulhoso.<br />É impossível deixar de reparar nela. As senhoras e meninas sentadas nos banquinhos forrados a veludo lavanda olham indignadas e surpresas para a forasteira que lhes interrompeu o chá, os biscoitos de manteiga e a coscuvilhice de cidade pequena. Basta olhar de relance para o seu vestido de cetim pérola para se perceber que não está a usar espartilho... possivelmente nem está a usar nada, pelo menos é isso que acusam as duas minúsculas protuberâncias na zona dos seios.<br />Senta-se ao balcão e tira uma cigarrilha da malinha. Novamente sons incrédulos a ganhar nuances de reprovação...<br />Uma das senhoras sussurra em voz baixa que aquela mulher deve ser uma revolucionária daquelas que se julgam iguais aos homens em tudo. Vestia-se inapropriadamente para aquela hora da tarde e mesmo da noite, pois aquilo não eram trages de mulher decente. Talvez fosse mesmo uma sufragista! Uma rebelde! Como tal, não lhes merecia respeito nem qualquer tipo de atenção. As outras concordam com delicados acenos de cabeça mecânicos e continuam a sorver as infusões de cidreira e camomila.<br />Ele observa-a de uma ponta do salão. Analisa-a e calcula a probabilidades. Nunca tinha tido uma mulher assim, mas também, nunca tinha visto uma mulher assim. Volta a olhar para uma donzela morena e de ar pudico, escondida atrás de um leque de renda espanhola, que esteve a admirar por longos minutos e decide que esta estranha é uma desafio muito maior, mas também muito mais recompensador. Por mais senhora de si que ela pudesse ser, ainda nenhuma mulher lhe tinha resistido aos encantos. Esta não seria com certeza a primeira.<br />Dirige-se aquela visão de cetim branco enquanto afaga o bigode e passa um pequeno pente pelo cabelo untado de banha... a experiência é tal que o pequeno pente desaparece no bolso do casaco baratucho tão repentinamente como apareceu.<br />- A senhora é extremamente bonita, sabia?<br />Olha-a com um olhar sedutor e confiante... simpático, afável ao mesmo tempo que é apanhado com um choque por aqueles olhos azuis gelo... tão cristalinos que incomodavam.<br />- Sou? Quão bonita? - lança-lhe um olhar genuinamente inquiridor, falando com uma voz de veludo enquanto exala fumo de cigarrilha por entre uns lábios escarlate.<br />- Desculpe? ... pergunta ele confuso e meio atrapalhado.<br />- Quão bonita?<br />- Hmm... não sei. Muito.<br />Engole em seco e arrepende-se de não ter escolhido antes a rapariga morena com ares de noviça.<br />- Pois, não sabe. - sorri ironicamente.<br />Faz-se silêncio enquanto ela inala mais uma vez.<br />Vira-se para ele e pergunta se ele é casado. Ele pretende mentir, dizer que não... mas algo nos olhos dela, de um azul de gelo o obrigam a dizer a verdade.<br />- Sou. E a senhora... é casada?<br />- Tem dias.<br />Ela sorri de uma forma afectada, impossível de decifrar.<br />- Já ouviu falar num senhor chamado Sigmund Freud? - cruza e descruza as pernas, fazendo a com que as meias de seda soltassem faíscas prateadas.<br />- Não. - Atrapalha-se envergonhado.<br />- É um neurologista que está a causar bastante sensação pelas suas ideias a respeito do funcionamento da psique humana... sabia?<br />Ele não sabia. Ele mal conseguia escrever o seu próprio nome... não sabia nada de neurologistas, nem sequer o que era uma psique humana.<br />- Ele afirma que nós não temos um controle total sobre nossa mente... acredita nisto?<br />Está desconfortável, o colarinho aperta-o. Sufoca. O caçador torna-se a presa.<br />- Eu... eu não sei. Acho que cada pessoa faz o que quer... hm...<br /></div>- Acha mesmo? - inala.<br /><div style="text-align: justify;">- Hm... sim. Acho que sim. Só faço o que quero, sim.<br />- Costuma levar muitas mulheres debaixo dos lençóis com este género de abordagens?- diz ela com uma mudança de assunto tão brusca que o deixa atordoado.<br />Ele encolhe-se... quer responder que é um engano, que ela o está a interpretar mal... Mas novamente aqueles olhos azul gelo... profundos, inquisidores.<br />- Sim.<br />- Espera fazer o mesmo comigo? - olhar azul gelo.<br />Ele fica rubro de vergonha. Engole em seco. Não responde e crava os olhos no chão como se desejasse que um buraco se abrisse e o engolisse de um trago.<br /></div>- Hm... sim. - a verdade sai-lhe como um vómito incontrolável... como se aquelas palavras estivessem a sair da boca de outra pessoa... quer ir embora dali mas os seus pés não se movem, como se alguém os tivesse pregado ao chão.<br /><div style="text-align: justify;">- Costumam pagar-lhe? - lança-lhe uma nuvem de fumo para a cara... lentamente, semicerrando os olhos.<br /></div>- Hm... sim. Sim. Olhe, foi um prazer conhecê-la, mas tenho um compromisso... tenho de ir. - sentia-se cada vez mais um animal encurraldo ... só queria sair dali... fugir para longe.<br /><div style="text-align: justify;">Ela ignora a falsa desculpa que ele cospe e continua.<br /></div>- E elas sabem sempre que lhe pagam... ou ás vezes têm uma surpresa? - Divertia-se perante o embaraço e a impotência daquele homem.<br /><div style="text-align: justify;">- Ás vezes têm uma surpresa. - admite envergonhado.<br /></div>- Sentia aquela mulher a ler-lhe a alma e a mente... a percorrer todos os seus pensamentos, a tomar conhecimento de todos os seus segredinhos nojentos. A cabeça começa a latejar-lhe mas ele já desistiu de querer ir embora, como se fosse qual fosse o esforço que tentasse fazer para sair dali, ela jamais o permitira. Abandonou-se à vontade daquela estranha de pele branca e olhos azul gelo.<br /><div style="text-align: justify;">- Eu não costumo fazer caridade, sabe?<br /></div>- Desculpe? - não entende.<br />- Caridade... não tenho por hábito fazer caridade. - repete ela com um sorriso tépido enquanto pega nas chaves do quarto e lhe pousa a mão delicadamente numa perna. Está gelada e ele arrepia-se assustado.<br /><div style="text-align: justify;">Ela levanta-se, com o vestido de cetim pérola, que, apesar de solto lhe marcava todas as formas do corpo, descaradamente, obscenamente...<br /></div>Começa a afastar-se com o seu andar felino e as chaves do quarto a oscilar desoladamente enfiadas no dedo indicador.<br /><div style="text-align: justify;">- Siga-me.<br /></div>E ele seguiu-a.Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-18669781914317851082009-03-01T07:10:00.001-08:002009-10-12T15:38:14.624-07:00<div style="text-align: center;"><span style="font-weight: bold;font-size:180%;" >Charlotte</span><span style="font-size:180%;"><br /></span></div><br /><a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjJLuqH6qmHAUPZFmDu2dOTDVwgMtsuZH8Zh9a9xPxUhNHMJDC8GokVwyDuOT4Hf76GoWsdU3b1aXXketT20DkDqwlxfV5XYVkF6Y5ZLHkhaXac6nLlJaMbFXz76PadGj2HH14pctgmSys/s1600-h/Char.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 309px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjJLuqH6qmHAUPZFmDu2dOTDVwgMtsuZH8Zh9a9xPxUhNHMJDC8GokVwyDuOT4Hf76GoWsdU3b1aXXketT20DkDqwlxfV5XYVkF6Y5ZLHkhaXac6nLlJaMbFXz76PadGj2HH14pctgmSys/s400/Char.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5297126968290133090" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">Once upon a time, in a place far far away... there was a cute little girl... her name was Charlotte... and she had the most beautiful cristal marble...<br />And it was a purple magical marble...<br />Everytime she looked at her marble... she'd feel a great happiness overcoming her...<br />But she would have to be very careful... for everytime she'd look into the marble... she would shrink a little.<br />And, because of that, she was taking a long time to grow up...<br />When she was 13 years old... she was only 1.2m tall... and everyone would say: "What a strange girl.... She just doesn't grow..."<br />Then one day... a great tragedy happened... something so horrible... that was talked about for years to come...<br />Her parents died, in a strange incident no one was able to explain. They both drowned in a river close to their home... Why they went there... And why they both died, it remains a mistery even today.<br />And then Charlotte... was alone... without anyone... just her and her magic purple cristal marble.<br />To escape from her sadness, she started to look more and more into the magical cristal marble... And she begun to shrink more and more... Shorter and shorter... But to her, the happiness that overwhelmed her as she looked was worth it...<br />After some time little Charlotte was already the size of a lady bug, but she didn't care.<br />Then one day, the inevitable happened...<br />"I'll look just one more time" she said... "just one more time"...<br />And she did, and the marble... moved a little... and crushed her.<br /><br />And this was the tragic tale... of little Charlotte... and her magic purple cristal marble...</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-82298629605621066052009-03-01T07:09:00.001-08:002010-11-29T06:10:52.970-08:00O Engano da Inocência<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAeE1SjhyphenhyphenVKkocrsQaRSfrRthdOBfgOxsRI6zz3MMju2fZ-6bxOGTFWr01hZCu71otHkBjHmLwTjgoVSkzCCyYidhL9hCGxRc1uzYRv8KGrcRlR7hEpBrVDa__lZ3HL7RG7Y7sEELEN4w/s1600-h/death.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5291884774989805858" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAeE1SjhyphenhyphenVKkocrsQaRSfrRthdOBfgOxsRI6zz3MMju2fZ-6bxOGTFWr01hZCu71otHkBjHmLwTjgoVSkzCCyYidhL9hCGxRc1uzYRv8KGrcRlR7hEpBrVDa__lZ3HL7RG7Y7sEELEN4w/s400/death.jpg" style="cursor: pointer; display: block; height: 400px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 331px;" /></a><br />
<div style="text-align: justify;">Olhava pela janela observando o mar, no alto dos seus seis anos, com os braços caídos e de punhos cerrados... lábios entreabertos e com o fascínio típico da idade por tudo o que era desconhecido ou menos familiar.<br />
Era feia a menina. Por mais que a mãe lhe vestisse vestidinhos bordados, lhe atasse fitas de cetim nos cabelos ou lhe colocasse brincos de ouro e pérola, era indiscutível para toda a gente, que Leonor era de facto, uma menina feia. A própria criança possuía já a consciência semi-latente de que era feia.<br />
Tinha a pele macilenta e o cabelo demasiado espesso de um preto oleoso. Os olhos eram cinzentos e inexpressivos, como poços sem fundo, e nas suas mãozitas em forma de pequenas garras desajeitadas, segurava invariavelmente o seu brinquedo favorito, uma boneca de trapos vestida com um vestido vermelho tão berrante que fazia doer a vista.<br />
Na saleta, o sr. Simão lia o pasquim e fumava cachimbo.<br />
- Mais um assassínio! Ouviste Carlota? Mais um assassínio! Não apanham este demónio!<br />
A mulher sobressalta-se e leva as mãos á cabeça num movimento teatral.<br />
- Meus Deus! Mais um? Não leias essas coisas em frente à menina...<br />
- É bom que ela fique a saber como é o mundo! É o que te digo! Chamam-lhe já "O Eclético" por matar sempre de maneira diferente... Desta vez foi uma rapariga de dezanove anos!! Meus Deus! Tão nova ainda.<br />
- "O Eclético"?? Que piada de mau gosto! Meus Deus que horror! Um assassino à solta na provincia e ninguém lhe mete mão! Que horror, que horror! Não me contes essas coisas! Sabes que estou de esperanças... isso ainda faz mal ao bebé.<br />
E ia repetindo baixinho para si mesma, "que horror, que horror".<br />
D. Carlota ficava alterada durante horas sempre que alguém lhe mencionava qualquer tipo de violência... começava a transpirar como se estivesse a comer limões e normalmente acabava de cama com uma tremenda enxaqueca que as criadas tentavam atenuar com compressas mornas e sais. Como estava a pouco tempo de dar à luz o segundo filho que, esperava ela, viesse a ser mais agraciado pela beleza que Leonor, estes ataques davam-se com mais frequência e intensidade que o normal.<br />
Leonor, com a sua boquita de dentes retorcidos perguntou se quando se morria se poderia regressar mais tarde. Os pais respondem que não e proíbem-na de voltar a falar em mortes, que tal como é sabido, não é tema para criança tão pequena.<br />
Algumas semanas depois já se ouvem choros de bebé pela casa... uma linda menina de olhos verdes esmeralda desde o primeiro dia que nasceu. "Vai chamar-se Diana! Diana como a deusa romana!!", proferiu orgulhosamente o pai.<br />
Todas as atenções se voltam para aquele novo ser radioso.<br />
D. Carlota manda acender centenas de velas na Catedral como forma de agradecimento por a bebé ter nascido com aquela beleza tão doce e perfeita.<br />
Leonor... no abismo da sua fealdade e sob a sombra da beleza da irmã, remeteu-se a um canto de esquecimento e foi fechando o coração, tendo como única amiga a boneca de trapos de vestido garrido.<br />
O sr. Simão andava inchado de vaidade com aquela nova criança... mostrava-a a toda a gente com um orgulho transbordante que se realçava em cada palavra. "Que linda que é!! Já viu a minha filha?!? Que linda que é!"<br />
Leonor foi esquecida. Já ninguém se lembrava de lhe atar fitas de cetim nos cabelos, ou até de lhe fazer roupas e sapatos novos. Andava pela casa com vestidos apertados e de cabelos amaranhados, sufocada em sofrimento, rancor e tristeza. Passava tardes inteiras passeando à beira das escarpas que coroavam toda aquela zona costeira... hipnotizada por aquela altura fatal e pelas ondas violentas.<br />
Um dia, aproveitando um dos raros momentos em que Diana é deixada sozinha, entra no quarto da irmã e fica a contemplá-la no berço enquanto dormia. Os seus olhos estão vazios suportando uma expressão indecifrável. Pega na pequena boneca de trapos e enquanto uma lágrima lhe desliza pela face, coloca-a no berço entre a mantinha rendada. Fica ali assim, em pé, em agonia, contemplando os caracóis dourados da menina.<br />
Na manhã seguinte a casa acorda em alvoroço. Ouvem-se gritos e correrias. O berço está vazio e ninguém sabe da bebé!<br />
D. Carlota grita entre ataques de desfalecimento e o marido, completamente descontrolado berra com toda a gente, acabando mesmo por dar um estalo à ama da menina que era suposto nunca a perder de vista. "É uma bebé senhor. Não anda... não pode ter ido a lado nenhum. Alguém a levou durante a noite... eu estava a dormir, não ouvi nada. Oh Deus!", a ama desfazia-se em desculpas. Atónita, desesperada... não entendia.<br />
Pela primeira vez em meses, o sr. Simão repara na filha mais velha, "A tua irmã Leonor?? Viste a tua irmã? gritos, "Viste a tua irmã Leonor?". Ela diz que não... que não sabe... que não viu e baixa a cabeça. Um sorriso!! Terá visto um sorriso?? O sr. Simão fica petrificado... terá Leonor sorrido? Pega na menina começa a abaná-la violentamente. "A tua irmã?? Tu viste-a??" ... ela repete que não... que não a viu e começa a chorar.<br />
D. Carlota arranca-a das mãos do marido. "Deixa-a, coitadinha!! Não vês que é apenas uma menina? Como poderia ter levado a bebé?!? Deixa-a!"<br />
Leonor é mandada para o quarto... segue cabisbaixa, de braços caídos. Olha por cima dos ombros como se receasse estar a ser seguida, e nesse momento o sr. Simão julgou ver novamente aquele sorriso. Recusa a ideia... o pânico estava a levá-lo a ver coisas... foi impressão, com certeza. Não, Leonor não poderia ter sorrido. Como poderia sorrir perante o desaparecimento da pequenina? Não, não... delirava. As crianças não têm uma maldade assim tão diabólica.<br />
Começam buscas e toda a propriedade é revistada palmo a palmo... não há sinais da bebé. Vão até à linha das escarpas e continuam numa correria urgente... uma multidão de gente apreensiva e em silencio percorre toda a área.<br />
Ouve-se um grito gelado.<br />
- Ali!! Ali em baixo!!! Naquela pequena enseada! O que é aquilo?<br />
Todos olham petrificados na direcção indicada. Lá em baixo, pareciam caídas duas bonecas no areal. Uma mal se via, tal não era a altura, mas a segunda realçava-se devido ao seu vestido vermelho garrido.<br />
Cai a noite derrepente, como que toda a escuridão do universo tivesse esperado aquele momento para se afundar sobre a terra.<br />
O sr. Simão gela perante a visão surreal... lá em baixo, naquela língua de areia está Diana com a boneca de Leonor ao lado.<br />
Ferve de raiva, ferve de dor, de angustia e de horror. Leonor matou a irmã... levou-a até ali a atirou-a para o abismo. Agora entende que os sorrisos eram reais e não uma alucinação.<br />
Várias pessoas descem até à pequena enseada e trazem ao sr. Simão, no alto da escarpa e hirto de terror, o corpinho da bebé sem vida. Olha para o rosto de Diana... os anéis dos seus cabelos estão molhados pela maresia e os seus lábios estão da cor do azul da morte.<br />
Caminham de volta à casa, o pai, de coração agora morto, na dianteira, leva a menina nos braços e nos olhos o mais puro dos ódios.<br />
D. Carlota vê pela a pequena multidão chegar... vê o marido com a menina sem vida nos braços e nesse preciso momento, enlouquece.<br />
O sr. Simão ordena num berro que todos se vão embora... vozes contestam, "mas vocês não podem ficar sózinhos neste momento... ouça, seja razoável..."<br />
-Saiam!!<br />
Grita num úivo saido dos infernos.<br />
Avança para o quarto de Leonor, cego pela raiva e num pontapé deita a porta ao chão. "Matáste a tua irmã! Como pudeste?? Era apenas uma bebé Leonor!! Matáste a tua irmã!"... Leonor grita que não, que não foi ela, que não sabe de nada... "Matáste-a! Encontramos a tua boneca ao lado dela! Matáste-a!"... avança para a menina agora mais feia que nunca... com o rosto contorcido de horror... um animal encurralado, "Papá, não!"<br />
Atira-a para a cama e sufoca-a com uma almofada até o pequeno corpo deixar de se contorcer.<br />
Fica um pouco a olhar para a filha morta, aliviado, vingado, em paz.<br />
Lá em baixo, ouve-se a porta da entrada abrir num estrondo. Ouve a voz de um dos empregados a berrar desesperado, "Sr. Simão!!! Sr. Simão!!! Não imagina!! Oh Deus... Sr. Simão!!! Apanharam o assassíno! Apanharam-no! Ele confessou ter assaltado esta casa durante a noite e ter raptado uma bebé que depois atirou de uma escarpa!! Oh Sr. Simão!!"</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-61796848520014287672009-03-01T07:08:00.001-08:002009-10-13T02:54:07.762-07:00Atalhando a vida...<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgabEv4f1LgNPpoD4dd9-Ao7IeJN28YyPyDjqJ1bgfur96uIuAmYKSOn-frD2jv3Or0ebljupBAxbP6awR4MLaucNniwhxECmC7JqTodyY3QmkM_SryIr0-sD1QCVqPe30NJE75y-wY5G4/s1600-h/51-1.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 218px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgabEv4f1LgNPpoD4dd9-Ao7IeJN28YyPyDjqJ1bgfur96uIuAmYKSOn-frD2jv3Or0ebljupBAxbP6awR4MLaucNniwhxECmC7JqTodyY3QmkM_SryIr0-sD1QCVqPe30NJE75y-wY5G4/s400/51-1.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5291126214059103746" border="0" /></a><br /><br /><br /><div style="text-align: justify;">Sente-se sufocar pelo colarinho. Ajeita-o um pouco tentando em vão diminuir o desconforto. As mãos e os joelhos tremem-lhe descontroladamente fazendo lembrar os movimentos de uma marioneta, que na sua qualidade de marioneta, não tem vontade própria.<br />A secretária fala numa voz austera:<br />- Já pode entrar.<br />Levanta-se da poltrona pensando que deve ser esta a sensação de uma vitima em direcção ao cadafalso.<br />O patrão, no seu impecável fato de linho egípcio, olha-o como um touro prestes a fazer uma investida... o facto de estar a fazer um esforço brutal para não se descontrolar só o tornava ainda mais assustador.<br />- A situação é muito grave!<br />Rosna o patrão.<br />- Eu sei... peço-lhe imensa desculpa. Jamais se voltará a repetir. Fugiu-me ao controle...<br />- Os nossos clientes jamais poderão saber disto! Seria um escândalo para o Banco. A confiança na instituição seria irremediavelmente abalada! Onde é que você estava com a cabeça?<br />Aqui já toda a compostura calculada o tinha abandonado, berrando agora em uivos que ressoavam por todo o gabinete.<br />- Eu... eu lamento. É que tenho tanta divida de momento e a bebé nasceu com aquele problema, como sabe... precisa de tratamentos constantes... e a minha mulher está novamente grávida... eu... Não se voltará a repetir.<br />- Milhares!!! Milhares perdidos ao jogo! Milhares que não eram seus! Milhares que o Banco vai ter de repor!! Como é que vocês pode ter feito uma coisa destas? Depositei tanta confiança em si!<br />- Eu sei... eu... não se voltará a repetir.<br />- Pare de repetir isso!! Seu estúpido!! Saiu-me cá uma besta!! Só estou aqui a falar consigo porque tenho o seu sogro em grande consideração. Se não fosse por ele, não só o teria despedido imediatamente como teria também chamado a policia!<br />- Eu... não se voltará a...<br />- Como é que um homem que ocupa um cargo tão importante na sociedade e que toda a gente tem em tão alta conta pode ter como um genro um paspalho como o senhor?!?<br />- Não imagina como estou arrependido... a minha situação é desesperada! Eu sempre julguei que...<br />- Cale-se!!! Cale-se e nunca mais me apareça à frente!! Imbecil!!!<br />Sai de cabeça baixa, derrotado. O chão vai-lhe fugindo dos pés enquanto caminha. O peso do mundo sobe os seus ombros.<br />Entra no carro... apoderado pela angustia, pelo desespero, pelo medo de contar à mulher que não têm nada... que vão perder a casa e o carro e que tem mais dividas de jogo do que as que alguma vez poderá pagar.<br />A ideia em si é-lhe insuportável... o terror sufoca-o e arrasta-o para o fundo de um oceano negro e pegajoso.<br />Vai passando pelas ruas daquela cidade cinzenta e fria.<br />Começa a cair uma chuva miudinha que acaricia o pára-brisas.<br />Olhares de estranhos...<br />Olhares acusadores...<br />Dedos apontados...<br />Delira empapado em suor.<br />Chega aos limites da cidade e continua por estradas secundárias que não conhece... vai alienado e sem destino tentando desesperadamente perder-se.<br />Já não há pessoas, ou casas ou outros carros... Pára numa berma e contempla um campo em pousio. Sente uma enorme paz ao olhar para ele.<br />Sai do carro e caminha em direcção aos campos sem fim... avança sentindo uma enorme paz que o invade a cada passo que dá.<br />A noite começa a cair... sem pressas.<br />Continua calmo e decidido.<br />Nunca mais ninguém o vê.</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-63449079446231594952009-03-01T07:06:00.001-08:002010-05-01T03:50:54.300-07:00Da Alma...<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCQ5T400RO9AzlmYXknyFfD66yO36pyxxEKaG1JA4M_NFsb9miWSQN4_0X0HJ1GvIQS4Hm84S9VKuV2ad51qjZwfLR5laJkXww8TndV8LQxsiQKVlJ7hu6m5tUr-uXHGHx1SVk4yk1piA/s1600-h/nature.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5271231846590918258" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjCQ5T400RO9AzlmYXknyFfD66yO36pyxxEKaG1JA4M_NFsb9miWSQN4_0X0HJ1GvIQS4Hm84S9VKuV2ad51qjZwfLR5laJkXww8TndV8LQxsiQKVlJ7hu6m5tUr-uXHGHx1SVk4yk1piA/s400/nature.jpg" style="cursor: pointer; display: block; height: 283px; margin: 0px auto 10px; text-align: center; width: 400px;" /></a><br />
<br />
<div style="text-align: justify;">Entra na taberna de mão dada com o filho de dois anos. Segue, segura de si e indiferente aos olhares lascivos dos poucos clientes que se embebedavam pelas mesas ainda antes da hora do almoço. Caminha altiva apesar de estar apenas calçada com uns tamancos de madeira tosca e um velho vestido de xadrez surrado. Quem a visse iria pensar que se tratava de uma rainha caída em desgraça, desprovida de bens, mas não do seu orgulho.<br />
O frio quase não deixa respirar… aperta o cachecol ao menino e pede ao taberneiro dois caramelos. Não pode comprar mais. Pensa na malga de leite que não tomou de manhã para poder comprar a guloseima ao filho e sorri. Tem fome, mas ela afasta-a com o prazer de desgrenhar o cabelo ao menino com uma pequena risada. Pensa no marido que partiu há dois meses para as minas à procura de encontrar sustento para a família e sente um aperto de saudade.<br />
Está assim, encostada ao balcão e perdida nos seus pensamentos quando alguém entra na taberna. O forasteiro traz com ele o frio da rua, a neve empurrada por um vento descontrolado e a solidão das cordilheiras geladas e de escalada impossível que rodeiam toda a povoação.<br />
Tem um gorro de lã na cabeça, um casacão forrado com pele de marta e umas botas de cabedal feitas por medida, encomendadas no melhor sapateiro da capital.<br />
O desconhecido pousa uma mala com os utensílios de trabalho. Esquadros, fitas métricas e mapas que está a usar para cartografar a região. O seu olhar fixa-se magnetizado na silhueta da mulher.<br />
<br />
Ela sente-o. Sente o sangue dele a pulsar nas suas próprias veias. Vira-se tão lentamente que parece que nem se chega a mover. Os olhos dos dois encontram-se, perdidos e incrédulos. Ambos se sentem como que fulminados por um raio.<br />
Algo os trespassa… primeiro a certeza de já se terem visto antes, tal não é a familiaridade das formas. Mas ambos rejeitam essa hipótese passado uns segundos. Nunca se viram, mas conhecem-se. Conhecem-se desde o início dos tempos… almas antigas que vagueiam procurando encontrar-se uma à outra.<br />
Ambos os corações batem velozes e confusos.<br />
Ela pega apressada no filho, com os joelhos a tremerem-lhe e os olhos marejados de lágrimas e corre para o exterior de encontro à neve que os fustiga, impiedosa e cruel. A criança caminha aos tropeções tentando acompanhar a mãe. Volta-se para o filho subitamente: “Olha amor, a mãe vai levar-te a casa da avó, está bem?”. A criança acena alegremente. Em casa da avó há sempre uma lareira acesa e pão. Muitas vezes está duro, mas é pão, e pão é sempre bom… e ás vezes, muito raramente, a avó até tem mel!<br />
Ele volta a pegar na mala e sai atrás dela, não sabe porque a segue, apenas que tem de a seguir, e que tem de a ter, pois ela é dele. Gira com o polegar a aliança de casamento, e pensa na esposa e nas duas filhas que ficaram na capital à espera do seu regresso.<br />
Segue-a por ruas sinuosas e vê-a chegar a uma velha casa de madeira e a bater uma porta que se abre. Empurra a criança suavemente para dentro, dando uma explicação inaudível á figura que não chega a sair à rua e prossegue caminho.<br />
Sempre sem parar, volta-se ligeiramente, consciente de que ele a segue e o seu corpo começa a aquecer de tal forma que parece acometido por ataques de febre… e ali, a mais de trinta passos de distância, sente que o dele também fervilha.<br />
Entra numa praça larga, deserta e morta pelo Inverno… canteiros desnudes e uma fonte de água congelada. Pára a meio e volta-se para trás, decidida e corajosa. Ele abranda o passo mas continua a caminhar na direcção dela. Os seus olhares fixam-se em concordância… os seus corpos ardem com um querer maior que qualquer força ou que qualquer consciência.<br />
Quando chega por fim ao pé dela, ficam parados respirando profundamente, sem conseguirem desviar o olhar um do outro… os seus corpos de tão quentes, aquecem o resto da praça, e da pequena fonte de granito começa a brotar uma água cristalina, e em todas as varandas nascem subitamente pequenas flores nos vasos que só as esperavam na Primavera.<br />
Não trocam uma palavra, nem precisam de o fazer. Cada um conhece a essência do outro até ao mais profundo do seu ser.<br />
Ela recomeça a caminhada e ele segue-a uns passos atrás… Pensa no marido longe e no filho que acabou de deixar em casa da mãe. Eles fazem parte desta sua vida, ama-os e daria a vida por eles, mas este homem que a segue está muito acima de qualquer coisa terrena. Ele é ela, ela é ele… ambos são o mesmo… completam-se. O sentimento que os une já existe há mais tempo que o próprio conceito de tempo.<br />
Chega a sua casa, uma modesta cabana de janelas repletas de frinchas e por onde o vento entra implacável… ele segue-a e entra na divisão enquanto ela lhe segura a porta, e deixa cair a sua mala no chão pesadamente.<br />
Ele agarra-a por trás violentamente, por aquela cintura frágil que treme nervosamente com a antecipação… beija-lhe o pescoço enquanto afasta as madeixas cabelo negro que cheira a flores, ternura e fumo. Ela vira-se para ele, com urgência, com desespero… mergulha naquele peito quente e tão familiar… ambos surpresos consigo próprios, mas resignados, pois sabem que já se encontraram assim em muitas outras reencarnações, por vezes por breves instantes, por vezes por vidas inteiras.<br />
Amam-se incansáveis, deitados no chão de madeira carunchosa. Amam-se sempre sem trocar uma única palavra. Amam-se com a fatalidade da separação terrena. Choram lágrimas de alegria misturadas com lágrimas de tristeza, numa sinfonia agridoce e caótica enquanto se abraçam, se apertam, se acarinham…<br />
Lá fora o vento parou... e a neve cobre tudo placidamente como uma cúmplice expectadora.<br />
Despedem-se por fim, com os lábios dormentes de tanto beijo, sem palavras nem lamentos pois sabem que as suas almas se voltarão a reencontrar na próxima vida e em todas as outras… até o fim dos tempos.</div><br />
<i>Participação para a <b><a href="http://fabricadeletrasepalavras.blogspot.com/">Fábrica de Letras</a></b> 01/05/10</i>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com19tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-5600458085503503622009-03-01T07:05:00.001-08:002010-01-06T14:46:46.745-08:00Beleza<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhy9vS6RK-bS_JOeZMlZLs2UITDl7r1QU0Tz8DYuu-HACFqJ7O-qKUxoPPIVym80jWq7ZO6FpINB0CDlJasmodI5IepJRwzSdCA_KwFR_yfp-meNQJ5yLNZ8fWMaiKr8HT_QRIZIcTaWcA/s1600-h/Goddess%2520Mirror.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhy9vS6RK-bS_JOeZMlZLs2UITDl7r1QU0Tz8DYuu-HACFqJ7O-qKUxoPPIVym80jWq7ZO6FpINB0CDlJasmodI5IepJRwzSdCA_KwFR_yfp-meNQJ5yLNZ8fWMaiKr8HT_QRIZIcTaWcA/s400/Goddess%2520Mirror.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5245594292762343874" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">Nasceu durante um eclipse lunar. No preciso momento em que a noite ficou mais escura que nunca, ela sai de dentro de sua mãe.<br />Dão-lhe a graça de Constança. Desde a mais tenra idade que se adivinhava que Constança ia ser possuidora de uma beleza extraordinária e por volta dos doze anos, esse facto tornou-se inegável. Era a mais nova de três irmãs e sem dúvida a mais bela. As suas irmãs no entanto não lhe tinham qualquer inveja, antes pelo contrário e ficavam consternadas na sua presença, como se aquela beleza as desconcertasse.<br />Os próprios pais não sabiam porquê, mas a beleza da filha em nada os aprazia. Muitas vezes surpreendiam-se a si próprios a olhá-la como se fosse possuidora de uma qualquer malformação. Envergonhavam-se de tais sentimentos, mas não conseguiam evitá-los.<br />O próprio padre da paróquia, durante um dos sumptuosos almoços de domingo que a família costumava dar, observou “Uma beleza assim é uma maldição!", o pai de Constança é atravessado por um calafrio e a mãe benze-se, desconcertada.<br />Constança era inteligente e perspicaz, destacava-se das irmãs não só pela beleza mas também pelos imensos talentos que possuía. Tocava piano e harpa de forma excepcional, falava fluentemente três línguas, sabia bordar briosamente, cozinhava pratos deliciosos e pintava quadros a óleo de paisagens magníficas e improváveis que rebuscava na sua imaginação através de descrições que lia em livros.<br />Era delicada de maneiras e o seu carácter era firme mas dócil.<br />Normalmente, pessoas assim tão belas e talentosas estão rodeadas por uma aura susceptível de atrair os outros. Estranhamente, isso não sucedia com Constança. Não conseguia alcançar os outros, grande parte devido ao facto de outros não quererem ser alcançados por ela. Vivia sozinha pelos cantos, mendigando atenção e carinho, porém, nem o cãozinho de companhia da família queria nada com ela.<br />Corriam pela cidade rumores de que ela levitava quando queria. Havia quem dissesse que ela, por debaixo das suas roupas rendadas tinha a pele translúcida, que caminhava nua e em transe pelos bosques nas noites de lua cheia e que não comia nunca, pois o seu corpo não necessitava de nenhum alimento terreno.<br />Desta forma, Constança sentia-se só, apesar de viver rodeada por muita gente, angustiada pelo desejo de calor humano, de um toque, ou de um sorriso que não fosse de misericórdia mas sim de afecto. Ela era de facto, aprisionada na sua beleza, o mais infeliz dos seres.<br />Quando chegou a idade de casar, ela alegrou-se. Não importava com quem a casavam, ela só queria alguém que a quisesse a ela também. Mas todos os supostos pretendentes que a conheciam durante os bailes e festas que os pais davam para o efeito, ficavam abismados com a sua beleza e acabavam por desviar os olhos como se queimasse. Saíam sempre apressados, balbuciantes, envergonhados.<br />Constança sente o seu peito a esmaga-la cada vez mais de dia para dia. Não aguenta a solidão que parecia ser água que lhe entra pela boca e pelo nariz, afogando-a, matando-a, levando-a para um fundo escuro e frio com uma âncora atada à cintura.<br />Um dia o mais absoluto inesperado aconteceu. Ao sair da missa de Domingo de braço dado com o pai, esbarra num rapaz que nunca tinha visto antes. Vinha a comer uma maçã distraído e não tinha reparado nela. Ela olha-o com um ar inquiridor, mas ele apenas sorri, com o sorriso mais aberto e franco que ela já tinha visto na vida. Ele leva a mão ao bolso e puxa de outra maçã: “Quer uma?”, pergunta ele com um ar atrevido. Constança sente um calor subir-lhe o corpo e as suas faces incendeiam-se como duas tochas. Estava apaixonada.<br />Por qualquer motivo que ela não entendia, aquele rapaz não parecia perturbar-se com a sua beleza. Não a evitou, nem fugiu… pela primeira vez, Constança sentia-se uma rapariga normal.<br />O pai, abismado e com o coração cheio de esperança, tratou de saber tudo a respeito do rapaz na expectativa de casar finalmente a filha.<br />Descobriu assim que o rapaz era um simples pastor que se tinha mudado para uma das aldeias dos arredores. Não se deixou melindrar pelas suas humildes origens e tratou de fazer tudo ao seu alcance para facilitar o namoro.<br />Constança e o pastor começaram a encontrar-se religiosamente duas vezes por semana. Ela andava maravilhada, embriagada pelo carinho e atenção daquele rapaz. A sua maneira de ser, desprendida e pura arrebataram-na por completo. Ele por seu lado, amava-a docilmente pela sua inteligência e moral, apesar de não a achar muito bonita.<br />O casamento é marcado para Dezembro desse ano. Os noivos rejubilam. E quando Constança afirma que pretende viver numa casa nos bosques para que possa estar sempre perto do marido, a sua família e toda a cidade rejubilam também, felizes por se livrarem daquela anormalidade em forma de beleza.<br />Dois dias antes do casamento, enquanto guardava as ovelhas, o pastor cai de uma pequena ravina, partindo o pescoço num pequeno som de galho a estalar.<br />A notícia chega a Constança algumas horas mais tarde. Fica atordoada, sem acreditar. Grita, amaldiçoa, faz os punhos em sangue de tanto bater com eles na parede. Nessa noite, deita-se com o olhar vazio e com um buraco sem fundo no sítio do coração.<br />Na manhã seguinte não acorda. Encontram-na deitada, com o seu vestido de noiva, de sorriso etéreo e pele branca como a cal. Quem entrava no quarto era obrigado a desviar o olhar. A beleza de Constança tinha adquirido novos contornos, tinha-se agudizado tornando-se quase agressiva e obscena para quem olhava.<br />A cidade respirou de alívio assim que a primeira pazada de terra é atirada sobre o caixão… porque uma beleza assim era uma aberração da natureza… porque uma beleza assim desafiava o equilíbrio do universo.<br /><br /><span style="font-style: italic; font-weight: bold;">Reciclado</span> para <span style="font-size:130%;"><a style="font-weight: bold; font-style: italic;" href="http://fabricadeletrasepalavras.blogspot.com/?">Fábrica de Letras</a></span> a 1 Janeiro de 2010 - "Beleza"<br /></div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com14tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-40865941093558497962009-03-01T07:02:00.000-08:002009-10-13T02:55:12.664-07:00Requiem Contemplativo<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHAuRQCPwK2ZrKre3nexmB6757QQKXFB5MevtjLF2nliivWQcp5wUc_DivXcWhizoPS1-tyLkDvWAAYOlCnggWrUF8RhVRPVi4xCIZUkNropwjd3rFF_dAitamK_-Ohan-cjepRtHE7kY/s1600-h/darkdruidess.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5174738568528125186" style="margin: 0px 10px 10px 0px; float: left;" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHAuRQCPwK2ZrKre3nexmB6757QQKXFB5MevtjLF2nliivWQcp5wUc_DivXcWhizoPS1-tyLkDvWAAYOlCnggWrUF8RhVRPVi4xCIZUkNropwjd3rFF_dAitamK_-Ohan-cjepRtHE7kY/s200/darkdruidess.jpg" border="0" /></a><br /><br /><div align="left"><br /><div style="text-align: justify;">Percorro as ruas ao sabor do vento frio de Inverno... um vento capaz de congelar pensamentos e corações...</div></div><br />Olho em redor... vejo pessoas caminhando nos passeios... tantas pessoas... cada uma fechada no seu próprio pequeno universo...<br />Pergunto-me no que estarão a pensar... não parecem estar a pensar em nada. Olhares vazios, sem fundo...<br />O vento frio levanta-se mais forte castigando os caracóis do meu cabelo... obriga-me a semicerrar os olhos e a alma.<br />Continuo a caminhar sem destino... vagamente.<br />Continuo a olhar para as pessoas... vagamente.<br />Imagino a morte de cada uma delas... Tudo é tão efémero... tão passageiro...<br />Daqui a cem anos nenhuma delas estará viva. Será que sabem isso?? Oh, eu sei que sabem! Mas será que têm ESSA consciencia? Passam-me diante dos olhos centenas de funerais, milhares de lágrimas...<br />Eu... eu daqui a cem anos não estarei viva.<br />Daqui a cem anos já ninguem se lembrará de que eu alguma vez existi...Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-33130079387295088042009-03-01T07:00:00.000-08:002009-10-13T02:55:35.203-07:00Subjugação<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBxEFrVeOB2oHEzzk3D8-FWf2-lMTpvoYUgewhXInM2JTQBAApLptKxbRZSplW0iBXhu9ulryUUbb85v1a_w7Kirg1JbClxFrVSIfE46pGnGjyCYOPiabIKLZ3q5CQWCAUH5jD_V9NfmM/s1600-h/kitchen.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgBxEFrVeOB2oHEzzk3D8-FWf2-lMTpvoYUgewhXInM2JTQBAApLptKxbRZSplW0iBXhu9ulryUUbb85v1a_w7Kirg1JbClxFrVSIfE46pGnGjyCYOPiabIKLZ3q5CQWCAUH5jD_V9NfmM/s320/kitchen.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5238920210533247410" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">Logo depois de casar, largou o emprego para se dedicar inteiramente á casa e ao marido. Vivia para lhe agradar, para o servir, fazendo tudo para se tornar indispensável.<br />Obcecada pela perfeição e por aquele amor, preparava cada refeição como se fosse um banquete, cada camisa que passava era tratada como uma escultura de arte, lavava, esfregava, perfumava, floria… A casa estava sempre num brio tal, que parecia que ninguém lá habitava.<br />O marido era incólume a toda esta dedicação e afecto. Olhava para tudo friamente, nunca satisfeito com nada e sem lhe dirigir em vez alguma uma simples palavra de apreço. Para ele as camisas tinham sempre as golas mal passadas, as calças tinham sempre os vincos tortos, as gavetas estavam sempre em desordem, a comida estava sempre salgada ou insonsa e os bolos ficavam sempre muito enqueijados ou então muito secos.<br />Ela encolhia-se perante a dureza dos seus comentários… e o seu coração foi mirrando ao mesmo tempo que os anos foram passando.<br />O quadragésimo aniversário do marido estava a chegar e ela empenhou-se em tornar a ocasião mais especial que nunca.<br />Comprou um lindo vestido de seda vermelho para a ocasião e passou duas horas no cabeleireiro a dar uma nova vida aos seus longos cabelos dourados.<br />Preparou o prato favorito dele, Cordeiro no Forno, medindo cada condimento á milésima de grama. Fez um bolo de quatro camadas com um talento tal, que parecia feito por um pasteleiro profissional. Pôs uma toalha branca bordada na mesa com um jarro de flores ao centro e castiçais com velas em cada canto. Com as economias de quase um ano, comprou um magnífico relógio para oferecer ao marido, que segundo as palavras do próprio relojoeiro, se travava de “uma maravilha da tecnologia”.<br />Tinha demorado todo o dia a preparar aquele jantar para que ficasse perfeito… está exausta mas feliz, contente com o resultado obtido.<br />Sente o marido chegar e olha-se mais uma vez ao espelho… gosta do que vê e apressa-se a ir ao seu encontro.<br />Olha-o com uma devoção de cachorrinho assim que ele entra na sala. “Parabéns amor!” e estica-se para lhe dar um beijo que ele aceita distraído ao mesmo tempo que pendura o casaco. Olha para ela, “Que roupa é essa? Sabes que o vermelho te faz mais gorda!”. Ela crava os olhos no chão, envergonhada. Talvez faça. Sim, é claro que o vermelho a faz mais gorda. Que tonta foi em ter escolhido um vestido daquela cor.<br />Ela entrega-lhe o embrulho com um olhar tímido mas ao mesmo tempo seguro e com a alegria imensa da certeza de que ele vai adorar o presente. Ele desembrulha-o desajeitadamente: “Ah, um relógio! Sabes que já tenho três. Não havia qualquer necessidade de me teres comprado outro.” Ela pede desculpa e sorri nervosamente, tentando disfarçar a desilusão.<br />“Vem jantar. Fiz o teu prato favorito! Tens fome?”, ele responde que nem por isso… lanchou tarde…<br />Senta-se á mesa algo entediado. “Com estas velas aqui não consigo ver a televisão como deve de ser. Tens cada ideia mais disparatada! Tira-as da mesa se faz favor” Ela tira. “Estas flores são muito perfumadas! Mas que chatice! Não vou conseguir comer com este cheiro! Tira-as daqui se faz favor”. Ela tira.<br />Olha de relance para o bolo de aniversário pousado em cima do balcão da cozinha. “Aquilo é cobertura de morango? Sabes que detesto morango!”. Ela engole em seco, afogando as lágrimas, “Eu raspo a cobertura então” diz com um esgar de dor disfarçado de sorriso. Não sabia que ele não gostava de morangos, aliás, podia jurar que já o tinha visto comê-los por diversas vezes. Os músculos retesam-se e o olhar fica sombrio.<br />Pousa a travessa de cordeiro na mesa, da qual emana um cheiro delicioso e serve-o. Ele leva uma garfada á boca: “Está salgado!”. Nesse momento algo se quebra dentro dela, como uma corda que é esticada ao limite… essa frase fica a ressoar-lhe dentro da cabeça… “está salgado… está salgado… “<br />Levanta-se, como que em estado de hipnose, abre a gaveta dos talheres e pega na faca de trinchar. “Olha para mim!”, ordena ao marido. Ele volta-se, surpreendido pelo tom autoritário da voz dela. Ela levanta a faca no ar e com uma precisão cirúrgica crava-a na jugular. O sangue jorra em repuxo e ela cai, ficando deitada de costas enquanto o seu sangue quente se espalha sobre os imaculados azulejos brancos.<br />O marido fica sentado á mesa, olhando-a em silêncio enquanto a vida da mulher se apaga. Não move um músculo, apenas observa placidamente.<br />Volta-se para a comida e leva mais uma garfada á boca. Surpreende-se. Está de facto uma delícia! Come avidamente e repete duas vezes. Levanta-se da mesa e dá uma passada larga por cima do corpo da mulher, tentando evitar a cada vez maior mancha de sangue e dirige-se ao bolo. Come uma fatia. Deliciado, come outra.<br />Vai até ao quarto para mudar de roupa. Não quer receber a polícia com as roupas no típico desalinho do fim de um dia de trabalho. De todas as calças e camisas alinhadas na perfeição, escolhe duas peças, ”Sim sim… impecável… hm hm”<br />Volta para a cozinha e olha mais uma vez de relance para o corpo sem vida da mulher naquele charco de sangue.<br />Pega no telefone e disca um número, “Estou, D. Lurdes? Ouça, não vai acreditar no que a sua filha acabou de fazer…”</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-35094982208584655342009-03-01T06:56:00.000-08:002009-10-13T02:56:00.047-07:00O Jardim<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimLpikUuH2chyrKY0zc6QqHvdD-GrBxEiE3_CZecY9h9JwuUQ96_i3H7JVwbaViBnp0xnAt-XkoN40Gu2zqBnrsF3jKtP8TShJ3O0XRL-gOBtmG9VEa5ZypgR4bKvQyuN0FQHJxXz9bUY/s1600-h/Rackham1906.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer; width: 400px; height: 361px;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEimLpikUuH2chyrKY0zc6QqHvdD-GrBxEiE3_CZecY9h9JwuUQ96_i3H7JVwbaViBnp0xnAt-XkoN40Gu2zqBnrsF3jKtP8TShJ3O0XRL-gOBtmG9VEa5ZypgR4bKvQyuN0FQHJxXz9bUY/s400/Rackham1906.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5308234007212745922" border="0" /></a><br /><div style="text-align: justify;">O Dr. Afonso vivia desde sempre naquela pequena mas nobre cidade, escondida por trás de montes inóspitos e esquecida do resto do mundo. Todos os habitantes viviam segundo as mais rígidas regras de moral e decoro e qualquer escândalo pessoal que pingasse para o conhecimento do publico consternava toda a população, enquanto que, paradoxalmente, fazia as delícias de qualquer lanche da tarde, em que grupos de amigas se reuniam para comerem pastelinhos com creme entre chávenas de chá perfumado e gargalhadinhas maliciosas.<br />Quatro anos antes, o Dr. Afonso sobrevivera ao escândalo social e ao repudio geral quando a sua esposa Violeta o abandonara levando consigo ambos os filhos do casal. Rosa de cinco anos e Jacinto de dois. Desapareceram os três da noite para o dia e ninguém duvidava que D. Violeta tinha fugido para o estrangeiro com um qualquer amante secreto.<br />O facto de ser de famílias nobres e antiquíssimas garantia ao Dr. Afonso o status de partido muito requisitado pelas mais belas donzelas da cidade. Tanto não fosse pelas suas origens, a sua enorme fortuna teria bastado.<br />No entanto ele parecia muito pouco ou nada interessado em voltar a casar. Isolou-se no seu palacete secular de onde recusava amavelmente os convites para eventos sociais e de onde só saía para atender pacientes no seu consultório no centro da cidade. Nada dava mais prazer a este homem que sentar-se num dos varandins da casa enquanto contemplava o seu magnífico e magistral jardim que florescia de forma frondosa e inexplicável e em que as espécies de flores e plantas eram tantas que se ficava inebriado só de olhar.<br />Tinha enfrentado o desaparecimento da mulher com uma altivez e uma compostura surpreendentes e todos lamentavam a sorte daquele homem de bondoso, que trabalhava apesar de não precisar de o fazer e que a maioria dos pacientes que tinha eram pessoas de parcas posses ás quais não cobrava consulta, salvando assim muitas vidas naqueles tempos em que as doenças fomentavam e as hipóteses de cura eram escassas.<br />Certo dia chega á cidade uma nova professora primária, a D. Íris, com sua filha Margarida de quatro anos. Ainda não tinha trinta anos e já era viúva, tendo ficado nessa condição quando o marido partiu para o Brasil na esperança de voltar com fortuna, mas que morreu no próprio dia em que chegou ao país, trespassado pela seta de um índio foragido e selvagem.<br />De uma beleza simples mas extraordinária, a D. Íris era de gostos requintados mas sem exigências e dona de uma personalidade dócil e de grande sentido moral.<br />O Dr. Afonso reparou imediatamente nela, e ela, por sua vez, reparou imediatamente no bondoso médico.<br />Eram de personalidades compatíveis e de gostos similares. Assim que se conheceram tornaram-se inseparáveis. Três meses após se terem visto pela primeira vez, ficaram noivos e um ano depois estavam casados. No dia do casamento o que mais se comentava entre sussuros era o facto do quanto D. Íris era parecida com a desaparecida D. Violeta. A pequena Margarida, coroada de flores saltitava feliz á volta da mãe, com uma adoração que enternecia os convidados.<br />D. Íris adorava o novo marido. Adorava a sua nova casa com o seu fértil jardim e em que ás vezes se perdia por entre os jacintos e as rosas que cresciam por todo o lado... e adorava toda a rotina daquele antigo palacete mantido com regras rígidas por uma pequeno batalhão de empregados silenciosos e corteses.<br />Vivia feliz com a sua filha que tinha encontrado no Dr. Afonso um novo pai e não se tinha arrependido em qualquer momento por ter dado aquele passo na vida.<br />Várias vezes surpreendia o marido sentado á janela a contemplar o jardim, numa enorme cadeira-de-baloiço e de ar ausente, como que hipnotizado por algo. Assustava-se com aqueles olhos sem vida e depressa o trazia á realidade abanando-o com violência até ele sair do transe, "Um dia destes não voltas!!" dizia-lhe ela nervosamente. Ele descansava-a puxando-a para si e dando-lhe um beijo terno na testa.<br />Certo dia, andava D. Íris a explorar a casa, quando se deparou com uma porta que não conseguia abrir e da qual ninguém parecia ter chave. Considerava aquela casa como sua também e o facto de existir um quarto em que não conseguia entrar começou a consumi-la por dentro. Pediu a um dos empregados para chamar um serralheiro, mas este recusou-se, defendendo-se dizendo que só o faria com ordens do patrão e que aquele quarto, até ver, era interdito a todos por ordem do próprio Dr. Afonso, e que o melhor seria que se ela mesma lhe pedisse a chave.<br />Ela abordou o marido ao jantar a respeito do assunto, mas só obteve da parte dele um olhar velado e de quase ódio, que ela nunca tinha visto antes. Estremeceu um pouco e foi-se sentido cada vez mais consternada durante todo o jantar, pois o marido remeteu-se a um silencio frio e insondável.<br />Apartir daquele dia o marido mudou radicalmente de atitude, tornado-se distante e ácido e a entrar mais vezes do que nunca naquele transe hipnótico da sua cadeira-de-baloiço.<br />Refugiou-se na pequena Margarida e passava todos os minutos que podia com aquela criança, pequenina e frágil, tendo a certeza de que o único amor de que se pode ter garantia nesta vida, é o de entre uma mãe e uma filha.<br />Alguns dias depois, enquanto levava alguns dos seus pertences para o sótão, deparou-se com um pequeno móvel poeirento e que parecia mais velho que a própria casa. Ao baixar-se para abrir uma das gavetas, tropeçou e embateu numa das quinas do móvel, fazendo abrir um pequeno compartimento secreto. Isso não a surpreendeu pois aquele género de artimanhas eram muito vulgares na época, sendo uma forma muito prática de se guardarem jóias ou documentos valiosos. Porém aquele compartimento tinha apenas uma chave envolvida num pedaço de veludo e D. Íris soube imediatamente que se tratava da chave desaparecida daquele quarto que tanta curiosidade lhe causava. Enfiou-a no decote por entre as rendas do espartilho que a sufocavam mais do que nunca e desceu as escadas.<br />Nessa noite, esperou que Margarida adormecesse no seu quartinho branco e lavanda. Beijou-lhe a face e retirou-se para o seu quarto. O marido estava a ler, deitado na cama, com aquele seu novo ar frio e distante. Ela fingiu-se adormecer e assim que ele apagou a candeia e adormeceu, ela abriu os olhos na escuridão com a chave apertada entre as mãos, aguardando pacientemente que todos os empregados se deitassem.<br />Quando deixou de ouvir qualquer som e toda a casa se imobilizou de vida, ela levantou-se da cama e o mais silenciosamente possível, pegou numa vela e saiu percorrendo todo o percurso até ao misterioso quarto por puro instinto, pois apesar de a lua estar cheia, havia muita nuvem no céu e a escuridão era total. Chega á porta aos apalpões, com o coração a latejar tão forte no peito, que ela por momentos julgou que ia acordar toda a gente na casa só com o seu bater.<br />A chave entra imediatamente na fechadura e ao contrário do que ela previra, a fechadura abre sem o menor ruido, como se fosse manteiga. Uma vez lá dentro, acende a vela, e por entre o cheiro a mofo depara-se com cerca de uma dúzia de baús enormes. Com os nervos desfeitos e derrepente inundada de um medo aterrador, começa a abrir os baús, um por um. Lá dentro encontra roupas de criança... imensas roupas para todas as ocasiões e estações do ano. Dois dos baús estão cheios de brinquedos de menina e de menino, desde bonecas de porcelana de vestidos aos folhos a bolas e piões. Fica atónita, sem entender. Ela sabe que a anterior esposa do marido fugiu, jamais poderia ter levado todos os pertences dos filhos na fuga, mas ainda assim, sente-se atingida por uma onda de terror instintivo. Sem conseguir parar, continua a abrir baús, estes com finas roupas de senhora. Sente um nó na garganta ao verificar que um dos baús tem como conteúdo unicamente trajes de viagem. Num deles encontra uma caixa de madeira trabalhada cheia de jóias. Anéis de brilhantes, gargantilhas dignas de qualquer princesa das cortes mais abastadas, pregadeiras forradas a pedras preciosas e um não acabar de jóias de preço que ela nem de longe podia calcular. Nenhuma mulher no seu perfeito juízo fugiria de casa sem levar pertences tão valiosos.<br />Sente-se desfalecer e corre para fora da casa... precisando de ar puro que inspira vigorosamente enquanto corre sem destino por entre o jardim perfumado. Quase na mais completa escuridão, tropeça numa raiz de árvore. Fica ajoelhada no chão tentando perceber o que aqueles baús num quarto fechado podem querer dizer. Subitamente e como que por magia, uma nuvem deixa a lua cheia a descoberto, e ela na súbita claridade levanta os olhos. À sua frente estão três canteiros majestosos e meticulosamente cuidados. Um era de violetas, outro de jacintos e o terceiro de rosas. Ela naquele instante percebe tudo! Os olhos arregalam-se de horror e da sua garganta começam a sair gritos que lhe pareciam ser de outra pessoa. Na ala dos criados as janelas dos quartos começam a iluminar-se uma a uma e vultos começam a assomar ás janelas, olhando imóveis e sem expressão.<br />Ela grita cada vez mais e começa a correr em direcção á casa. Quer ir buscar a pequena Margarida e fugir para longe... para o mais longe que puder. Corre sempre aos tropeções no meio de todas aquelas flores. Sente-os a olhar para ela. Porque é que ninguém a ajuda??? Ela não entende.<br />A alguns metros da casa cai e bate com o queixo no chão que começa a sangrar violentamente. Ao levantar a cabeça e a única coisa que vê é o Dr. Afonso com um machado erguido e de olhos vazios e lábios cerrados.<br />No ano seguinte, ao lado dos canteiros de violetas, jacintos e rosas erguem-se outros dois, um de íris e outro de margaridas.</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-6100099353252468838.post-47041253593791745862009-03-01T06:53:00.002-08:002009-10-13T02:56:16.801-07:00Entre Mundos<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAaI4Ukntp-fvxD6Npe4fXxvwAtk7f5wAQqwnhSMSq9YXJW62eeJ0kY_86wi50ekvAhJWV3nqzhrUG1cSRE2xXLTxhpha9_WhIbqj5n7y8CWGsdxKRCg7xU0aKmG8SsNr1tPqzgZlh4Wo/s1600-h/RED_1.jpg"><img style="margin: 0px auto 10px; display: block; text-align: center; cursor: pointer;" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgAaI4Ukntp-fvxD6Npe4fXxvwAtk7f5wAQqwnhSMSq9YXJW62eeJ0kY_86wi50ekvAhJWV3nqzhrUG1cSRE2xXLTxhpha9_WhIbqj5n7y8CWGsdxKRCg7xU0aKmG8SsNr1tPqzgZlh4Wo/s400/RED_1.jpg" alt="" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5212604884512096658" border="0" /></a><br /><br /><div style="text-align: justify;">Todas as noites ela se deita à meia-noite. Nem um minuto antes... nem um minuto depois... Mergulha na doce calma acetinada dos lençóis e deixa-se adormecer placidamente.<br />Todas as noites ele espera pacientemente que ela adormeça. Quando ouve a sua respiração regular, de quem partiu para o mundo dos sonhos, entra no quarto, calçado de nuvem, e sem um som, aproxima-se da cama e senta-se ao seu lado. Contempla o rosto dela que quase sempre dorme a sorrir... e olhar aquele sorriso, fá-lo sorrir também.<br />Com as pontas dos dedos percorre ao de leve as suas faces e as madeixas soltas de cabelo que se espalhavam rebeldemente pela almofada.<br />Debruça-se sobre o seu rosto e sussurra-lhe doces palavras ao ouvido. Ela sorri ao ouvir essas palavras, que a ela lhe chegam em forma de sonho.<br />Ele levanta-se num impulso quase religioso e percorre todo o quarto... com gestos de quem já o fez mil vezes e de quem o vai fazer mil vezes mais.<br />Toca nas suas roupas penduradas no armário... abre cada uma das gavetas e acaricia as roupas dobradas. Dirige-se à cómoda... contempla os brincos favoritos dela, as pulseiras... os anéis... Pega no pequeno frasco de perfume lilás semi vazio. Sente o frio do vidro nas suas mãos e inspira um pouco daquela essência adocicada que o faz desejar beijá-la mais do que nunca...<br />Olha de relance para a cama, a respiração regular dela faz com que o peito levante os lençóis para cima e para baixo, quase imperceptivelmente.<br />A noite passa devagar, sem pressas, como se o próprio tempo tivesse adormecido também.<br />Como todas as noites ele permanece ao lado dela, tocando-lhe ocasionalmente na mão adormecida ou na face, percorrendo todo o ângulo e terminando na linha do pescoço. Deseja ardentemente que aquela noite não acabe nunca e que aquele momento permaneça para sempre congelado no tempo.<br />A madrugada, que aos olhos dele é algo de aterrador, acaba inevitavelmente por chegar...<br />Ele inclina-se resignado e encosta os seus lábios suavemente aos dela. "Até logo à noite", sussurra em jeito de despedida. Ela sorri e aconchega-se mais um pouco.<br />Quando o primeiro raio de sol penetra no quarto... já ele se foi embora... silencioso... calçado de nuvem.</div>Gingerhttp://www.blogger.com/profile/16316624396761835779noreply@blogger.com4