domingo, 1 de março de 2009

Atalhando a vida...




Sente-se sufocar pelo colarinho. Ajeita-o um pouco tentando em vão diminuir o desconforto. As mãos e os joelhos tremem-lhe descontroladamente fazendo lembrar os movimentos de uma marioneta, que na sua qualidade de marioneta, não tem vontade própria.
A secretária fala numa voz austera:
- Já pode entrar.
Levanta-se da poltrona pensando que deve ser esta a sensação de uma vitima em direcção ao cadafalso.
O patrão, no seu impecável fato de linho egípcio, olha-o como um touro prestes a fazer uma investida... o facto de estar a fazer um esforço brutal para não se descontrolar só o tornava ainda mais assustador.
- A situação é muito grave!
Rosna o patrão.
- Eu sei... peço-lhe imensa desculpa. Jamais se voltará a repetir. Fugiu-me ao controle...
- Os nossos clientes jamais poderão saber disto! Seria um escândalo para o Banco. A confiança na instituição seria irremediavelmente abalada! Onde é que você estava com a cabeça?
Aqui já toda a compostura calculada o tinha abandonado, berrando agora em uivos que ressoavam por todo o gabinete.
- Eu... eu lamento. É que tenho tanta divida de momento e a bebé nasceu com aquele problema, como sabe... precisa de tratamentos constantes... e a minha mulher está novamente grávida... eu... Não se voltará a repetir.
- Milhares!!! Milhares perdidos ao jogo! Milhares que não eram seus! Milhares que o Banco vai ter de repor!! Como é que vocês pode ter feito uma coisa destas? Depositei tanta confiança em si!
- Eu sei... eu... não se voltará a repetir.
- Pare de repetir isso!! Seu estúpido!! Saiu-me cá uma besta!! Só estou aqui a falar consigo porque tenho o seu sogro em grande consideração. Se não fosse por ele, não só o teria despedido imediatamente como teria também chamado a policia!
- Eu... não se voltará a...
- Como é que um homem que ocupa um cargo tão importante na sociedade e que toda a gente tem em tão alta conta pode ter como um genro um paspalho como o senhor?!?
- Não imagina como estou arrependido... a minha situação é desesperada! Eu sempre julguei que...
- Cale-se!!! Cale-se e nunca mais me apareça à frente!! Imbecil!!!
Sai de cabeça baixa, derrotado. O chão vai-lhe fugindo dos pés enquanto caminha. O peso do mundo sobe os seus ombros.
Entra no carro... apoderado pela angustia, pelo desespero, pelo medo de contar à mulher que não têm nada... que vão perder a casa e o carro e que tem mais dividas de jogo do que as que alguma vez poderá pagar.
A ideia em si é-lhe insuportável... o terror sufoca-o e arrasta-o para o fundo de um oceano negro e pegajoso.
Vai passando pelas ruas daquela cidade cinzenta e fria.
Começa a cair uma chuva miudinha que acaricia o pára-brisas.
Olhares de estranhos...
Olhares acusadores...
Dedos apontados...
Delira empapado em suor.
Chega aos limites da cidade e continua por estradas secundárias que não conhece... vai alienado e sem destino tentando desesperadamente perder-se.
Já não há pessoas, ou casas ou outros carros... Pára numa berma e contempla um campo em pousio. Sente uma enorme paz ao olhar para ele.
Sai do carro e caminha em direcção aos campos sem fim... avança sentindo uma enorme paz que o invade a cada passo que dá.
A noite começa a cair... sem pressas.
Continua calmo e decidido.
Nunca mais ninguém o vê.

1 comentário:

Johnny disse...

Este é dos que mais gosto. Só mudaria ali uma palavra: "vítima", que eu substituiria por "condenado"