sexta-feira, 11 de junho de 2010

Alma vazia

Os talheres batiam suavemente nos pratos e os guardanapos de linho iam e vinham num som abafado. Ninguém falava, pois era de mau tom falar com uma defunta à mesa. Há muitos anos que mal se ouvia uma palavra naquela casa. As vozes tinham-se calado quando o coração de Dona Eduarda foi ferido de morte pelo marido. Não se notou logo que Dona Eduarda tinha morrido, pois nos primeiros tempos ela parecia apenas triste. Mas o coração ferido apodreceu-lhe no peito, secou e fez-se pó. O seu corpo começou a cheirar a flores murchas e da sua boca emanava um ligeiro cheiro de águas mortas e fétidas.
O marido tinha desde há muito declinado o seu lugar numa das pontas da mesa, e sentava-se sempre ao lado da mulher com os olhos vidrados na sua direcção e o peso da culpa a vergar-lhe a espinha. Ele falava-lhe, mas ela nunca lhe devolvia uma palavra. Nem a ele nem a ninguém. Os filhos, sentados à volta da mesa com as respectivas mulheres, tinham-se habituado desde crianças a ter como mãe uma defunta, e nada daquilo lhes parecia trágico, triste ou mesmo estranho.
Todos os dias, antes da sobremesa, o marido de Dona Eduarda estendia-lhe um bilhetinho dobrado,  onde tinha escrito tristes e breves pedidos de desculpas. Escrevia-os à noite antes de ir para a cama e guardava-os debaixo do travesseiro. "Desculpa", balbuciava ele com voz tremente, enquanto lhe estendia o pedaço de papel branco. Fazia-o em frente de todos, como se assim conseguisse a absolvição pública do seu pecado. À mesa, acostumados já com aquele ritual de tanto anos, já ninguém reparava. A entrega dos bilhetes tinha-se transformado em mais um hábito mundano, e era encarado com tanta naturalidade como escovar o cabelo de manhã ou sacudir um tapete à janela. O pedaço de papel dobrado permanecia intocado ao lado da esposa até ao final da sobremesa. Ele voltava a pegar no bilhete e puxava um enorme embrulho do chão para cima da mesa. Desapertava-lhe o cordel encerado e abri-o como se fosse um presente. Colocava o pequeno pedaço de papel junto a centenas de outros, e voltava a fechar o embrulho. Levantava-se então da mesa e ia dar um longos passeios pela cidade, com o peso da  sua culpa amarrado firme e seguro debaixo do braço.
Naquele dia o homem sentia-se mais cansado e derrotado que nunca. O peso de tantos anos de angústia  tinham-se condensado naquele momento. Tinha passado a hora do almoço a contemplar as amendoeiras em flor que os saudavam batendo com os longos ramos nas janelas. Sentiu o mundo pairar sobre ele, pesado e acusador. Uma tristeza esmagadora apoderou-se do seu ser deixando-o nauseado.
Assim que a empregada começa a colocar os pratinhos com bolo de morango e creme na mesa, ele entrega à esposa o habitual bilhetinho, mas desta vez não era branco. Tinha-o escrito em papel roxo e salpicado com umas gotas da sua água de colónia. A mesma que usava desde que a mulher lha tinha oferecido pela primeira vez há cinquenta e cinco anos atrás.
"Eduarda, desculpa. Por favor...", inclinou-se para ela e olhou-a de frente, num derradeiro esforço de ver vida ali. Mas não encontrou nada. Estavam vazios os olhos e no seu peito apenas existia um montinho de pó que tinha sido outrora um coração. Engoliu em seco enquanto juntava o pedaço de papel roxo aos outros bilhetes. Deixou correr algumas lágrimas livremente enquanto saía de casa e fechava a porta sem ruído.
Ao fim da tarde alguém toca à porta suavemente. A empregada dirigiu-se à saleta onde as mulheres bordavam e os homens liam o jornal e fumavam charutos. Com um ar afectado anuncia um jovem que diz ter uma entrega para fazer naquela morada.
O rapaz entra, com uma expressão que podia ser lida como um misto de tristeza, consternação e desconforto. Debaixo dos braços carrega dois embrulhos. Um era de papel amarelo novo, mas o outro era extremamente familiar. "Há meses que me encontro com um senhor todas as tardes no parque. Oferecia-me sempre tabaco... conversávamos muito, eu e ele...", pára, visivelmente incomodado. "Ele hoje pediu-me para entregar este embrulho à esposa.", disse percorrendo todos com o olhar. Imobilizou-se ao vislumbrar o vulto de Dona Eduarda. Só aquela podia ser a mulher morta de que lhe tinha falado o velho. "Minha senhora", disse pousando-lhe o embrulho gasto ao colo. cobriu com levemente as suas mãos, as mãos geladas da velha. "O seu marido pediu-me que lhe entregasse isto e depois saltou ao rio. Ele queria muito que lesse os bilhetes...". Uma onda de choque abafado percorre todos quantos estavam na sala. As bocas abrem-se num espanto e o rapaz abandona a sala sem mais uma palavra.
Levam Dona Eduarda para o quarto e deixam-na na cama com o pesado embrulho ao lado. Ela olha-o com com os seus olhos vazios e atira-o para dentro do cesto de papeis.  Despeja-lhe para dentro o óleo de uma lamparina e pega-lhe fogo.
Deitou-se na cama, sentindo-se finalmente em paz, e deixou que a ténue chama de vida que durante tantos anos fez o seu corpo funcionar, finalmente se apagasse.



25 comentários:

João Roque disse...

Forte, muito forte...
As pessoas não necessitam muitas vezes de palavras, para expressarem os seus sentimentos.
Sai-se deste conto, muito bem pensado e melhor escrito, com uma sensação de desconforto perante a vida...
Há gente assim!

Johnny disse...

Gosto dos pormenores de sobremesa que vais uncluindo nos teus contos... dizem mais sobre ti do que sobre as tuas personagens :)

Também gosto das mulheres fortes que crias e das histórias inventivas que crias para demonstrares a sua dureza de carvalho... e o seu incrível mau feitio... coisas que também dirão (dirão?) muito sobre ti!

Depois como é que não hão de convidar-te para o papel de bruxa?

Ginger disse...

Jóny boy, tanto elogio junto...
Vê lá não te caia um dentinho com tanta gracinha... -.-'

Daniel C.da Silva disse...

"Estavam vazios os olhos e no seu peito apenas existia um montinho de pó que tinha sido outrora um coração". e a parte final, são quase os pontos chave do texto (sempre de excelência).

Porém, um conto forte. Comovente, melhor dizendo, tocante, mas forte. Não pedes licença às palavras e usa-las com a mesma "crueza" dos factos mesmo quando ficcionados.

Foorte, mas muito, muito bom...

Um gd beijinho

Lala disse...

E finalmente Dona Eduarda terá "renascido"?

Mais uma vez, Ginger, as minhas expectativas são sempre enormes quando me preparo para me deitar à Sombra das tuas Palavras e, qual não é o meu espanto... Tu excedes-te sempre.
É realmente uma lufada de ar fresco cada vez que aqui venho embebedar-me nos teus textos!

Parabéns! Adorei!

Beijinhos**

Louise disse...

Ginger... os bilhetinhos do marido seriam dele a pedir-lhe desculpa por já ter morrido??

Reli a história várias vezes e fiquei com a sensação que ele declinou o seu lugar numa das pontas da mesa e passou a sentar-se ao lado dela já depois de ter morrido.

Já sei que tenho uma imaginação fértil, mas foi isso que depreendi deste teu conto. Um conto que me fez ler e reler e que me deixou imaginar aquilo que quis...

Como sempre, excelente.

mz disse...

Este conto vem na sequência da tua última postagem "O Banco de Jardim"

E para além da história magnífica, retiro a conclusão de que existem pessoas que se negam a perdoar quem de alguma forma as magoa durante uma fase da vida.
Não perdoam, não vivem nem deixam viver.

Esta mulher, era uma pedra e o que a movia era a humilhação a que submetia o marido negando-lhe o perdão em cada bilhete escrito, em cada palavra que não proferia.

Foi a minha interpretação :)

como sempre muito bom... e já estava com saudades dos teus contos!

beijinhos***

Ginger disse...

Chegaste lá MZ.
São contos paralelos. ;)

Obrigada a todos*

meldevespas disse...

Também reconheci o homem do conto anterior.
Ela é uma mulher dura, sem contemplações, há pessoas assim, incapazes de perdoar, e a raiva, o rancor mata assim, em vida, exactamente como descreves, apodrece-nos de verdade.
Apesar da tristeza inerente, este é um conto muito belo, quase como uma caricia.
Mais uma vez, soberbo amiga.
Beijo grande

Fê blue bird disse...

A amiga não se limita só a escrever bem, cada palavra tem um propósito, o de nos levar com emoção para a palavra seguinte.
Do melhor que já li por aqui.
Não há nada mais vazio do que a ausência de sentimento.
Parabéns! Nada do que possa agora escrever traduz o que senti ao ler este seu magnífico texto.
Um beijinho

Poetic Girl disse...

Lindo Ginger, adoro o pormenor como nos envolves nos teus contos... um dom, sem dúvida. bjs

joowy disse...

Excelente texto, excelente escrita. Há, de facto, gente a escrever MUITO bem.
Não pares. Está muito bom.

Vou seguir ^^

Vitor disse...

Então...tinhas este cantinho maravilhoso,e não dizias nada...adorei a forma como escreves e te expressas...e o conto também!

Bj+

Brown Eyes disse...

Excelente Ginger. Haverá coisas imperdoáveis ou pessoas que não sabem perdoar? Era incapaz de uma atitude tão doentia, de passar uma vida lado a lado com alguém a que não dirigisse palavra mas, cada um de nós, enfrenta a vida de maneira diferente. Penso que ela não lia os bilhetes porque sempre soube o que eles continham e não queria que a verdade ainda a matasse ainda mais. Quantas vezes preferimos ignorar?
Minha querida há por aí quem publique contos com qualidade muito inferior que vende muito que estás tu à espera? Mais uma vez parabéns. Beijinhos

Micael Sousa disse...

Mas que belo texto. Bonito e cativante pela descrição ajustada e elegante, mas especialmente emocional pelo lado melancólico. Senti um véu de cinza a cair sobre mim a medida que o enredo aprofundava e com ele a minha atenção ao texto.

Mas afinal que fez o senhor?

Parabéns pela obra!

Patife disse...

Os bilhetes ganharam vida própria no texto. Vi-os como autênticas personagens.

Lou Albergaria disse...

Que texto tocante!!! Belo demais! E o pior é que conheço alguns casais exatamente assim: não sei se há bilhetes entre eles, mas amor e paixão com toda certeza não há.

Parabéns pelo maravilhoso texto! Emocionante!

Beijo!

Hubner Braz disse...

Amei o Blog, já estou seguindo.

Bjs,

Hubner Braz

Unknown disse...

Olá Ginger,

Muito bonito e forte o conto. O nome Eduarda, q é lindo por sinal ;), não é muito corrente, lembro q qdo era miúda não conhecia ninguém com o mesmo nome para além do meu padrinho e uma prima, tb afilhada dele. Depois, li os Maias e a partir daí se já sentia orgulho no nome (por causa do meu adorado e saudoso padrinho) fiquei ainda mais orgulhosa. Ao ler o teu conto senti novamente a força deste nome que se adapta tão bem a personagens intensas. Obrigada! Parabéns pelo teu dom e continua a presentear-nos com estes textos lindos.
Bjcas

S* disse...

Este sim é tocante. :)

chica disse...

Muito linda tua paricipação.Que tenhas uma linda semana também.beijos,chica

Luis Baptista disse...

toc toc toc toc!
pode-se entrar?

antes metia-me pela chaminé do telhado!
e agora ginger?

Unknown disse...

Lindo, Ginger. Amei. de coração... Envolvente.

[e para quando a tal receita de que me falaste? O meu mail já está no meu blog. :)]

Beijinhos *

Johnny disse...

Obrigado pelo convite. Sinto-me honrado.

Brown Eyes disse...

Tenho imensas saudades das histórias da Ginger. Que Alma!!!
Beijinhos