segunda-feira, 15 de junho de 2009

A viúva


Os passos são imprecisos e sem pressas, a dor tirou-lhes a precisão e a falta de vontade de viver tirou-lhes a pressa.
O marido deixara de existir... a dor era-lhe insuportável. A cada minuto ela esperava que o coração cedesse e parasse... mas o coração continuava a bater, e os minutos iam passando, cruéis e intermináveis, uns atrás dos outros, e ela continuava viva também. O coração não parava, por mais que ela o desejasse.
Os filhos já crescidos viviam longe, na cidade. As visitas eram raras devido à distancia. Via os netos apenas no Verão, quando todos vinham passar o quente mês de Agosto à casa da sua infância, e as tardes se passavam a nadar no lago, a beber limonadas e a comer bolo de groselha.
Não queria alarmar os filhos com a notícia, nem queria que chegassem precocemente. Mandaria um telegrama a informa-los da morte, e eles chegariam no dia a seguir. Tinha previsto tudo até ao mais ínfimo pormenor, e queria tratar de tudo sozinha para evitar dar trabalhos aos filhos.
Continua a caminhar, evitando as estradas e cruzando os bosques... queria contornar a vila, onde todos a conheciam, e seguir até à vila seguinte.
No dia anterior tinha despedido todos os empregados, entregando a cada um uma generosa porção de dinheiro, o que os deixou surdos de espanto, e ordenou-lhes que partissem. Queria estar só. Não queria ouvir um som. Abriu as portas das capoeiras, dos estábulos, a cancela da cerca das ovelhas e foi-os enxotando para fora da propriedade. O que mais ambicionava era o silencio total e amaldiçoava as aves que das árvores continuavam o seu alegre chilrear.
Caminhava vagarosamente, deixando que as ervas selvagens lhe rasgassem as bainhas rendadas do vestido. A viagem acumulou pó no seu cabelo, no seu vestido, na sua na sua cara... duas linhas de lágrimas abriram caminho por entre o pó das faces, como pequenos ribeiros nascidos da mesma nascente, e que seguiram caminhos opostos.
Os sapatos forrados de cetim revelaram-se muito pouco apropriados para a caminhada, pelo que os tirou e continuou de pés descalços.
Avistou o vilarejo com um alivio agradecido... o seu corpo dizia-lhe que ela não conseguiria andar mais uma passo.
Voltou a calçar os sapatinhos e penetrou nas ruas sinuosas. Quem passava olhava de soslaio para aquela estranha, de aparência burguesa. O vestido de renda inglesa marcava-lhe o corpo esguio que a idade não tinha atraiçoado.
Era bonita a senhora.
Não tinha mais de quarenta e cinco anos, a senhora.
Tinha um ar perdido, a senhora.
Caiam lágrimas silenciosas dos olhos da senhora.
Perguntou onde era a casa funerária e uma mão confusa apontou-lhe uma rua.
Seguiu na direcção que a mão lhe apontou, de cabeça erguida, enquanto mordia os lábios tentando controlar a dor.
Empurrou uma porta adornada com arabescos de ferro enferrujado, que por sua vez fez tocar uma sineta algures nas entranhas da casa.
Surgiu um senhor, vestido com um fato negro, como se estivesse preparado para partir para um funeral a qualquer momento. Deixou cair um aceno cordial e a sua boca desenhou um sorriso breve, frio e profissional.
- Queria tratar de todos os aspectos que envolvem um funeral. - atirou ela de rompante sem sequer dizer boa tarde.
- Com certeza minha senhora... deixe-me desde já dizer-lhe o quanto lamento a sua perda. - Disse ele num tom de quem já tinha repetido esta frase centenas de vezes, carregada com a certeza de que a iria repetir centenas de vezes mais.
- Obrigada. - disse exausta, deixando-se cair num pequeno sofá forrado a veludo verde musgo. - É a primeira pessoa com quem falo... espero que possa tratar de tudo sozinho. Não tenho forças para mais. Pago-lhe tudo em avançado, e já. Acha que tem capacidades para isso?
O homem de negro, que cheirava a morte, a falso pesar e a ganância, assentiu com um brilho nos olhos.
- Posso saber quem perdeu?
- O meu marido. Perdi o meu marido... não tenho mais nada, sabe... não tenho mais nada.
O homem de negro tinha um pequeno discurso adequado a estas situações, um discurso que pretendia dar algum alento aos familiares do defunto... mas algo nesta mulher lhe disse que o melhor era guardar silencio.
Escolheram então o caixão, as flores, os cânticos para a missa fúnebre, os bilhetes de aviso para os familiares e amigos a respeito do velório e um pequeno texto a ser publicado no obituário dos jornais da vila e das terras vizinhas... se bem que ela disse que talvez fossem preciso fazer algumas alterações de ultima hora, mas que confiava no seu bom senso e profissionalismo, já que ela queria ser deixada em paz depois de todos os preparativos. Entregou-lhe por fim a morada do médico que era suposto declarar o óbito.
- Mas o médico ainda não foi avisado? - admirou-se o homem.
- Trate você disso, e de qualquer das formas detesto aquele velho metediço. Acho que não tenho de lidar com quem não queira neste momento... não lhe parece? Já me basta... - parou, contendo as lágrimas.
- Mas... sim, claro. Eu informo o médico.
- Entregue tudo nesta casa amanhã de manhã. - disse de voz sumida, entregando-lhe um papelinho com a morada.
- Ainda é longe! - admirou-se -A senhora veio de muito longe! - a afirmação carregava uma pergunta.
- Não queria enfrentar os meus amigos, sabe... os olhares de pena, as manifestações de pesar. Só quero que tudo acabe de uma vez por todas. Vir aqui foi mais simples... sabe...
O homem não sabia, mas assentiu com um ar grave. Normalmente as pessoas que perdiam alguém procuravam conforto nos braços de familiares e amigos... mas este não era um caso normal, assim como não o eram a determinação e a força desta senhora.
Ela pegou na bolsinha e tirou dinheiro suficiente para pagar aquele funeral dez vezes. Ele admirou-se e estava prestes a recusar - Não me serve de nada, sabe... o dinheiro, não me serve para mais nada... o meu marido morreu... nada mais faz sentido. E o meu coração ás vezes parece que vai parar com a dor, sabe... mas não pára. Eu fico quieta à espera que pare, mas não pára... se ao menos parasse...
Ele ficou imóvel, hirto ao som daquelas palavras inesperadas, tomando agora a verdadeira consciência da dor daquela mulher, e calculou que tivesse ficado um pouco louca com a morte do marido.
Ela sai pela porta forrada de arabescos, fazendo a campainha tocar novamente. Volta por onde veio, sem se despedir, ignorando os olhares curiosos que atraia pelas ruas. Encontra uma estação de correios e envia um telegrama a cada filho... o corpo treme-lhe ao antever a dor que aquelas simples palavras vão causar.
Volta a entrar nos bosques, e novamente de sapatos na mão, percorre todo o caminho até casa, demorando várias horas.
Chega ao final da tarde, com os pés a sangrar, mas com um alívio imenso. Estava tudo tratado. Agora poderia finalmente descansar.
Atravessa o jardim que a leva a casa, desvia-se para as traseiras e fica parada em frente uma estufa de conteúdo luxurioso. Era do marido... ele tinha-a construído sozinho durante meses de dedicação obsessiva. Cada roldana, cada prateleira, cada telha de vidro, tinham sido cautelosamente montadas, dando a possibilidade de se entregar à sua grande paixão... a botânica. Desde então coleccionava flores e ervas raras de todo o mundo e passava grande parte do seu dia contemplando a sua obra, regando e falando com as plantas como se fossem seres humanos, e, jurava-lhe ele, elas falavam com ele também. Ela ria-se e chamava-lhe velho tolo.
Entra na estufa e sente de imediato um perfume inebriante que lhe enche os pulmões e lhe atordoa os sentidos... passa com mãos por aquelas pétalas aveludadas, da mesma forma que viu o marido fazer tanta vez.
A esta hora os filhos deveriam estar prestes a receber os telegramas. Suspira.
Caminha até ao final da estufa e pega num ramo de um pequeno arbusto carregado de bagas negras... o marido tinha-lhe explicado que era beladona... uma planta rara e extremamente venenosa. Pergunta-se porque teria aquele adorável velho tolo dado abrigo a algo assim tão letal. Mas além das bagas venenosas, a planta produzia uma flor linda que sempre a tinha fascinado. Arranca um ramo e entra em casa... faria um bonito arranjo floral na jarra de cristal que estava vazia na sala.
Toma um longo banho, limpando a poeira da longa caminhada e veste-se de negro integral. A cor do luto, a cor da morte...
Recosta-se numa poltrona e beberrica delicadamente um copo de licor. Pensa no carro funerário que chegará na manhã seguinte, no caixão, nas coroas de flores e finalmente nos seus filhos... esboça um derradeiro sorriso. Estende o braço para uma mesinha redonda ao lado do sofá e pega numa moldura de prata com uma foto do marido. Chega a moldura aos lábios e repousa-lhe um beijo... "Dois anos... já partiste há dois anos, dois anos que bem podiam ser dois séculos...".
Pega no ramo de beladona e arranca uma das bagas negras... enfia-a na boca e engole-a com um trago de licor... depois outra, e mais outra, e mais outra...


pic in devianArt

30 comentários:

Senhor das Chaves disse...

To be continued? :o)

Ginger disse...

To be continued?!? =|
No!
Não percebeste o final? :s

Ai!

Senhor das Chaves disse...

Oh, num ligues. Às segundas feiras os meus neurónios só funcionam se forem subornados :o)

Já reli o post e percebi o final :o))

Something from the heart disse...

Typical Ginger =)

Tema: Morte/Suicídio
Tempo Histórico: Séc XVII / XVIII / XIX
Personagem Central: Femenina e personagem plana

TYPICAL GINGER. =D I love it!

Cu de Barbas disse...

personagens demasiado planas no meu entender ginger

nao é d longe o teu melhor e tem erros d palmatoria rapariga,falta d atençao,somos profissionais ou n somos profissionais mulher?

Brown Eyes disse...

Bom, muito bom. O fim então é do melhor. Nunca me passaria pela cabeça planear o meu próprio enterro. Escrita fácil e clara, boa maneira de cativar leitores. Eu apenas cortarias nesta parte a senhora: "Era bonita a senhora.
Não tinha mais de quarenta e cinco anos, a senhora.
Tinha um ar perdido, a senhora.
Caiam lágrimas silenciosas dos olhos da senhora."
Mais uma vez estás de parabéns. Beijos

Brown Eyes disse...

Queria mencionar, apenas, que a actual imagem do blog é mais atraente e ilustra-o bem. Beijos.

Ginger disse...

Something... obrigado/a... that was nice. ;)

RIP... somos sim... :$
Eu sei que não é de longe o meu melhor, mas também não pretendo suplantar uns contos com outros. A partir do momento em que em que deixe de escrever por simples prazer, simplesmente deixo de escrever.
Já o reli depois do teu comentário e encontrei alguns erros... presumo que devam de haver mais, mas o facto de ter sido EU a escreve-lo tira-me alguma objectividade.

Brown, curiosamente estive bastante indecisa enquanto escrever ou não isto: "Era bonita a senhora.
Não tinha mais de quarenta e cinco anos, a senhora.
Tinha um ar perdido, a senhora.
Caiam lágrimas silenciosas dos olhos da senhora."
... :p Quis criar um efeito de repetição que não foi bem sucedido. Também a mim não me satisfez plenamente.
E realmente, o actual template do blog é mais "eu"... ^^

Obrigado a todos*

Saltos Altos Vermelhos disse...

Gostei do final!!! ;)

Otário Tevez disse...

interessado em participar em espelhosentido.blogspot.com?

aguardo confirmação!

Johnny disse...

Gostei. Haveria coisas que eu diria... não lhe chamaria erros, mas coisas que eu escreveria de forma diferente, como por exemplo os "cânticos que iam ser cantados", mas é uma questão de gosto e as edições ne varietur até estão na moda.

Ginger disse...

"cânticos que iam ser cantados"!!!! :o

Fosga-se!! São falhas de atenção... que nervEs!! Desleixo, puro desleixo.

Vou já emendar... thanks*

Brown Eyes disse...

Ginger quanto aos cânticos aí não vejo erro nenhum mas...Os cânticos podem ou não ser cantados. O nome que se dá às canções da igreja é cânticos e são-o mesmo quando não são cantados, quando estão apenas escritos. Percebeste? Até eu fiquei confusa mas espero ter conseguido explicar a minha ideia.
Quando se escreve, principalmente um texto longo, há sempre falhas, quanto mais lemos mais as encontramos por isso há as erratas. Quando há muitos leitores, que é o caso, é mais fácil encontrar falhas. Já te aconteceu ler o que pensas e não o que está escrito? A mim muitas. Está muito bom, muito mesmo. Beijos

Ginger disse...

Sim Brown... entendi. Mas "cânticos que iam ser cantados", realmente... é muito cântico na mesma frase.

E SIM, já me aconteceu ler o que penso e não o que está escrito... :p quem lê de fora consegue ter uma perspectiva mais objectiva e encontra os erros mais facilmente.
Eu agradeço que mos apontem... só assim posso melhorar.
Se eu não gostasse de saber as vossas opiniões, escrevia os meus contos apenas para mim... e não os partilhava aqui.

Obrigado por estares tão presente. ;)

kiss*

meldevespas disse...

Queres saber que mais? Eu adorei! Como sempre, alias....o teu estilo habitual esta presente e bem vincado em cada curva do texto, e claro esta que nao se pode estar praqui a avaliar o peso qualitativo do que se escreve (penso eu), uma pessoa escreve, porque basicamente tem que escrever, e uma necessidade, e mai nada! E claro que diferentes pessoas escreveriam as mesmas estorias com frases contruidas de formas diferentes, falas mais longas, repetiçoes, brejeirices, tradicionalismos, metaforas...cada cabeça sua sentença, ou nao?
O que tenho a dizer-te de mais importante, ´´e que todos os teus textos tem a tua impressao digital, e isso parece-me de valor!
Go Ginger go!
Big Hug&Kiss ;D

weee disse...

Oh Fuck!! :O
Loved it!! *.*

Já agora, quando é que vais escrever um texto que eu não goste? :think:

Bridge To Solace disse...

oh.my.god.

Isto é BOM!
muito BOM!

Que escrita excelente.
Eu tirando um ou outro "typo" não emendava nem remexia. A não ser que queiras que te publiquem isto, não percas a espontaneidade. Voltar atrás, emendar...
Repito,
Não alterava uma vírgula
Muitos parabéns
Isto é escrita!

Ginger disse...

Caramba Mel... és um doce :$
Eu nunca encontro novas formas de te elogiar, faltam-me sempre as palavras. Muito obrigada, really. Love ya**


Weee... TENTO nessa língua!! Este é um blog sério e sisudo!! É assim para o noir, para o deprimente e para o fatalista! Não me venhas prá qui alterar o esquema todo! »»

Bridge... obrigado. =D Principalmente pelo entusiasmo do coment... :P
thanks ;)
*

Marta Inês disse...

Gostei!

beijinhos*

Laetitia disse...

Gostei do texto, do blog, do layout.

Obrigado por me teres adicionado.

Beijinhos

Mag disse...

Gostei muito da tua escrita, fiquei presa ao texto até ao final.
Os meus parabéns!

Luís Bento disse...

Aqui à sombra das palavras é que se tá bem! Muito bem!

Luís Bento disse...

Desculpa, o Luca sou eu..bento

Laetitia disse...

Nunca mais escreveste! :(((

Unknown disse...

1º nunca mais esceveste...
2º agora que li a história de novo...percebi que a personagem ronda a minha idade...
3~a tertuli , desta vez, tem tema livre. Cada um escreve o que lhe dá na real gana...

Ginger disse...

Pepper e Bento... isto não é assim! Ai!
Isto é um conto por mês, mais coisa menos coisa e vai lá, vai...

LH disse...

Gostei particulamente do final. Há sabores que, sendo "aparentemente" intragáveis, estão carregados de um simbolismo que lhes atribuimos. A vida é também muito disso.
Parabéns. :)

Sara Wantos disse...

A meu ver, esta história é muito bem contada, com pormenores deliciosos! E nunca imaginei um final destes. Adorei!

Repouso-lhe um beijo de Parabéns :D

Denise disse...

Com isto tudo apenas reparei na data em que publicaste. :|

Mas li todo...

;)

Starrydots disse...

Bem, desde o meio do texto até o final pensei que o fim ia ser outro. Não vou dizer aqui porque quando to falei, disseste que ias guardar a ideia pra outro conto.
Vou continuar a ler os teus contos pra ver se aquilo que tinha pensado está presente noutra história.