terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Gustava

Caminha descalça por entre os estábulos e os currais vazios. As pedras magoam-lhe os pés. De alguns dedos escorre sangue vivo e quente, noutros vêm-se crostas secas de outros dias.
A sineta lá em baixo continua a tocar insistentemente. Está a tocar há já cinco minutos, calcula ela. É uma estupidez ser a única servente daquela família de loucos. Como podiam pensar que ela sozinha conseguia fazer tudo? Limpar, cozinhar, tratar da horta...! “Um dia vou-me embora daqui!”, prometia ela muitas vezes. Nem sequer lhe pagavam, de que lhe valia servir naquela casa? Aos trinta anos estava acabada. A juventude tinha-se esfumado no meio de tantos trabalhos pesados... às vezes pensava que nunca tinha sido jovem, que tinha tido sempre as mãos gretadas e a tez queimada do sol.
A sineta continua imparável. Acelera o passo ao ver o vulto do jovem montado numa bicicleta, com uma enorme cesta de verga com rodas atada de atrelado.
Ela pára, do lado de dentro do portão, de olhar furioso e cabelo em desalinho.
- Tanta pressa!! Não estás farto de saber que trabalho sozinha aqui? – atira-lhe ela, mais em tom de afirmação que de pergunta.
Ele olha para ela, chocado com o quanto aquela rapariga se degradava de mês para mês. Ainda se lembrava dela a correr pela quinta com um vestido de linho branco, lançando gargalhadas ao vento. Sente um nó de tristeza que lhe aperta o estômago e o coração a ficar um pouco mais vazio.
- O que foi? Porque olhas assim para mim? Endoideceste, tu? Se me pagassem eu comprava umas tamancas novas, mas dinheiro nem vê-lo! Nem vê-lo! As que tinha partiram-se há uns dias. O merceeiro paga-te? – Pergunta mirando-o com um profundo interesse na resposta. Ele acena que sim ao mesmo tempo que lhe estende um pacotinho de caramelos.
- Oh, trazes-me sempre um doce. Até parece que estás apaixonado por mim! - Ri-se ela deliciada, mostrando os dentes que outrora tinham sido da cor da porcelana.
Ele cora e crava os olhos na terra. Sempre sem articular palavra, entra pelo portão e puxa até ao casarão, no topo do monte, a cesta carregada de pacotes de açúcar e arroz, frascos de café, pacotinhos de especiarias e farinha, destinadas a abastecer os móveis da cozinha. Fazia esta visita todos os meses. Ninguém daquela casa ia à vila há já muitos anos.
O Conde, que nunca tivera cabeça para os negócios nem para o jogo, era apaixonado por essas duas actividades. Assim sendo, perdeu tudo o que tinha na roleta e nas cartas e em investimentos desastrosos na capital.
Herdara o título aquando da morte de seu pai, que, completamente louco, costumava correr pelos campos a tentar apanhar borboletas, tropeçando em tudo quanto era pedra. É que se a paixão do filho eram os negócios e o jogo, a paixão do pai era a entomologia. Uma das pedras tinha sido fatal... e lá ficou o conde, estendido no chão com o crânio rachado ao meio. O filho assumiu o titulo com um ar pomposo... a primeira coisa que fez foi casar com uma prima abastada, afim de não dispersar fortuna. Infelizmente o gene da loucura corria pelas veias da família há muitas gerações... depois de perder tudo enlouqueceu, a seguir enlouqueceu a mulher e logo depois foram os filhos.
Viviam então alienados do mundo, naquela mansão decrépita, levando vidas de faz-de-conta, como se vivessem num gigantesco palco de teatro.
Está o rapaz a pousar as mercearias na mesa de mármore da gigantesca cozinha, quando o Conde entra, de bigode repenicado a fumar cachimbo.
-Gustava! Ainda bem que a encontro! Olhe, queria pedir-lhe que sirva veado ao jantar... há imenso tempo que me anda a apetecer veado. Bem tenrinho! Tome providências! – diz de modo afectado, e de postura rígida que nem um cepo, enquanto uma traça lhe pousa na lapela do casaco. Sai da cozinha apressadamente, deixando um rasto de cheiro bafiento, e sem prestar a mínima atenção ao rapaz.
- Veado! Oh... Veado! Eu lhe digo o veado! – Atira ela num grito rouco – Veado! Já me viste isto? Não tem onde cair morto e pede-me veado! Eu dou-lhe o veado! Desde que esta família enlouqueceu que eu me desdobro para que eles não morram à fome. Às vezes tenho de tirar da minha própria boca para lhes dar a eles! Um dia desapareço daqui! Nem me pagam... de que me serve? - Continuava ela na ladainha do costume.
O rapaz regressa à mercearia, pedalando velozmente, agora com a ligeireza do cesto vazio. O vento que lhe bate na cara lava-lhe as lágrimas.
O patrão olha para ele apreensivo.
- Como está ela? - pergunta preocupado. Mas o rapaz não responde, e num acesso de raiva começa a empilhar enormes sacos de farinha como se de plumas se tratassem.
Nessa tarde Gustava passeou-se demoradamente pela horta à procura de algo para o jantar. Os pés descalços enterravam-se na lama fria. Entre as alfaces roídas pelos coelhos e uns feijões verdes retorcidos e meio secos, encontra alguns tomates. Leva-os para a cozinha no regaço do avental sujo e corta-os em tiras muito finas. Coloca-os artisticamente numa bandeja de prata enquanto resmunga "Veado, bah, eu dou-lhes o veado.". Solta um sonoro espirro e é percorrida por um calafrio gelado. "Vou adoecer por não ter um raio de uns tamancos! Maldição!". Do salão começa a ouvir o habitual sininho de cobre que a condessa costumava agitar quando já estavam todos à mesa.
Entra na outrora sumptuosa sala de jantar iluminada apenas com três velas de sebo e pela lareira que crepitava baixinho. Leva nas mãos sujas a travessa cheia de tomate salpicado com oregãos frescos.
A família estava toda ali. A condessa tinha um vestido amarelo canário em veludo surrado. As rendas dos punhos estão desfeitas e arrastam-se lambendo a toalha de linho coberta de manchas amareladas. O cabelo está apanhado num penteado cheio de rococós que Gustava compunha religiosamente todas as manhãs, durante cerca de uma hora. Das orelhas caem-lhe uns pendentes de diamante, os únicos que se tinham salvado às penhoras. Gabava como sempre a beleza da filha com uma voz inchada de orgulho enquanto dava pequenas palmadinhas satisfeitas. A filha, sentada e de corpo estendido de forma lânguida sobre a mesa, segurava um pequeno espelho de prata, com que se mirava demoradamente, sempre sem dizer palavra. Na outra ponta da mesa, a quatro metros da esposa, está sentado o conde, de luneta posta, a ler nada. Fala animadamente com o filho, vestido com o velho uniforme de soldado do bisavô que tresandava a naftalina.
- Pois meu pai, garanto-lhe que combaterei com ousadia, destreza e valentia! O inimigo saberá do que é feito o sangue que nos corre nas veias! - diz numa voz teatral e aguda, como se estivesse a representar num palco. O pai ouve, assentindo orgulhoso com pequenos acenos de cabeça.
Gustava, de travessa na mão, vai servindo os pratos com pedacinhos de tomate.
- Este veado está uma delícia! Não está minha esposa?
- De facto querido... Gustava, deixa-me que te diga, cozinhas melhor a cada dia que passa. - Diz a condessa com um risinho histérico.
- Está extremamente suculento.
- De facto.
- Sublime!
Gustava dá uma fungadela mal disposta e fica de plantão ao lado da mesa.
Todas as noites o espectáculo era o mesmo. O filho dos condes de uniforme militar, pronto para partir para a guerra na manhã seguinte, o conde que acenava com a cabeça aguardando as glórias do filho, a condessa sempre com o mesmo vestido amarelo canário enaltecendo a entusiasticamente a beleza da filha, que por sua vez não largava o espelhinho de mão, nem enquanto comia.
A sala tinha quase todas as vidraças partidas, e os cortinados pendiam esfarrapados das janelas altas. Os castiçais de lustre jaziam por todo o lado, despidos de velas.
No meio da penumbra, Gustava começa a tremer de frio. Os pés descalços estão gelados. Olha para eles de forma abstracta, como se não fossem seus. Não sabe como irá sobreviver ao Inverno sem tamancas. "Maldição!".
Depois de servir a sobremesa, que a família devorou julgando ser profiteroles de chocolate, mas que não passava, obviamente, de pedaços de tomate, retira-se para um dos antigos currais, há muito abandonados. Mergulha na palha fofa e adormece num sono pesado. Tal como em todas as noites, sonha que anda pelos jardins vestida com um vestido linho branco e uma fita azul atada à cintura. Nos seus sonhos vivia na casa com os condes, num dos enormes quartos com cama de dossel. Quando os primeiros raios de sol a acordam, sente a febre a queimar-lhe a testa. Sacode a febre e os sonhos e vai para a horta, amanhando o sustendo daquela família de gente doida.
Na próxima ida do merceeiro a sineta é tocada suavemente. Está ansioso por ver a rapariga, e faz um esforço imenso para não saltar os portões e ir à procura dela.
Gustava chega passado um pouco, visivelmente doente. Tosse violentamente e arde em febre. Ele olha aflito para os pés descalços dela... havia lama seca à volta dos tornozelos e estavam cobertos de chagas purulentas.
- Estou doente. Maldição! Não olhes assim para mim. Fecha essa boca! Não preciso da pena de ninguém. - Rosna com os modos do costume. Ele estende-lhe um pacotinho de chocolates recheados de creme, arrependido por não ter trazido antes umas tamancas. Ela aceita, mas desta vez não o acusa de estar apaixonado por ela, nem tão pouco sorri. Leva-o em silêncio até à cozinha, e espera que ele vá embora, sempre sem uma palavra. Continua a tossir, envolta num xaile de lã à medida que o vê desaparecer na sua bicicleta.
O rapaz volta para a mercearia envolto num desespero que lhe fechava os pulmões e o fazia respirar estrangulado.
- Preciso de comprar umas tamancas para a Gustava. Anda descalça com este tempo... – Diz alto, apesar de estar a falar para si próprio
- Desgraçada da rapariga! – diz o merceeiro aflito.- Voltas lá amanhã e levas-lhe umas. Coitada, ao que ela chegou...
Amanheceu a chover torrencialmente. Um vento furioso varria tudo, tombando os vasos nas varandas e partindo os galhos das árvores. O rapaz tentava pedalar a bicicleta. Sentia uma urgência sufocante em entregar a Gustava as tamancas que levava penduradas às costas dentro de um velho saco de farinha, como se aquelas tamancas pudessem acabar com todas as desgraças do mundo, e, principalmente, como se pudessem fazer o tempo recuar.
Demora três vezes mais a chegar à casa do Conde do que o habitual. A chuva era tanta que ele não conseguia distinguir o palacete no alto do monte. Salta da bicicleta e atira-a para o chão. Corre para o portão e desata a tocar a sineta, mas o som é abafado pelo som ensurdecedor da tempestade. Tal como temia, ninguém aparece e começa então a tentar trepar o portão, mas a grades escorregadias e altas depressa o fazem desistir.
- Gustava! – Chama por ela, apesar de saber que ninguém o ouve. – Gustava!
Vê um vulto especado a olhar para ele de uma das janelas. Não consegue distinguir quem é, e começa a bracejar e a gritar, tentando chamar a atenção. O vulto faz um sinal de continência e desaparece. O rapaz continua agarrado ao portão, com as tamancas no ar. Pela porta da entrada vê sai o vulto, que não passava do filho do conde, vestido de soldado e de carabina ao ombro. Marchou, tal qual soldado no pelotão até ao rapaz.
- Que desejeis aqui? – Pergunta desconfiado. – Sois inimigo?
- Não, não… venho só trazer estes tamancos para a Gustava. – Diz levantando os tamancos à altura da cara.
- Lamento, mas a Gustava finou-se.
- Finou-se? Como assim, finou-se? – Grita o rapaz desesperado.
- Finou-se, então… morreu. Entende? Finou-se. Primeiro ficou doente, tossia muito, principalmente para cima da nossa comida… muito desagradável, muito desagradável… e hoje de manhã finou-se.
- E onde é que ela está? – Pergunta entre lágrimas, olhando para os tamancos, como se ainda fosse possível salvar a rapariga.
- O meu pai enterrou-a hoje de manhã no jardim das traseiras. Um bom homem o meu pai… mesmo com aquelas dores de costas, ainda conseguiu abrir um buraco para enterrar a moça. – Diz sem abandonar o tom monocórdico de um soldado a prestar contas ao general.
- Sem missa? Não houve missa, nada? Nem caixão? Nada? O que vai ser da sua pobre alma? – Grita-lhe enfurecido no auge do desespero.
-Alma? Os pobres não têm alma. Ainda mais ela, que nos tossia para cima da comida!
Voltou para a mercearia, mal pedalando, deixando que o vento o levasse. Foi com a cabeça livre de pensamentos e de coração vazio.
- Morreu. - Disse, deixando cair os tamancos no chão com um baque surdo.
- Quem morreu? - Perguntou aflito o merceeiro, enquanto entregava o troco à sobrinha do padre.
- Morreu... morreu a Gustava. - Disse em palavras despidas de entoação.
- Gustava? - Gritaram ambos.
- Quem morreu? - Perguntou uma velha que acabava de entrar, e que, tal como todos os velhos, tinha uma curiosidade acrescida a respeito de quem morria naquela terra.
- A Gustava.
-A filha mais velha do conde? - Perguntou espantada. - Pobre rapariga! Daquela família de loucos, foi a mais desgraçada.
E naquele momento a chuva parou. Um sol radioso abriu caminho por entre as vidraças da janela, iluminando com uma luz ténue o par de tamancas que jazia no chão.

oil paiting by Alexej Harlamo

9 comentários:

Lady Me disse...

Lindo!
Adorei :)

Eva Gonçalves disse...

Muito, muito bom este teu conto. Simplesmente adorei :)Parabéns! Bjo e bom fim-de-semana!

Brown Eyes disse...

-Alma? Os pobres não têm alma. Ainda mais ela, que nos tossia para cima da comida!
Esta frase foi aquela que mais me tocou. Tocou-me porque é assim, infelizmente, que os ricos falam dos pobres. Os pobres, mesmo que sejam eles a dar-lhes o sustento, a tratar deles, nem alma têm direito a ter. Ginger quantos ricos continuam a viver uma vida que já não têm? Quantos imaginam uma realidade que há muito acabou? Quantas filhas se desfazem por pais e irmãos que não merecem? Quantas vezes trabalhamos tanto, até ao ponto de nos matarmos, para ninguém nos agradecer? Quantas vezes pomos o amor de lado por quem não merece? Que ganhou esta rapariga? Uma morte com apenas 30 anos? Este conto além de estar muito bem escrito deve levar-nos a reflectir porque, vidas destas, de sacrifício, há muitas. No fim fica mesmo e apenas a dedicação a alguém, sem se ter em conta uma troca. Deu a vida por eles e eles nem disso se aperceberam. Continuaram a viver uma vida que há muito tinham perdido se não fosse ela, ela a filha deles tratada como uma escrava. Maravilhoso, para tirar conclusões. Beijinho grande

Johnny disse...

Fico sempre a tentar adivinhar o fim. Desta vez, pensei que ele fosse desenterrar o corpo para lhe fazer um funeral condigno e não estivesse lá nenhum corpo... apenas umas tamancas.

João Roque disse...

Muito, mesmo muito bom!!!!

A.S. disse...

Adoro a tua forma de expressão! Gosto muito da tua escrita e da tua criatividade!


Beijos
AL

meldevespas disse...

Tão bonito e tão triste. Pobre Gustava, talvez tenha sido a mais louca de todas. Cerrar os dentes e andar em frente, é sempre uma saída muito dura e sofrida...
Muito bem escrito, amiga, mais uma vez li de um folego. Sabes exactamente como criar em quem te lê, a ansiedade do que vai acontecer a seguir, a angustia até.
Beijos Grandes

Lala disse...

Ginger, da leitura deste teu magnífico conto (mais um) tirei duas lições. Não que estivesse tão àparte que não me apercebesse que estas coisas acontecem na realidade, mas porque por vezes, neste mundo selvaticamente construído, tentamos sim ignorar e abstrairmo-nos de coisas tão simples, mas não-raro, tão graves!

Primeiro: As aparências (ou a sede delas) podem levar as pessoas a um estado de loucura tal, que nem se apercebem do que lhes está mesmo à frente do nariz. É claro que não vejo apenas aparências... vejo, falsa soberba, vejo falsa luxúria, vejo falsos seres...

Segundo: Em relação à Gustava... claro... não poderia ignorar a sua simplicidade. A sua capacidade de continuar. A sua força, ainda que fisicamente débil. E ao rapaz da mercearia... nunca é tarde para se fazer alguma coisa... mesmo que seja tarde demais...

Belo conto.

Beijinhos*

Amaterasu, às vezes Aurora disse...

adorei a luta interna da Gustava e a forma como construíste o resto da família. muito bom mesmo. :) os meus parabéns