terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

A longa espera...

Finalmente estava velha! Tinha esperado muitos anos pelo momento exacto em que sentiria mais para lá do que para cá, e quando esse momento chegou aceitou-o com júbilo e excitação.
Espreitou a manhã radiosa pela janela do quarto e sorriu com os poucos dentes que lhe restavam. Olhou para o penico debaixo da cama e pela primeira vez desde que se conhecia, deixou-o ficar em vez de o ir despejar à latrina. Tomou essa decisão de forma travessa e triunfante.
Foi buscar uma pá à arrecadação e dirigiu-se para o quintal. Caminhou pesadamente, com a dificuldade da idade até chegar ao pé de nove enormes vasos de roseiras alinhados em fila, que tinha coleccionado ao longo de mais de sessenta anos de trabalho árduo. Tentou mover um mas não conseguiu. Já não tinha forças para tanto. Empurrou-o até que tombasse para o chão em mil cacos. Começou a cavar no lugar do vaso até que a pá começou a fazer um som seco. Puxa um pesado pote para fora do buraco. Abre-o ali e mergulha as mãos velhas em centenas de moedas de ouro. Dá uma sonora gargalhada que culmina em risinhos nervosos. Olhou para os restantes vasos de rosas por uns momentos com visível satisfação.
Voltou para casa e encheu a sua malinha de domingo de moedas. Guardou as restantes num buraco do soalho e com o seu melhor xaile aos ombros caminhou com os seus passinhos lentos de velha até à casa do ferreiro. Não se sabia porque chamavam ferreiro ao ferreiro, já que ninguém jamais o tinha visto a moldar o que quer que fosse, no entanto todos iam ter com ele quando precisavam de coisas mais complicadas de obter. A velha em breves minutos disse-lhe tudo o que pretendia. O homem olhava-a embasbacado à medida que ela ia falando. No final lança-lhe um olhar de dúvida, que a velha apagou ao virar a malinha cheia de moedas em cima da mesa. Apenas soltou um "Oh Deus!" enquanto a velha lhe piscou um olho, satisfeita.
Na semana seguinte começa a chegar a enorme encomenda feita. Cria-se um enorme alvoroço em frente à casa da velha, enquanto de carroças, homens suados descarregam as mais variadas coisas. Uma enorme banheira de porcelana branca com pés em metal dourado, metros e metros de tecido de estampados garridos, caixas de madeira cheias de copos de cristal acomodados em palha, um piano de cauda, enormes braseiros de cobre, carpetes fofas enroladas e presas por um cordel, muitas caixas de conteúdo desconhecido e até objectos apenas cobertos por panos brancos mas sempre carregados com o maior dos cuidados.
A noticia espalha-se por toda a vila até chegar a casa das filhas da velha. Eram sete no total, todas idênticas de aparência mas não de humores. Caminham esbaforidas para casa da mãe, perplexas, surpresas, comentando umas com as outras a notícia e questionando a sua veracidade.
As filhas passaram por caixas e mais caixas largadas no jardim da mãe e entraram na casa aos tropeções.
"Minha mãe!", disse a mais velha, "Que se passa aqui? O que é tudo o isto? Enlouqueceu, minha mãe?". As outras acompanharam-na num coro lamuriento, "Enlouqueceu minha mãe?". A velha que já tinha previsto esta reacção, e que até tinha um pequeno discurso improvisado, exaltou-se e deixou o discurso entalado na garganta. "Como ousam?", grita subitamente. "Como se atrevem? Criaturas ingratas! Criei sete filhas e trinta e um netos, tantos netos que nem sei o nome de todos! Vivi para vocês mais de sessenta anos sem nunca soltar um único "ai"! Esperei toda a vida por isto. Finalmente o descanso! Agora é a minha vez de ser servida! Acabaram-se as couves da minha horta e os ovos dos meus poleiros. Acabaram-se os almoços de Domingo em minha casa! Até almoços de Páscoa e as Ceias de Natal!", pára arfando e de olhos a sair das órbitas. Aponta o dedo indicador à filha mais velha, "Este Domingo o almoço é em tua casa. No Domingo a seguir é em casa da segunda mais velha e assim sucessivamente e até chegarmos à mais nova. E depois começa-se do princípio. Estamos entendidas?". Responderam em forma de grunhidos surpresos enquanto olhavam umas para as outras virando a cabeça em seis direcções. "Mas mãezinha, onde arranjou dinheiro para comprar tudo isto?", pergunta a mais velha aflita, na sua qualidade de porta-voz. "Poupei-o!", gritou a mãe num guincho rouco e gutural que as fez fugir em debandada.
Nessa tarde a velha recebeu uma procissão de raparigas candidatas a um emprego de copeira, e quem diz copeira diz cozinheira, jardineira, caseira e tudo o mais que houvesse para fazer naquela casa. As moças iam-se apresentando à sua frente com uma pequena vénia. Amaldiçoava o cadeirão de pele novo extremamente desconfortável em que estava sentada, ao mesmo tempo que ia declinando as moças umas atrás da outra. "És muito baixa, não chegas aos sítios mais altos!", "És muito alta, deves ser muito desengonçada e trapalhona!", "És demasiado branca, nunca deves ter trabalhado na vida!", "És vesga, não quero morrer a olhar para uma vesga!". A velha achou que com a sua idade já não seria preciso estar com cortesias e de certo também não lhe restava muito tempo para simpatias, desta forma vomitava assim as verdades com enorme satisfação. Chegou a vez de uma rapariga de tronco caparrudo e sobrancelhas unidas. "Caramba! Que feia que és! Feia que nem um trovão! Caramba, caramba!". A rapariga olhou para a velha sem surpresa e olhos inexpressivos. "Gosto de ti, sabes? Pareces forte! Aposto que nunca adoeceste na vida. Como te chamas minha filha?", "Lúcia, minha senhora.", disse a rapariga sem convicção, como se aquele nome não significasse nada."Lúcia... Muito bem! Dou-te este trabalho se te puder chamar Feia." riu a velha com uma ponta de malvadez. "Aceito o trabalho se lhe puder chamar Velha.". A velha soltou uma sonora gargalhada e quando deram por si, ambas riam como umas perdidas, a Velha e a Feia. "Feia, a primeira coisa que vais fazer, é levar este cadeirão para o quintal e pegar-lhe fogo.".
Feia veio mudar completamente a vida da velha. Fazia o trabalho pesado de cinco homens com a mesma destreza com que enchia de rosas todas as jarras da casa. Tinha um dom especial para os doces, o que fazia com que a velha passasse as tardes a empanturrar-se de barrigas de freira e creme de ovos.
Todas as noites, quando Feia a despia para lhe dar um banho, dizia-lhe ,"Feia, ouve o que te digo, poupa as moedas de ouro que te dou, guarda-as como se disso dependesse a tua vida, e se tiveres a sorte de chegar à minha idade, esbanja-o como se não passassem de moedas de latão, ouviste?", "Sim minha Velha.", dizia sempre Feia na sua voz sem expressão, de joelhos ao pé banheira de porcelana, enquanto espremia um paninho embebido em água de rosas pelas costas da Velha. Aquela anciã tinha-lhe ocupado no coração o lugar que pertencia à mãe que nunca tivera.
Aos Domingos, a filha designada de dar o almoço à família toda, recebia a mãe à porta, acomodada numa carroça forrada de almofadas fofas, puxada por um burro com uma colar de cetim vermelho cheio de guizos pendurados. Tinha jurado a si mesma que até morrer não voltaria a dar um passo, a menos que fosse estritamente necessário.
Sentavam a mãe sempre no topo da mesa, de onde ela, qual rainha no trono, ia lançando comentários agrestes em todas a direcções. "Que decote é esse? Pareces uma rameira, valha-me Deus!", "Como estás velha e acabada minha filha. Esse desleixo também não ajuda!", "Venha cá meu genro. Que é isso no colarinho? Se se lavasse como deve de ser, não teria a camisa nesse estado!", "Que arroz é este? Parece borracha. Oh valha-me Deus, que me querem matar!", "Como estão travessas estas crianças! Não lhes metam a mão agora, não... que ficam perdidas!". A ladainha durava toda a refeição e ia-se aperfeiçoando de Domingo para Domingo, levando ao desespero as filhas, os genros e os netos.
Feia não largava a velha nem por um momento, fazendo questão de que nada lhe faltasse, mesmo quando lhe apetecia chá de jasmim a meio da noite, e tivesse de ir apanhar as folhas ao quintal debaixo do maior dos temporais.
Os anos passavam lentos e tépidos. A velha habituara-se a fazer longos monólogos todas as tardes, enquanto Feia lhe escovava os finos cabelos prateados por puro entretenimento. Contou a Feia como tinha ficado viúva logo após o nascimento da sétima filha, da herança deixada pelo marido que ela com juízo tinha conseguido multiplicar muitas vezes, do desgosto que tinha por nem uma única filha ter escolhido um noivo decente... e por fim, quando a sua confiança em Feia era inabalável, contou-lhe dos oito restantes vasos de roseiras no quintal que marcavam o lugar onde estava enterrada o resto da sua fortuna. "Quando eu morrer, vais lá e tiras um para ti. O resto é para as minhas filhas. São uma lorpas, mas o que é que se há-de fazer...? Entendeste Feia?", "Sim minha Velha", respondeu-lhe Feia agradecida, com um travo de tristeza na voz.
Numa manhã de sol invernal, a velha não acordou. Feia encontrou-a com um chá de jasmim frio na cabeceira da cama e um pratinho de barrigas de freira intacto. Tinha uma expressão suave e serena, de uma paz imensa.
Depois do funeral, Feia chamou as filhas a casa da velha. Na pequena mesa da sala de jantar tinha alinhados os oito potes cheios de moedas que tinha desenterrado no quintal. Explicou perante o ar assombrado das sete mulheres, que a cada uma estava destinado um pote. Enquanto elas olhavam em silêncio e de mão sobre a boca a enorme fortuna sem saber o que dizer, Feia pegou numa pequena trouxa de serapilheira com os seus poucos pertences e encaminhou-se para a porta. "Espere! Há um pote a mais!", gritou-lhe a filha mais velha. "Esse a sua mãe deu-mo a mim.", disse às sete cabeças viradas para ela. "E não o leva?", perguntaram surpreendidas sete vozes em simultâneo. "Não, obrigada. A vossa mãe já me deu mais do que eu alguma vez pude imaginar.", disse na sua voz sem expressão enquanto girava a maçaneta da porta."Mas espere! A nossa mãezinha, que falava tanto consigo... nunca lhe disse nada sobre nós?", perguntou esperançada a filha do meio. "Sim... dizia muitas vezes que não sabe o que fez a Deus para que lhe tivesse calhado umas filhas tão lorpas.". E saiu porta fora.

oil painting por Gerrit Dou
Para Fábrica de Letras - "Velhice"

16 comentários:

meldevespas disse...

A velha é mesmo do melhor que tenho visto. dá uma vontade enorme de poder fazer como ela e simplesmente dizer o que pensamos sem falsos moralismos e hipocrisias.
Os velhos somos nós com mais tempo de existência e certamente mais saber. Esta velha era bem o exemplo disso.
Beijos grrrandes

Spica disse...

Ginger, escreve e publica um livro! Fiquei presa ao texo. adorei :)

Brown Eyes disse...

Ginger Ginger este é, sem dúvida, o melhor conto que já li teu. É sublime. Essa velha apaixonou-me. Ela fez no fim da vida o que acho que todos os velhos deviam fazer. No fim devíamos ter direito a mordomias e não continuar escravos dos filhos. Eles não entendem que depois de os criares queiras viver, é que até aí não se vive. A Feia então deu uma lição de moral às filhas impressionante. Apaixonou-me a velha, a maneira como como delineaste este conto, as outras personagens e as lições que aqui deixaste. Excepcional, maravilhoso, lindo. Beijinho Grande

Brown Eyes disse...

Spica estou farta de lho dizer. Ainda bem que tenho apoio nesta luta.

Johnny disse...

Está muito giro e imaginativo. Imagino-te a ti a fazeres o que descreves.

Catsone disse...

Estava a ver que não "trabalhavas" para a fábrica este mês ;)

Este teu conto é uma delícia e aprendi uma nova palavra para insular: lorpas!

Eva Gonçalves disse...

Fartei-me de rir com este conto. Está o máximo!! Talvez o melhor de sempre, mesmo. Adorei, adorei! E também fiquei com vontade de fazer o mesmo, rrssss Danada da velha!! De lorpa, não tinha nada!! Beijinhos e parabéns!

Bailarina disse...

Lindo, muito Lindo... Parabens!!! Tens um enorme talento...
Bjinho*

Cu de Barbas disse...

epá, é um conto classico , com tda a beleza naive q transmite e q serve para camuflar a moral da estoria.

por alguma coisa as pessoas s especializam ;)

Olga Mendes disse...

Excelente conto. A velha é do melhor, mas a feia é de uma bondade e caridade incrível. Parabéns.

Su m disse...

Que conto Fenomenal... fiquei rendida.

Confesso que a parte que mais me intrigou foi a da personagem da Feia... creio que não a consegui desvendar inteiramente.

Parabéns... devias mesmo publicar estes contos ;)

João Roque disse...

Faltam-me as palavras; não abandones a blogosfera, por favor. que precisamos dos teus contos; mas o que fazes aqui??? Não vais procurar quem te edite um livro? Só um editor idiota o não fará...

Por entre o luar disse...

Está muito giro =)

A velha e a feia, ambas com atitudes surpreendentes mas valorizáveis*

Anónimo disse...

Adorei esta história...demonstra muito a realidade.

Lala disse...

O maravilhoso de todos os teus contos, de todas as tuas estórias é que podemos imaginar-nos dentro delas. Imaginar os cenários, ver as personagens... Entrar na estória como se estivéssemos a pairar sobre ela.
Fiquei encantada com a Velha. Fiquei encantada com a Feia. Fiquei encantada com a estória... Até tu me encantas 'gaija'.
Obrigada pelo que escreves. Obrigada pelo que me dás a ler.

Beijinho***

By Me disse...

INTERESSANTE...:)