domingo, 7 de março de 2010

A casa dos rouxinóis

 

As várias centenas de rouxinóis acordavam o senhor Justino, como sempre, por volta das cinco horas da manhã. A musicalidade das pequenas aves perdia-se na quantidade de pios que tornavam o som insuportável. A passarada era a paixão da esposa, Dona Carlota Maria que, desde o primeiro dia de casada os começou a coleccionar, desalmadamente, em inúmeras gaiolas estrategicamente colocadas em todas as varandas e terraços da casa. Havia gaiolas em finas ripas de madeira simples, mas também gaiolas em arame trabalhado, madeira branca cheia de rendilhados, ou pintadas de dourado. Todos os Domingos aparecia uma romaria de gente para ver o espectáculo, incluindo estranhos de vilas e aldeias vizinhas que, tendo ouvido falar na “Casa dos Rouxinóis”, o queriam comprovar com os seus próprio olhos, visto ser certo e sabido que a língua que espalhava uma história normalmente exagerava na magnitude da mesma. Nunca ninguém saiu daquela casa desapontado. Dona Carlota Maria inchava de vaidade enquanto o marido se refugiava no quarto à beira de um colapso nervoso, a tremer e a roer almofadas.
A mulher, tal como os rouxinóis, começava os seus monólogos por volta das cinco da manhã e só se calava para dormir, ou durante os breves instantes em que parava para tomar fôlego.
“Levanta-te homem que o sol já vai alto! Mandei a criada comprar mais cera para o teu bigode, mas ela esqueceu-se. Eu até lhe escrevia uma lista de compras, mas de que lhe serviria se a desgraçada não sabe ler? Já pensei em perder algum tempo e ensiná-la, mas logo alguém a resgataria com um salário mais alto. Já não há lealdade nos serventes como antigamente. Não sei o que se passou com o colete do teu fato preto, tem uma mancha que não sai. Como é que fizeste aquilo? Não tens cuidado nenhum, é o que é! O que seria de ti sem mim, gostava eu de saber… sempre atrás de ti a emendar os teus disparates. Se não te acordasse eras bem capaz de dormir até morrer! És um preguiçoso, é o que é! A preguiça é o instrumento do Diabo! E os meus joelhos que há três dias não me dão descanso… aproxima-se uma tormenta, e das grandes! Escreve o que eu te digo. Nunca me enganaram, estes meus joelhos. E que desgastados que estão por causa do raio da escadaria em caracol que te lembraste de fazer nesta casa! Devias-me trazer ao colo até ao andar de cima! Isso sim. É o que merecias! Sabes quantos degraus tem? Aposto que não sabes. O que é que isso te interessa, se não és tu que tens problemas de joelhos, não é? Pois eu te digo que tem cento e cinquenta e três degraus! Achas bem que eu tenha de, até ao final dos meus dias, trepar cento e cinquenta e três degraus cerca de dez vezes por dia? É que para descer, todos os santos ajudam, mas e para subir? Oh suplicio! Deus me leve para o Paraíso, que no Inferno já eu estou há quinze anos! Amanhã é o baile dos fidalgos do Monte Branco. Como raio vou conseguir tirar a mancha do teu colete até lá? Imagina a nossa figura, tu de colete com uma nódoa, sem cera no bigode e eu a crepitar dos joelhos! É nisto que nos tornamos! As mais importantes famílias da região vão lá estar, e tu com uma nódoa no colete! Que vergonha! Oh tivesse eu ido para noviça! Teria mais animação num convento que com este casamento desgraçado! E larga esse cachimbo homem, que o cheiro me mete os pulmões numa aflição!  ”
E assim continuava Dona Carlota Maria desde que o sol nascia até que o sol se punha. Aos seus monólogos torturantes juntava-se o incessante chilrear dos rouxinóis. O senhor Justino não sabia o que tinha acontecido à antiga Dona Carlota Maria, que nos tempos de noivado mal abria a boca, mas que após a noite de núpcias a abriu para não mais a fechar.
Os bailes dados pelos fidalgos do Monte Branco já não eram novidade, mas causavam sempre uma alegria quase infantil ao senhor Justino, pois Dona Carlota Maria assim que lá chegava começava e espalhar a sua torturante verborreia pelos restantes convidados dando-lhe umas boas quatro horas de sossego. Ficava numa das poltronas a fumar cachimbo, deliciado, acenando cordialmente a este e àquele conviva. Contemplava com alguma tristeza as mulheres dos outros, que com uma delicadeza quase angelical mantinham conversas alegres e risinhos escondidos por leques. Este sossego terminava assim que subiam para o coche e voltavam para casa. Naquela noite, entrar para o coche custou-lhe mais do que costume. Olhou aquele objecto negro à sua espera… A caixa de madeira arredondada e escura parecia ganhar a vida de um sarcófago. Entrou relutante, olhando por cima do ombro para as janelas iluminadas do palacete, de onde ainda se ouviam as risadas dos últimos convidados.
“Viste o vestido da mulher do corregedor? Escarlate! Que desenvergonhada! E como se atreveu a vir de cabelo solto? Uma mulher casada e daquela idade, de cabelo solto! Oh que vergonha! Já nem estes bailes são o que eram antigamente! Sabes porquê? As pessoas já não têm valores! E o comendador que de braço dado à esposa, andava a piscar os olhos à amante? Toda a gente sabe e ninguém diz nada! Toda a gente menos a sonsa da mulher dele… e daí não sei. Se calhar sabe e não se importa! É neste estado que está o mundo! Aquele champanhe vai-me fazer dor de cabeça. Que triste a ganância dos fidalgos que faz servir aos convidados champanhe reles! Onde andaste a noite toda que nem uma única moda dançaste comigo? Os meus joelhos podem já não estar muito bons graças a ti e aos teus cento e cinquenta e três degraus, mas garanto-te que ainda gostam de dançar uma moda. A orquestra desafinava como se tivesse o diabo à solta dentro dos instrumentos, mas mesmo assim, gostaria de ter dançado uma moda. Antes de casarmos tu gostavas de dançar. Não sei o que te aconteceu! Oh que miserável eu sou! Só Deus sabe o que te aturo!”
Os primeiros raios de sol despertaram os rouxinóis que imediatamente iniciaram a zoeira do costume. Dona Carlota Maria levantou-se imediatamente, começando a sua cantilena asfixiante assim que colocou o primeiro pé no chão.
O senhor Justino ficou mais algum tempo deitado na cama, olhando o vazio do tecto e analisando matematicamente aqueles quinze anos de casamento.
Quando se levantou dirigiu-se ao suporte de ferro num dos cantos do quarto que tinha um espelho, uma bacia em esmalte cheia de água fresca e uma toalha. Olhou-se no espelho e os seus olhos riram. Pegou na lâmina de barbear, e com dois gestos rápidos cortou o bigode repenicado e teso da cera. Afagou a pele macia e sorriu. Com passos calmos e gestos lentos, correu todas as varandas abrindo as gaiolas uma a uma, deixando fugir os rouxinóis. Alguns permaneciam estáticos nos poleiros. A esses, pegava-os com as mãos e arremessava-os ao ar com uma gargalhada. Muitos caíam atordoados no jardim por não conseguirem voar.
À falta de ocupantes, as gaiolas foram-se silenciando aos poucos. Não tardou que Dona Carlota Maria desatasse a subir as escadas em caracol, aos guinchos, para ver o que se passava com os seus rouxinóis.
O senhor Justino esperou por ela ao cimo das escadas apenas de calças e suspensórios. O seu peito desnudo e forte batia desalmadamente, como uma criança que sem qualquer arrependimento que está prestes a sofrer as consequências de uma travessura.
A urgência da subida fazia a esposa arfar mais que o normal.
“Malditas escadas! Os meus rouxinóis! Onde estão os meus rouxinóis, que não os ouço? Os meus rouxinóis, oh os meus queridos rouxinóis! Que fizeste tu? O que fizeste homem? Oh, o teu bigode! O teu lindo bigode! A única coisa de jeito que tinhas! E que preparos são esses? Porque não estás vestido, homem desavergonhado e preguiçoso? Ai o bigode! Porque o rapaste? Enlouqueceste? O que se passa com os rouxinóis?”
O senhor Justino esperou que a mulher chegasse ao último degrau, e deixou-se ficar estático, barrando-lhe a passagem.
“Sai-me da frente homem! O que fizeste aos meus rouxinóis? Deixa-me passar alma do demo!”. E foi então, que com uma calma subaquática, o senhor Justino espetou o dedo indicador no peito da mulher. Ela desequilibrou-se e com um “Oh!”, foi rebolando pela escadaria abaixo, sentido no corpo cada um dos cento e cinquenta e três degraus.
Imobilizou-se ao fundo das escadas, de pescoço partido, pernas torcidas, coluna estilhaçada e olhos abertos num espanto.
O senhor Justino vai até uma das varandas cheia de gaiolas vazias e senta-se numa cadeira de balouço. Tira o cachimbo do bolso das calças e acende-o. Fecha os olhos calmamente enquanto o fumo lhe inunda os pulmões. Oscila a cadeira para trás e para a frente, serenamente, numa dança muda, apreciando pela primeira vez em muitos anos o mais profundo dos silêncios.

oil painting por Frieseke   


17 comentários:

Johnny disse...

Gostei muito deste conto, Ginger.

Eva Gonçalves disse...

:)) Gostei! A qualidade com que nos tens habituado! Beijinho

meldevespas disse...

Oh Ginger Maria, perfeito!
Prendeu-me do principio ao fim, confesso que eu tinha-a esganado muti antes dele, sacana da mulher!!!!!
Adorei, as usual, um mimo, mesmo!
Beijos grandes

Brown Eyes disse...

Há coisas que mesmo de férias não podemos perder, uma história da Ginger interrope qualquer actividade.
Quanto à qualidade do conto é excelente, prende-nos do princípio até ao fim e chegamos ao fim e saí-nos um:
- Oh já acabou?
O senhor Justino deu o grito do Ipiranga, coitado do homem, aturar aquela mulher só mesmo quem tivesse paciênia de Jó. Mas ele conseguiu durante quinze anos, demasiado tempo, eu não aguentava um ano.
Mais uma vez parabéns.
Beijinho grande

Lala disse...

Bem... para grandes males, grandes remédios!! A D. Carlota Maria estava a pedi-las!
Esta falta de respeito da parte da senhora Dona, para com o desgraçado do Justino pode retratar-se em muito no nosso di-a-dia... nas mais variadas situações. E ás vezes o que apetece mesmo é... cortar o mal pela raíz!
O Sr. Justino ainda que tivesse entrado num estado de loucura temporária (o que não era para menos) resolveu a questão com a ponta do indicador... o que ganhou ele com iso?? O silêncio... no tão sagrado silêncio! A paz. A tranquilidade (não é a seguradora, é a outra tranquilidade)!!
Muito bom Ginger, claro! Aliás nem eu esperava outra coisa. Tinha mesmo que estar muito bom!

Poetic Girl disse...

Fantástico Ginger, aliás como sempre. Começo a ficar repetitiva nos comentários... adorei... bjs

João Roque disse...

Palavras para quê?
Bem bastavam as da megera...
É um conto fabuloso!!!!!

words off the soul disse...

Adorei!!!! Mas axo que ao fim de 15 anos ele vai sentir falta de todo aquele burburinho!!

words off the soul disse...

Adorei!! Embora ache que o fim de 15 anos ele vai sentir falta da falta de silêncio que preechia a vida dele.

words off the soul disse...

Adorei!!! Embora ache que ao fim de 15 anos deste burburinho o silêncio se tornará rapidamente num vazio.

mz disse...

Coitado do Senhor Justino!
Levava com a algazarra da passarada e ainda com a Dona Carlota Maria. Terá ela aprendido com os rouxinóis?
Saltou a tampa à panela de pressão do Senhor Justino!
oteu conto é muito original, mas mas o que ele fez, não se faz.... Ohhhhhhhhhhhh
Agora vais ter o POIROT a investigar a morte da megera :)

Adorei!
bjs

Por entre o luar disse...

Gostei bastante *

Beijinho

Juana disse...

Mata-la é que foi muito chato...! Eu abria-lhe as gaiolas, pirava-me com a fortuna e fazia umas looooooooongas férias conjugais!

Teresa Diniz disse...

Ginger
Só agora consegui aqui chegar, mas valeu a pena. Confesso que tive pena dos passaritos, coitados, sem saberem o que fazer da vida. Quanto ao Justino, será que vai apreciar o silêncio da prisão? Ou até o Juiz se calará?
Bjs

Amaterasu, às vezes Aurora disse...

quando leio os teus contos apercebo-me que realmente nao sei escrever.. muito bom :) adorei cada linha, palavra utilizada e o silencioso e calmo final.. :)

Ginger disse...

Obrigada jóni... deu-me gozo escreve-lo.

Eva, obrigada.

Mel, tinhas nada. És um docinho e sabes bem disso. :D

Brown, não foi bem o grito do Ipiranga... foi mais a ponta do dedito. AH AH AH

Lala, loucura temporária?!? Eu acho que foi o momento mais são da vida dele. :p

Poetic, o que importa é que tenhas gostado. ;)

pinguim, é não é? Realmente, que besta de mulher.

words off the soul, não me parece que irá sentir grandes saudades. =|

MZ, o Poirot! :D
ah ah, naaaaah.

Por entre o Luar, obrigada. =)

Juana, teria sido uma hipótese, mas não lhe teria dado tanto gozo. :p

Teresa, ele jamais não foi para a prisão. Acidentes domésticos acontecem todos os dias. ^^

Amaterasu, tu escreves dentro de uma linha que eu também gosto.
De qualquer das formas, quem é que pode dizer quem sabe ou não escrever?
Tha way I see it, a escrita não passa de uma questão de gostos.
Eu não gosto de Lobo Antunes, por exemplo, no entanto os entendidos dizem que ele escreve bem. Que é magnífico e não sei que mais. Eu não gosto. Não compro livros desse senhor, e se mos derem, não os leio. Mas acredito que seja um bom escritor. Acredito que seja fantástico. Mas isso não me vai forçar a gostar.
Isto, depois de tudo bem espremido, o que importa é que uma pessoa tenha gozo em escrever o que escreve da forma que bem entender. O resto são cantigas.
Obrigada. ;)

*

lunatiK disse...

Viva
gostei muito do conto, só hoje o consegui ler, e é assim que me apercebo que realmente é melhor tirar fotos e deixar a escrita para quem sabe.
Cumps.