terça-feira, 21 de abril de 2009

Marie


A cadeira de baloiço dança suavemente para trás e para a frente enquanto Marie bordava, com gestos delicados, pequenas flores em fio de prata no decote de um vestido de seda preto. O seu olhar pousa enfastiado no tecido negro e sente saudades do tempo em que apenas vestia roupas garridas e cheias de vida. Esse tempo, o tempo em que colocava flores vermelhas no cabelo e corria à beira das falésias pelas praias da Normandia, não voltaria mais. A morte do marido ditou-lhe um luto eterno e regrado. Além do preto, também se permita ao branco, mas apenas aos Domingos. Tinha lido algures, que em certas culturas o branco era usado em sinal de luto... por isso achava que não era desrespeitoso vestir-se de branco uma vez por semana.
Marie Godard sabia que não passava de apenas mais uma viúva de guerra igual a tantas outras... não se julgava especial ou mais infeliz, nem sequer pensava nisso. Não tinha chorado muitas lágrimas pela morte do marido, pois já conhecia aquela fatalidade de antemão. Aos doze anos, enquanto cirandava pela feira da vila, uma velha cigana sem dentes e enfeitada de inúmeras moedinhas de ouro, pegou-lhe na mão, sem que Marie se tivesse sequer apercebido da sua presença, e de olhos semi cerrados como em transe de pitonisa grega, lhe sibilou que iria casar cedo com um homem que não amava, que teria apenas um filho menino e que iria enviuvar cedo devido a um grande tumulto... ia para acrescentar mais qualquer coisa... mas a visão que se apoderou da cigana parece ter sido tão aterradora que esta apenas esbugalhou os olhos chocados de horror e disse apenas num murmúrio "Oh... oh minha menina...". Foi então que o pai de Marie se apercebeu daquela velha que agarrava a mão da filha, e furioso deu um empurrão à velhota atirando-a ao chão. "Ciganos malditos!!".
Marie nunca mais esqueceu a cigana e o futuro que ela lhe leu nas linhas da mão. Acabou de facto por casar com o seu amigo de infância Pierre, o qual não amava, mas que era um bom homem e um bom marido. Daquela união nasceu de facto apenas um menino, Maurice. Na manhã em que o marido partiu para a guerra, ela já sabia que aquela seria a ultima vez que o veria e de facto, dois meses depois, chega a noticia de que Pierre tinha sido crivado para além do reconhecimento por uma mg42 alemã... Marie apenas soltou um suspiro de resignada tristeza.
Voltou então para casa dos pais, uma bonita cottage no litoral da Normandia... passando o tempo a cozinhar compotas com a mãe, ler, bordar ou simplesmente deliciando-se com os risos do filho que brincava no jardim.
O pai de Marie, Eugénie Godard, era um homem robusto e de ar prazenteiro... o facto de ter nascido no seio de família abonada e com negócios enraizados já há gerações, deu-lhe a despreocupação suficiente para se dedicar ao que mais amava... pintura, musica e escrita. Quando a França foi ocupada pelos nazis, Eugénie tornou-se num homem sisudo e calado... costumava sentar-se na biblioteca depois de jantar a saborear um brandy com um olhar carregado e pensativo. Não dirigia a palavra a ninguém, abrindo apenas uma excepção ao neto por quem nutria um amor que ele próprio não conseguia explicar. No ultimo ano tinha começado a receber estranhos a altas horas da noite com quem mantinhas breves conversas em surdina, e que partiam tão depressa quanto tinham chegado. Ás vezes ausentava-se durante dias seguidos, e quando lhe perguntavam onde tinha estado, ele apenas atirava ao ar uma breve justificação... "Negócios... fui a negócios..."
As tropas alemãs, lideradas pelo monstruoso General Karl Heydrick, tinham tomado controlo de toda a Normandia... os ventos furiosos que anunciavam o Inverno espalhavam em todas as direcções terror e medo. Havia pessoas detidas para interrogatórios que nunca mais voltavam, casas eram pilhadas, assim como quintas e lojas. As SS chegavam por vezes a fazer execuções à luz do dia em frente do máximo numero de pessoas possível, tentando desmotivar os rebeldes da La Resistance , e todos os opositores do regime.
O General Karl Heydrick era um homem cruel e sádico. Dizia-se que tinha sido em tempos um homem bondoso e gentil... mas o facto de a mulher que amava nunca lhe ter conseguido dar um filho, tornou-o num furacão de frustração e rancor. Ter-se alistado nas SS deu-lhe a oportunidade de libertar o ódio que lhe envenenava o sangue. Um homem sem um filho varão nunca poderia ser um verdadeiro homem! Um homem sem descendência não tinha propósito sobre a terra.
Vivia assim aguardando o mês em que a esposa não lhe mostrasse tristemente a roupa interior manchada de sangue... mas esse mês não chegava nunca, e passados alguns anos já nada restava do bondoso e gentil Karl Heydrick. O seu lugar tinha sido ocupado por um monstro protegido e alimentado pelo governo nazi, sendo as suas políticas extremistas o perfeito refúgio para descarregar a sua frustração, e acabou assim por se tornar um dos mais temidos generais do regime.
Marie ouvia tudo isto pela boca dos criados... descreviam-lhe um homem de cabelo louro, quase branco e de olhos azuis sem vida, e tão alto que havia portas em que ele tinha de se inclinar para passar. Diziam que era tão cruel que já tinha executado homens em frente dos próprios filhos, sempre com um sorriso de satisfação nos lábios. Ela encolhia-se e tremia perante a ante visão de tamanha monstruosidade.
Sabia que a segurança que sentia em casa dos pais era apenas ilusória e que podia ser quebrada a qualquer momento. Tentava alienar-se desse medo e levar uma vida normal... refugiava-se no pequeno Maurice de quatro anos... uma réplica do pai. Olhos ternos e sorriso fácil e doce. O cabelo negro caía-lhe em pequenas madeixas grossas que ele afastava dos olhos constantemente.
A certa altura, Eugénie Godard começou a andar animadamente agitado. Parecia uma criança nervosa a quem tinham prometido um presente. Conferenciou a Marie, no meio de enorme sigilo, que havia rumores que estava previsto uma invasão das tropas aliadas para breve. Sabia que que estava a ser reunido um contingente de muitos milhares de soldados. O domínio nazi sobre a França tem os dias contados, dizia Eugénie de olhos vidrados e irrequietos. "Vão desembarcar aqui filha... aqui na Normandia! A liberdade está próxima... quem me dera ter a honra de executar eu mesmo aquela besta do Karl Heydrick!" - Marie escutava, nervosa enquanto abraçava o filho e o apertava contra si.



Os dias passavam lentos e doces... Marie não se interessava pela ocupação nazi, Marie não se interessava por guerras e por soldados. Protegida pelos altos muros que rodeavam os jardins da casa de seus pais, vivia alienada de tudo isso. Apenas Maurice lhe interessava. Começava a achar os devaneios de seu pai aborrecidos e irreais, saídos da boca de um velho demente e fanático.
As mais altas patentes do exército alemão conheciam já os planos dos Aliados. Mas a Normandia tinha uma costa imensa e ninguém sabia onde ou quando se iria dar o ataque. O General Heydrick passava horas por detrás da sua secretária de carvalho e de olhos semicerrados, enquanto desconfiava em silencio de tudo e de todos... Dava ordens atrás de ordens e fazia questão de verificar ele próprio se eram ou não cumpridas. Ao mínimo incumprimento ou desvio do plano original, o General levava a cabo um sumário tribunal de guerra que constituía basicamente num tiro à queima roupa na têmpora do soldado faltoso.
São construídos bunkers ao longo de toda a costa da Normandia... vedações de arame farpado são erguidas ao longo de muitos km de praia... milhares de minas são enterradas. O exército alemão andava nervoso... a expectativa era enlouquecedora...
É no seu escritório, no meio de um caos de mapas, planos e listagens que o General recebe a notícia delatora de que um tal Eugénie Godard andava a apoiar a Resistência com dinheiro, armas e recrutamento de novos membros. Ergue os olhos e arreganha a boca num sorriso.
Marie cortava uma maçã em pedacinhos quer ia pondo na boca de Maurice, que os mastigava com os seus minúsculos dentes de leite. A cada dentada fingia que ia morder a mão da mãe, e ambos riam em pequenas gargalhadas de felicidade pura ... os almoços de Domingo eram sempre muito agradáveis em casa dos Godard. Havia sempre um prato mais elaborado que de costume e várias sobremesas. Normalmente após a refeição, Marie tocava uma ou duas árias de piano, o que deliciava os os pais e os empregados que a ouviam na cozinha, e depois disto iam todos dar um passeio até à praia pelo que Maurice trazia invariavelmente os bolsos cheios de conchas e pedrinhas que ele ia encontrando pelo areal, as quais achava de uma beleza extraordinária e única.
Mas nesse Domingo não houve sobremesas, árias de piano ou passeios à beira-mar...
Eugénie Godard preparava-se para trinchar o faisão quando se começaram a ouvir carros a entrar pelo caminho de terra batida que atravessava a propriedade.
Portas de carro a bater e gritos em alemão... botas pesadas que atravessam o hall. Reconhecem o grito de uma das empregadas e ouvem o tiro que o silencia. Marie aperta Maurice contra si... ambos tremem de medo. O Sr. Godard levanta-se calmamente da cadeira quando a porta da sala é arrombada com um estrondo. A sra. Godard começa a gritar com o histerismo do desespero. Vários soldados de cabelo louro e olhos azul aço entram de armas em punho e param repentinamente, em sentido, como que esculpidos em mármore.
Ouvem-se mais passos pesados... mas desta vez lentos, calculados.
O General Heydrick entra calmamente, de porte possante e majestoso. Pareceu a Marie mil vezes mais assustador do que o tinham descrito. Era extremamente alto e de peito largo... tinha uma boca e um nariz perfeitos. O seu cabelo era de um louro quase platinado e as faces estavam imaculadamente barbeadas. Constatou sem sombra de dúvida, que aquele era o homem mais bonito que já tinha visto na vida. Todavia quando o olhou nos olhos, soube que aquele corpo servia apenas de invólucro para um ser morto por dentro. Nada havia de humano naquele homem.
O General pergunta a Eugénie, com um tom de voz neutro e despropositadamente calmo, onde guarda as armas com que anda a abastecer os rebeldes.
- Armas? Que armas? Não sei do que fala! Nada sei de rebeldes! Que armas? - tenta manter a compostura mas a voz treme-lhe.
- Nada sabe de armas ou de rebeldes? - o General quase que sorri ao mesmo tempo que aponta a arma à cabeça da sra. Godard, que ainda não tinha parado de gritar e dispara. Um repuxo de sangue salpica o vestido domingueiro de Marie mas ela apenas solta um som rouco e incrédulo.
O pequeno Maurice solta-se da mãe e deita-se abraçando a avó estendida no chão. Chora baixinho, chamando pela avó, pedindo para ela abrir os olhos.
- As armas! Já!- o General Heydrick começa a dar mostras de alguma impaciência.
Eugénie Godard olha para o corpo da esposa caído no chão... tem de fazer com que aquela morte valha. Num acto de coragem volta a repetir que não tem armas em casa... que não está a ajudar a Resistência... que deve haver ali algum engano.
O General olha para o pequeno Maurice e sorri - "Tem a certeza?" diz simplesmente enquanto aponta para a criança e puxa o gatilho.
Marie solta um grito rouco, enquanto o sangue do seu filho lhe atinge a cara. Eugénie olha para o neto sem vida, tombado em cima do peito da avó - "Mas... era uma criança... era apenas uma criança..." balbucia enquanto leva uma mão ao coração. Cambaleia e cai em cima da mesa, com as mãos a agarrar o peito, sem conseguir respirar. Depois de mais uns segundos de agonia, escorrega para o chão, inerte, arrastando atrás de si pratos e talheres.
Heydrick olha para o corpo do velhote no chão e faz cálculos do inconveniente de ele ter morrido sem antes ter revelado onde tinha o depósito de armas.
Marie treme violentamente... o sangue do filho mancha-lhe a cara, o sangue da mãe mancha-lhe o vestido, o pai está morto no chão. Por uns segundos o mundo torna-se num buraco fundo de silêncio sepulcral e o tempo pára. Nesse preciso momento, o Inverno chega à Normandia.
E General contempla longamente aquela jovem mulher de cabelos negros e olhos cor de mel. Dá ordem aos soldados para que percorressem toda a propriedade em busca das armas e fecha a porta da sala... lentamente.
Fica parado, olhando para Marie que ainda não tinha parado de tremer convulsivamente, enquanto da sua garganta apenas saem uns sons roucos de perplexidade e horror, quase desumanos, primitivos.
Ele vai até junto dela e lança-lhe um olhar quase zombeteiro enquanto a agarra pelos ombros. Ela acorda do transe com o toque frio daquelas mãos enormes. Tenta soltar-se, mas ele não deixa. É grande e forte e Marie percebe que não vale a pena gritar por ajuda... todos os que a podiam ajudar estão mortos... todos os que ama estão mortos. Mas ela grita, solta gritos selvagens... não para ser ouvida, mas apenas para si, grita para ter a certeza de que continua viva.
O General Heydrick tenta tapar-lhe a boca, mais por os gritos o estarem a incomodar do que por outra coisa qualquer. Marie morde-lhe uma mão, o que o enfurece. Um estalo voa violentamente e abre-lhe um lábio... o sangue escorre-lhe pelo vestido, juntando-se ao sangue do filho e da mãe.
Marie desiste e a sua mente abandona o corpo enquanto aquele estranho lhe rasga o vestido e a atira para o sofá... ofegante, aperta-lhe os seios irascível, beija-lhe o pescoço e sente o perfume daqueles cabelos negros e brilhantes. Ela não se mexe, não solta um som... o homem pára por um segundo, assegurando-se de que ela não estaria desmaiada. Olha dentro dos seus olhos vazios, fixos no filho morto no chão e então sem hesitação, entra nela. Entra nela violentamente, imparável, impiedoso.
Quando acaba, levanta-se e aponta-lhe descontraidamente a arma à cabeça... mas Marie nem olha para ele... a sua alma ainda não tinha regressado ao corpo. Jamais regressaria. Ele hesita, por um momento, olhando para aquela bela mulher e acaba por guardar a arma.
Marie sente-o partir... a ele e aos outros soldados. Estavam irritados. Não tinham conseguido encontrar armas em lado nenhum. Ouve-os gritar na rua, como se fizessem parte de um sonho e as suas vozes ecoassem debaixo de água.
Rasteja pela sala, com o vestido em farrapos e agacha-se num canto durante dois dias, de mãos em volta das pernas oscilando o corpo para trás e para a frente.
Quando finalmente sai daquele entorpecimento, já não é a Marie. Da mulher que fora, já nada restava, assim como já nada restava do homem bondoso que o Gerenal Heydrick tinha sido um dia.
Percorre os corredores, os quartos, as salas... olhando para uma casa que já não era a sua. Fecha as portas da sala onde estão os corpos da mãe, do pai e do filho que tanto tinha amado. Fecha-a à chave e barrica-a com todos os móveis que consegue arrastar. Fecha todas as janelas e corre todos os cortinados. Vive semanas arrastando-se pela escuridão... comendo os restos que encontra na cozinha e as conservas que encontra na adega. Nunca mais despiu o vestido branco esfarrapado e manchado de sangue. Não vive. Existe apenas.
Nunca mais chorou... porque para chorar é preciso ter um coração vivo, um coração que sinta e palpite... e o dela apenas jazia morto e apodrecido dentro do peito.
Um dia, sentada no chão da adega, com os olhos fixos na escuridão e enquanto ia mastigando pequenos pepinos conservados num pote de vinagre, pousa a mão sobre o ventre e sente uma pequena protuberância que antes não tinha.
O Inverno tinha chegado e partido e Marie não se recordava de ter tido as regras durante todos aqueles meses. Mergulhada na doce demência a que se tinha entregue, todos esses pormenores lhe haviam passado ao lado.
"Grávida!" - grita - "Grávida!! Não! Não, não não! Grávida de um monstro!". A leoa ferida dentro dela, acorda. Ruge e bate com os punhos na barriga, na parede, nas portas, nos barris do vinho... pontapeia tudo o que apanha pela frente num acesso de agonia desesperada. Os cabelos que não eram penteados há meses ganham vida de medusa enraivecida.
No meio do rebuliço, não sabe exactamente em que local bateu, mas uma parede falsa abre-se com um clic. Marie pára ofegante, olhando embasbacada para uma divisão que desconhecia. As armas que os alemães tinham acusado o seu pai de traficar... estavam todas ali. Marie sente um enjoo e vomita os pepinos envinagrados. Todos, tinham morrido todos por causa daquilo! Algo nela acorda... o coração ilumina-se debilmente, como se uma réstia de acendalha que ainda residia dentro dele tivesse sido soprada por uma leve brisa.
Entra naquela pequena divisão bafienta e encontra todo o tipo de armas... nunca tinha manuseado nenhuma, não fazia ideia de como funcionavam. Concentrou-se nas granadas. Essas eram simples de utilizar. E então sorri... sorri o mesmo breve sorriso zombeteiro que lhe tinha lançado o general Heydrick.
Enfia uma dezena de granadas num velho saco de serapilheira e corre pelas escadas acima.
Ouve sons de metralhadoras ao longe... tiros, explosões. Não sabe há quanto tempo aquilo dura, pois não saía adega há mais de uma semana.
Vai até aos aposentos do falecido jardineiro e enfia umas velhas calças rasgadas, uma camisa coçada e umas botas velhas ainda emlameadas. Com uma tesoura enferrujada, corta curtos os longos cabelos emaranhados e enfia na cabeça um chapéu de palha que lhe cobre os olhos.
Abre a porta da entrada pela primeira vez desde que a sua vida lhe havia sido roubada, e vê ao longe, a cair dos céus, pára-quedistas que deixavam de se ver quando chegavam ao solo e se fundiam com o arvoredo.
Era o ataque dos aliados! O pai tinha razão... nada havia de senil nas suas atitudes ou devaneios. Finalmente as tropas libertadoras tinham chegado à Normandia.
Marie volta para dentro, e fica toda a noite acordada, com o saco de granadas junto ao peito... e a pensar.
O ruído das armas não pára um minuto, nem durante a noite, e antes do nascer do sol, Marie,vestida com roupas de homem e sem largar nunca o saco de granadas, corre o mais rápido que pode na direcção da batalha. Encontra corpos de soldados um pouco por todo o lado, mergulhados na densa vegetação da Primavera. Reconhece uniformes americanos, ingleses e canadianos... mas nenhum destes lhe serve. Continua sem parar... agachada, até que tropeça e cai em cima de um corpo de um soldado alemão. Nada restava da cabeça do homem. Faz um sorriso de triunfo e despe-o, vestindo o uniforme em seguida. Toca com os dedos sujos no tronco do homem, usando o sangue para pintar a cara.
Continua sem parar, dirigindo-se à falésia. Já conseguia ouvir os gritos dos soldados de ambas as partes. Gritos de raiva, de surpresa, de dor, de desespero. Engole em seco e continua em frente. Começa a ver os bunkers alemães que protegem as falésias. Não pára nunca...
A sua atenção é captada por os gritos de um soldado ferido a alguns metros de distancia. Corre até ele e reconhece um uniforme alemão manchado de sangue.
- General Heydrick. - diz inquisidoramente, fingindo uma voz grossa com sotaque alemão. O soldado olha para ela... para aqueles olhos emoldurados por uma cara ensanguentada e vira-se para o lado cuspindo sangue.
- General Heydrick!! - Marie grita-lhe e pega-o pelo colarinho sacudindo-o furiosamente. Ele levanta o braço ligeiramente e aponta com o dedo para o terceiro bunker visível na linha da falésia.
- Merci - diz docemente em francês enquanto lhe deposita um beijo na testa.
Corre para o bunker. O som das metralhadoras e das explosões é ensurdecedor. Olha para a praia e vê um mar vermelho de sangue... centenas de corpos boiavam na agua. Os soldados que não morriam no desembarque dos navios, acabavam despedaçados no areal ao pisarem minas anti-pessoal ou presos em arame farpado. Os que conseguiam ultrapassar esses obstáculos tinham ainda de sobreviver ás metralhadoras imparáveis protegidas dentro dos bunkers.
Marie olhou aterrada ao que julgou ser uma verdadeira visão dos infernos.
O seu corpo fica hirto e a tez sombria.
Entra no bunker e vê o General sozinho... metralhando imparável toda a praia. Era demasiado sedento de sangue para ficar nos bastidores a dar ordens, e Marie sabia disso.
- Mein General! - Grita.
Heydrick volta-se para aquele soldado coberto de sangue e mais baixo que o normal com um olhar inquisidor e impaciente. Olha-o nos olhos... e reconhece-a! Aquele olhar... jamais poderia esquecer aquele olhar.
Marie apercebe-se de que ele sabe quem ela é... e sorri. Devagar, tira o casaco do uniforme e depois a camisa. Fica em frente dele, semi-desnuda, de ventre saliente e peitos cheios.
- Regardez... voici votre bebe. - O seu tom de voz é neutro e sem vida... mas os seus olhos sorriem.
O General demora uns segundos a perceber... olha para a barriga dilatada daquela mulher, depois para os seus olhos... depois novamente para a barriga. E então o seu olhar ilumina-se. Um filho! O filho que sempre quis! Não lhe importava que lhe fosse trazido por aquela estranha. Nada lhe importava, apenas o bebé.
Sorri. Sorri com uma felicidade genuína... o General não se lembrava da ultima vez que se tinha sentido feliz.
Marie sorri também enquanto despeja no chão o saco de granadas. Pega numa e ergue-a no ar... calma, sorrindo sempre, parecendo quase divertida.
O General Heydrick apercebe-se então... olha nos olhos da mulher e lê-lhe os pensamentos. Não tem tempo de sentir medo ou pânico. A ultima coisa que vê, é Marie de braços erguidos a puxar a cavilha de uma granada.

16 comentários:

meldevespas disse...

Sabia que estavas a trabalhar numa nova estoria, e todos os dias aqui vinha espreitar (mais que uma vez diga-se...).
Valeu bem a espera. Ai mulher ainda estou toda arrepiada! Que tempestade de sentimentos vai nestas palavras. O desalento desta mulher, o sangue sempre presente, as perdas.....estou assim com um no na garganta que vai demorar a passar ...
F A B U L O S O!
Nao me ocorre mais nada...
Beijos grandes grandes e uma venia ja agora

weee disse...

FABULOSO!! FABULOSO!! FABULOSO!! Óbistes?? FA-BU-LO-SO!!!

Até parei de falar com a Carmo porque não conseguia parar de ler!!! OMG!!

Depois quero um livro autografado faxavôr -_-

Brown Eyes disse...

Estou sem palavras, uma estória magnifica. Adorei e claro, já estou à espera de outra e de um livro. Quando publicares avisa. Beijinhos e obrigada por este bocadinho.

Brown-eyed Girl disse...

Muito, muito bom!!!!!
Achei-o muito visual, muito palpável, muito cinematográfico. É fantástico!!

Cada um é melhor que o anterior, rapariga!

Beijos graaaaaaaaaaaandes!

Daniel C.da Silva disse...

Eu ja nao chamo a isto posts. São contos, como se fosse lendo um livro de contos.

Que posso dizer? magnifico. É o que digo: são contos. O teu blogue está muito bom. A musica de piano também é convidativa :)

beijinhos

Johnny disse...

Muito bom. É raro o blogue que me faz ler os seus posts mais longos. Normalmente começam bem, mas depois perdem-se. Com estes não aconteceu isso. Continuei até ao fim, por isso voltarei.

(com a valorização da minha exigência, também valorizo o teu/seu trabalho)

Random Thoughts disse...

Cheguei a tremer durante a leitura, para o fim.. Quando ela corria para o General. A tremer :s What does that? WHAT DOES THAT? :s

OMG.

Blog Dri Viaro disse...

Passando pra conhecer seu blog, e desejar boa noite

bjs

aguardo sua visita :D

Vogal disse...

Tá Genial, a sério que está ... Faz o que te MANDO ! Muito bom mesmo.

Cu de Barbas disse...

espera por mim

Cu de Barbas disse...

epá,coiso...

eu n gosto mt d preto no branco,ou seja,a tua definiçao entre bem e mal é mt concreta,isso pra mim n existe,o mundo n é assim.ms tirando isso,sabes escrever,é obvio, n pecas por ai

qt a isto dar um livro,sim dava,ms a literatura da 2ª grande guerra ta um bocado esgotada.e alias,o trabalho d pesquisa seria imenso,eu proprio n pegaria no tema,nao agr

ms claro q s queres,deves faze-lo
vai custar ms q é a vida sem motivaçoes?

Cu de Barbas disse...

e lenka o fim é sempre previsivel,sempre. :|

acho q ja n ha criatividade na morte,sei bem q nao queres mudar ms isto so é a minha opiniao

eu n sou do contra lenka,so nao sou um carneirinho a balir e nao m enquadro na cultura pop literaria,apesar d admitir q a tua escrita esta um pouco acima disso

aliás,encorajo-t solenemente a escrever um livro.tas talhada para escritora d massas,e isso é dinheiro em caixa ;)

Ginger disse...

Se é escrita de massas ou não, quanto isso nada posso fazer. =|
É assim que as coisas me saem e pronto. Quando estou a escrever não estou a pensar se será "popular" ou não.
Quanto ao estilo, e tu que me conheces, sabes que tenho um gosto pelo funesto, pelo obscuro. Isso está em mim desde que me conheço.
Os fins, enfim... são "estes" fins de que eu gosto. Até podia arranjar 1001 fins diferentes para escapar um pouco ao rótulo, mas já não estaria a ser "eu".
E não morre sempre gente! oh...
E há criatividade na morte sim... a morte continua a ser o maior mistério de todos. A mim, fascina-me completamente, admito.

A tua opinião vale imenso para mim, porque sei que não é este tipo de escrita que aprecias e porque és sempre honesto.

kiss*

Anónimo disse...

Gostei! Vou voltar!

Starrydots disse...

Sublime!
A pesquisa que deves ter feito pra escrever este conto...
Já estive na Normandia e consigo imaginar perfeitamente a história a acontecer. A cottage onde morava a família de Marie, as fardas dos soldados, a de lhe servir a de um soldado alemão, provavelmente de um adolescente de 17 ou 18 anos como havia aos milhares no cemitério alemão...
Os bunkers, fortalezas de betão armado cravadas de buracos de balas, algumas meio desfeitas devido a ataques de bombas e granadas...
Só faltou dizer que os soldados que conseguiam ultrapassar todas as armadilhas na praia ainda tinham de conseguir subir o rochedo que se vê na foto. Incrível.
Acho que ias amar uma semana na Normandia. Se um dia tiveres oportunidade vale mesmo a pena. É uma parte de história que nunca deve ser esquecida e que alí se vive intensamente.

Um abraço enorme. Amei.

Patife disse...

Sim. O Patife continua a ler estes contos deliciosos... Este tocou-me. Adoro a densidade dramática dos teus contos. Arrepiam, por vezes.