domingo, 1 de março de 2009

O Engano da Inocência


Olhava pela janela observando o mar, no alto dos seus seis anos, com os braços caídos e de punhos cerrados... lábios entreabertos e com o fascínio típico da idade por tudo o que era desconhecido ou menos familiar.
Era feia a menina. Por mais que a mãe lhe vestisse vestidinhos bordados, lhe atasse fitas de cetim nos cabelos ou lhe colocasse brincos de ouro e pérola, era indiscutível para toda a gente, que Leonor era de facto, uma menina feia. A própria criança possuía já a consciência semi-latente de que era feia.
Tinha a pele macilenta e o cabelo demasiado espesso de um preto oleoso. Os olhos eram cinzentos e inexpressivos, como poços sem fundo, e nas suas mãozitas em forma de pequenas garras desajeitadas, segurava invariavelmente o seu brinquedo favorito, uma boneca de trapos vestida com um vestido vermelho tão berrante que fazia doer a vista.
Na saleta, o sr. Simão lia o pasquim e fumava cachimbo.
- Mais um assassínio! Ouviste Carlota? Mais um assassínio! Não apanham este demónio!
A mulher sobressalta-se e leva as mãos á cabeça num movimento teatral.
- Meus Deus! Mais um? Não leias essas coisas em frente à menina...
- É bom que ela fique a saber como é o mundo! É o que te digo! Chamam-lhe já "O Eclético" por matar sempre de maneira diferente... Desta vez foi uma rapariga de dezanove anos!! Meus Deus! Tão nova ainda.
- "O Eclético"?? Que piada de mau gosto! Meus Deus que horror! Um assassino à solta na provincia e ninguém lhe mete mão! Que horror, que horror! Não me contes essas coisas! Sabes que estou de esperanças... isso ainda faz mal ao bebé.
E ia repetindo baixinho para si mesma, "que horror, que horror".
D. Carlota ficava alterada durante horas sempre que alguém lhe mencionava qualquer tipo de violência... começava a transpirar como se estivesse a comer limões e normalmente acabava de cama com uma tremenda enxaqueca que as criadas tentavam atenuar com compressas mornas e sais. Como estava a pouco tempo de dar à luz o segundo filho que, esperava ela, viesse a ser mais agraciado pela beleza que Leonor, estes ataques davam-se com mais frequência e intensidade que o normal.
Leonor, com a sua boquita de dentes retorcidos perguntou se quando se morria se poderia regressar mais tarde. Os pais respondem que não e proíbem-na de voltar a falar em mortes, que tal como é sabido, não é tema para criança tão pequena.
Algumas semanas depois já se ouvem choros de bebé pela casa... uma linda menina de olhos verdes esmeralda desde o primeiro dia que nasceu. "Vai chamar-se Diana! Diana como a deusa romana!!", proferiu orgulhosamente o pai.
Todas as atenções se voltam para aquele novo ser radioso.
D. Carlota manda acender centenas de velas na Catedral como forma de agradecimento por a bebé ter nascido com aquela beleza tão doce e perfeita.
Leonor... no abismo da sua fealdade e sob a sombra da beleza da irmã, remeteu-se a um canto de esquecimento e foi fechando o coração, tendo como única amiga a boneca de trapos de vestido garrido.
O sr. Simão andava inchado de vaidade com aquela nova criança... mostrava-a a toda a gente com um orgulho transbordante que se realçava em cada palavra. "Que linda que é!! Já viu a minha filha?!? Que linda que é!"
Leonor foi esquecida. Já ninguém se lembrava de lhe atar fitas de cetim nos cabelos, ou até de lhe fazer roupas e sapatos novos. Andava pela casa com vestidos apertados e de cabelos amaranhados, sufocada em sofrimento, rancor e tristeza. Passava tardes inteiras passeando à beira das escarpas que coroavam toda aquela zona costeira... hipnotizada por aquela altura fatal e pelas ondas violentas.
Um dia, aproveitando um dos raros momentos em que Diana é deixada sozinha, entra no quarto da irmã e fica a contemplá-la no berço enquanto dormia. Os seus olhos estão vazios suportando uma expressão indecifrável. Pega na pequena boneca de trapos e enquanto uma lágrima lhe desliza pela face, coloca-a no berço entre a mantinha rendada. Fica ali assim, em pé, em agonia, contemplando os caracóis dourados da menina.
Na manhã seguinte a casa acorda em alvoroço. Ouvem-se gritos e correrias. O berço está vazio e ninguém sabe da bebé!
D. Carlota grita entre ataques de desfalecimento e o marido, completamente descontrolado berra com toda a gente, acabando mesmo por dar um estalo à ama da menina que era suposto nunca a perder de vista. "É uma bebé senhor. Não anda... não pode ter ido a lado nenhum. Alguém a levou durante a noite... eu estava a dormir, não ouvi nada. Oh Deus!", a ama desfazia-se em desculpas. Atónita, desesperada... não entendia.
Pela primeira vez em meses, o sr. Simão repara na filha mais velha, "A tua irmã Leonor?? Viste a tua irmã? gritos, "Viste a tua irmã Leonor?". Ela diz que não... que não sabe... que não viu e baixa a cabeça. Um sorriso!! Terá visto um sorriso?? O sr. Simão fica petrificado... terá Leonor sorrido? Pega na menina começa a abaná-la violentamente. "A tua irmã?? Tu viste-a??" ... ela repete que não... que não a viu e começa a chorar.
D. Carlota arranca-a das mãos do marido. "Deixa-a, coitadinha!! Não vês que é apenas uma menina? Como poderia ter levado a bebé?!? Deixa-a!"
Leonor é mandada para o quarto... segue cabisbaixa, de braços caídos. Olha por cima dos ombros como se receasse estar a ser seguida, e nesse momento o sr. Simão julgou ver novamente aquele sorriso. Recusa a ideia... o pânico estava a levá-lo a ver coisas... foi impressão, com certeza. Não, Leonor não poderia ter sorrido. Como poderia sorrir perante o desaparecimento da pequenina? Não, não... delirava. As crianças não têm uma maldade assim tão diabólica.
Começam buscas e toda a propriedade é revistada palmo a palmo... não há sinais da bebé. Vão até à linha das escarpas e continuam numa correria urgente... uma multidão de gente apreensiva e em silencio percorre toda a área.
Ouve-se um grito gelado.
- Ali!! Ali em baixo!!! Naquela pequena enseada! O que é aquilo?
Todos olham petrificados na direcção indicada. Lá em baixo, pareciam caídas duas bonecas no areal. Uma mal se via, tal não era a altura, mas a segunda realçava-se devido ao seu vestido vermelho garrido.
Cai a noite derrepente, como que toda a escuridão do universo tivesse esperado aquele momento para se afundar sobre a terra.
O sr. Simão gela perante a visão surreal... lá em baixo, naquela língua de areia está Diana com a boneca de Leonor ao lado.
Ferve de raiva, ferve de dor, de angustia e de horror. Leonor matou a irmã... levou-a até ali a atirou-a para o abismo. Agora entende que os sorrisos eram reais e não uma alucinação.
Várias pessoas descem até à pequena enseada e trazem ao sr. Simão, no alto da escarpa e hirto de terror, o corpinho da bebé sem vida. Olha para o rosto de Diana... os anéis dos seus cabelos estão molhados pela maresia e os seus lábios estão da cor do azul da morte.
Caminham de volta à casa, o pai, de coração agora morto, na dianteira, leva a menina nos braços e nos olhos o mais puro dos ódios.
D. Carlota vê pela a pequena multidão chegar... vê o marido com a menina sem vida nos braços e nesse preciso momento, enlouquece.
O sr. Simão ordena num berro que todos se vão embora... vozes contestam, "mas vocês não podem ficar sózinhos neste momento... ouça, seja razoável..."
-Saiam!!
Grita num úivo saido dos infernos.
Avança para o quarto de Leonor, cego pela raiva e num pontapé deita a porta ao chão. "Matáste a tua irmã! Como pudeste?? Era apenas uma bebé Leonor!! Matáste a tua irmã!"... Leonor grita que não, que não foi ela, que não sabe de nada... "Matáste-a! Encontramos a tua boneca ao lado dela! Matáste-a!"... avança para a menina agora mais feia que nunca... com o rosto contorcido de horror... um animal encurralado, "Papá, não!"
Atira-a para a cama e sufoca-a com uma almofada até o pequeno corpo deixar de se contorcer.
Fica um pouco a olhar para a filha morta, aliviado, vingado, em paz.
Lá em baixo, ouve-se a porta da entrada abrir num estrondo. Ouve a voz de um dos empregados a berrar desesperado, "Sr. Simão!!! Sr. Simão!!! Não imagina!! Oh Deus... Sr. Simão!!! Apanharam o assassíno! Apanharam-no! Ele confessou ter assaltado esta casa durante a noite e ter raptado uma bebé que depois atirou de uma escarpa!! Oh Sr. Simão!!"

1 comentário:

Johnny disse...

Brilhante. A forma como contas, o ritmo e alguns pormenores são deliciosos como "o sr. Simão julgou ver novamente aquele sorriso." tens um jeito imenso para contar histórias e só vejo e denoto algumas palavras deslocadas ou adjectivos que eu particularmente posso não gostar muito.