terça-feira, 16 de março de 2010

O banco de jardim


Não se lembrava de alguma vez ter sentido tanto frio. Sentado num banco de jardim prepara-se para inspirar profundamente, mesmo sabendo que isso iria ser doloroso. O ar entra dentro dele como uma avalanche que enche os pulmões de raspas de gelo e bloqueia-lhe a respiração por alguns segundos.
Estica as pernas para frente enquanto une as mãos em concha atrás da nuca.
Era a única pessoa à face da terra. Todos os que se cruzavam com ele não passavam de sombras esbatidas e apressadas que tentavam fintar o frio.
Ao seu lado está pousado um envelope grande e amarelo, amassado pelas inúmeras viagens. Fica a olhar para o rio, perguntando-se quanto tempo demoraria a morrer naquelas aguas geladas que avançavam furiosamente até ao mar.
Sente alguém aproximar-se de passo arrastado. "Boa tarde", ouve dizer. Não olha o desconhecido, mas pela voz percebeu que devia ser muito velho. Demasiado velho para estar ali numa tarde tão fria. "Boa tarde.", responde indiferente. Havia dezenas de brancos livres no jardim, mas o velho sentara-se ali, ao lado dele. Isso aborrece-o um pouco. O velho estende-lhe um pacote de tabaco e uma mortalha. "É servido?". Ele aceita, sem saber porquê.
Olha para o velho de soslaio e para o seu fato bastante usado, mas de corte impecável. Na cabeça trazia um chapéu de feltro cinzento que deixava ver algumas madeixas de cabelo cor de prata.. Ao seu lado tem pousado um grosso embrulho amarelo atado com um cordel. O papel está bastante gasto e manchado, mas o cordel é novo. Ele sorri num esgar , pensando o quão caricato seria para quem passava ver ali sentados, numa tarde gelada, um jovem e um velho, ambos a fumar com gestos sincronizados, ambos com um embrulho amarelo ao lado, ambos a contemplar o rio com um vazio no olhar.
"Estou quase a morrer e nunca cheguei a viver", diz o velho de forma vaga e inexpressiva. "Poucos chegam verdadeiramente a viver", responde-lhe o rapaz, naturalmente, como se na vida já nada o pudesse surpreender. O tempo passa lento e silencioso. "Obrigado pelo cigarro.", diz enquanto se despede com um simples aceno e sem olhar para trás, de mãos nos bolsos das calças e o envelope amarelo preso debaixo do braço.
Volta nos dias seguintes ao mesmo banco de jardim. O velho chega sempre pouco depois. Não se admira... vê a presença do homem como lógica, quase necessária. Aceita sempre o tabaco que ele lhe oferece. “O que tem nesse envelope?”, pergunta uma tarde o velho sem olhar para ele. O rapaz  demora mais de um minuto a responder, “Um manuscrito, um livro que escrevi.”, responde, ouvindo a sua voz sair tensa. “Porque anda com ele?”, insiste o velho com um ar estranhamente paternal. “Ando a tentar que mo publiquem. E o senhor, o que traz nesse embrulho?”, pergunta sentindo-se subitamente furioso com o velhote. “Hum”, é tudo o que ouve na boca do velho, que entretanto se levanta e vai embora sem proferir palavra, com passos lentos e dolorosos.
Nessa noite ao deitar, deu-se conta de que iria sentir falta do velho caso ele deixasse de aparecer no banco do jardim todas as tardes.
“O que tem nesse embrulho?”, pergunta-lhe uma tarde o rapaz novamente, tentado parecer casual. “As minhas culpas. Neste embrulho trago as minhas culpas.”, diz de voz sumida, enquanto fixa os olhos na ponte sobre o rio.
A Primavera cobriu as amendoeiras do parque de pequenas flores brancas.
O rapaz senta-se e pousa o eterno envelope amarelo. Nessa tarde o velho tarda em aparecer. O rapaz vai olhando impacientemente para a esquerda e para a direita. Fica ali a ouvir a água do rio chilreando alegremente, enquanto vai ficando cada vez mais impaciente. Quando está prestes a levantar-se para ir embora vê o velho chegar num passo mais lento que o normal. O homem senta-se sem o habitual “boa tarde” e sem lhe oferecer tabaco. “Trouxe-lhe uma tarte de groselha da pastelaria... o senhor oferece-me sempre tabaco e eu... nunca lhe trouxe nada... “, diz estendendo-lhe uma pequenina caixa de papel. O velho abre a caixa sem uma palavra e come a fatia de tarte em quatro dentadas. Não diz obrigado mas sorri-lhe com os olhos brilhantes. Olha fixamente para o rapaz enquanto lambe as ultimas migalhas de tarde dos lábios enrugados. “Este embrulho começa a pesar demais.”, diz. “Matei a minha mulher há cinquenta anos. Matei-a por dentro, entende? Ela era feliz, um ser radioso. Desde que a matei, nunca mais falou. Anda pela casa em silêncio, com a alma presa por um fio. Está no limbo... nem morta nem viva. Não vive, existe.” , o velho continua de voz embargada, “Todos os dias lhe escrevo um bilhete a pedir desculpa por a ter morto. Há cinquenta anos que lhe escrevo... estão todos aqui, neste pacote. Ela nunca os leu. Recusa-se. Recusa-se porque não me quer perdoar.”. O rapaz cala no fundo da garganta as mil perguntas que quer fazer ao velho. Vê-o a afagar o pacote, de lágrimas nos olhos e sente uma terrível vontade de o abraçar.
“Há quanto tempo nos encontramos aqui?”, perguntou pensativo. “Há alguns meses.”, respondeu-lhe o rapaz, sentindo um nó que lhe começava a estrangular o estômago. O velho leva a mão ao bolso da lapela e tira um pequeno cartão. “Esta é a minha morada. Importava-se de entregar este pacote à minha mulher?”, pergunta calmamente. “Claro, sim... claro.”. “Obrigado.”. O velho levanta-se e dirige-se à ponte. Caminha devagar, com o peso da culpa a vergar-lhe os ombros. O rapaz vê-o trepar com bastante esforço o pequeno gradeamento de ferro enferrujado. Por um instante sustem-se equilibrado no ar, o tempo suficiente para gritar “Obrigada pela tarte de groselha e boa sorte com o livro!”, e deixa-se cair na corrente violenta. O rapaz fica parado, a olhar, incapaz de se mover. Leva a mão ao bolso e tira um pacote de tabaco e mortalhas. Enrola um cigarro muito devagar . Acende-o e dá um bafo longo. Olha para a morada no pequeno cartão acinzentado. Pega no pesado embrulho do velho e no seu envelope amarelo e afasta-se, com os dois embrulhos debaixo do braço e cigarro na boca.

19 comentários:

Johnny disse...

Continuo a admirar a facilidade que tens de contar histórias e da forma credível como encadeias o discurso e a acção, capacidades que eu não consigo dominar... pelo menos tão bem :), capacidades essas que resultam mais de um talento natural do que outras.

Só continuo a diferir de ti na escolha de algumas palavras, mas acho que essa é uma luta que vai sempre residir na diferença de opiniões e na técnica de escrita, ou seja, características que resultam mais de um estilo que pode funcionar ou não ou de treino que possa emendar isso... caso se queira.

words off the soul disse...

Maravilhoso, negro mas maravilhoso! A forma como conjugas opostos é simplesmente genial!

meldevespas disse...

Apesar de nos contornos este ser um texto teu inegávelmente, é também de certa forma surpreendente. Tem um travo diferente, mais cru, que me agrada muito.
Obrigada por mais este bocadinho tão bem passado.
Beijo grande

Unknown disse...

(suspiro profundo)

soube bem!!!


*maggy* ;)

Brown Eyes disse...

Ginger publicaste a história ontem e eu só hoje vi, imperdoável. Sempre à espera da seguinte e deixo passar assim esta maravilha. Uma maravilha que nos hipnotiza, até eu fiquei à espera do velho e ansiosa pela sua chegada. Parabéns, mais uma vez.
Beijinhos

Bailarina disse...

Dos melhores contos que aqui escreveste... Negro, mas em duvida Lindo!! Fico maravilhada com os teus contos... Conseguem sempre surpreender-me... Sempre um final inesperado!!
Por favor, continua a surpreender-nos!!
Bjinho*

João Roque disse...

Agora, quando vejo que há um novo conto teu, preparo-me; tenho que me concentrar para não perder nenhum pormenor, pois todas as palavras neles expressas têm um significado especial que os enriquecem.
Confesso que desde o início, pensei num suicídio, mas julgava que seria o do jovem...

Por entre o luar disse...

Muito bom =)

Triste, mas dá que pensar...

Beijinho**

Daniela disse...

Só dito isto: fantástico! Amei amei amei :)
Beijinhos*

Anónimo disse...

Muito Interessante, e bem escrito . Parabéns!

Voltarei ca.

Beijinho, Miguel Ribeiro.

Patife disse...

O Patife gostou muito disto. E foi o seguidor número cem. Hurray.

(Tenho direito a prémio?)

mz disse...

Quase pareciam o espelho um do outro.Também pensei que seria o mais novo a suicidar-se, mas afinal a história surpreendeu-me com o final.

está na hora de te seguir...
bjs

Fê blue bird disse...

Apenas uma palavra:
PERFEITO!

Unknown disse...

Li num único suspiro e senti também um nó a me estrangular o estômago! Parabéns pela excelente narrativa!!

Beijo,
Ane

Unknown disse...

Estou aqui para oferecer ao "À Sombra das Palavras " o Selo Prêmio Dardos. É uma singela amostra de minha admiração por teus belíssimos contos.
Os detalhes sobre o prêmio estão na última postagem do meu blog:

http://lacunasdotempo.blogspot.com/2010/05/selo-premio-dardos.html

Espia lá! ;)

Beijinhos,
Ane

Ronilson disse...

Engraçado a forma como assimilamos tudo nesta vida...ate mesmo outras vidas ! Ou seria este o grande segredo, a coletividade escondida na individualidade...
Bom espero que o rapaz perceba que o velho senhor também ja estava morto ha cinquenta anos ...
Bjo de um semi-vivo, rsrs .

Anónimo disse...

ola!!! gostei do seu blog, adorei o texto,estou criando um blog tbm... da uma olhadinha! bjs.

Jose Ramon Santana Vazquez disse...

...traigo
sangre
de
la
tarde
herida
en
la
mano
y
una
vela
de
mi
corazón
para
invitarte
y
darte
este
alma
que
viene
para
compartir
contigo
tu
bello
blog
con
un
ramillete
de
oro
y
claveles
dentro...


desde mis
HORAS ROTAS
Y AULA DE PAZ


TE SIGO TU BLOG




CON saludos de la luna al
reflejarse en el mar de la
poesía...


AFECTUOSAMENTE
A SOMBRA DAS PALABRAS


ESPERO SEAN DE VUESTRO AGRADO EL POST POETIZADO DE CHOCOLATE, EL NAZARENO- LOVE STORY,- Y- CABALLO, .

José
ramón...

S* disse...

Nota-se a fluidez da tua escrita... adoro.